DOIS ATENTADOS À POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX Pedro Lyra
A presente "catilo-antologiária" é um texto unitário,
mas dividido, sem divisão alguma, em duas partes. Até sugeri
ao autor publicá-la em dois textos. Ele disse que não. Contudo,
para facilitar, coloquei links-marcadores:
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A poesia brasileira acaba de sofrer, por ocasião da virada do século, dois grandes golpes em sua reputação, principalmente no exterior: as antologias Os cem melhores poemas brasileiros do século e Os cem melhores poetas brasileiros do século. A primeira, com organização, introdução e referências bibliográficas de Italo Moriconi (Rio de Janeiro, Objetiva, 2001. 350p) elege poemas e apresenta 59 autores, com quantidade de textos/páginas relativa ou presumivelmente proporcional ao mérito. A seleção de nomes para a capa já autoriza o leitor a desconfiar do projeto: não tanto por valorizar 33 em detrimento de 26, mas porque, se a antologia é de poemas, não de poetas, e se a capa queria antecipar o miolo, ela devia relacionar os títulos dos poemas, não os nomes dos 33 autores previamente insinuados como superiores aos demais. Estes tinham todo direito de vetar essa capa – a própria edição ou, ao menos, a participação. Devem ter sido surpreendidos, não informados. Os poemas escolhidos são de poetas das sete últimas fases de nossa poesia. Ele acolhe textos de: 1) um parnasiano (Olavo Bilac) mas omite um Machado de Assis (o soneto “A Carolina” é de 1906) e um Vicente de Carvalho (Euclides da Cunha considerava “Palavras ao mar” um dos melhores textos da língua); 2) simbolistas, como Alphonsus de Guimaraens, mas omite um Da Costa e Silva (“Saudade” talvez seja o soneto brasileiro mais literariamente popularizado); 3) pré-modernistas, como Augusto dos Anjos (mas sua obra-prima é “Os doentes”) e Gilka Machado (“Ser mulher” é o primeiro brado da consciência feminina em nossa poesia), e omite um José Albano (Manuel Bandeira encarou “Alegoria” como o 11o canto de Os Lusíadas) e um Raul de Leoni (Agripino Grieco afirmou que “Eugenia” é um soneto que todo brasileiro devia saber de cor); 4) muitos modernistas, mas omite um Augusto Frederico Schmidt (“Canto do brasileiro” é o livro-poema que abre a segunda fase do Modernismo) e um Guilherme de Almeida (Bandeira considerava “Raça” um dos textos emblemáticos do movimento); 5) muitos da Geração de 45, seja do seu segmento vanguardista, como o Concretismo e o Neoconcretismo, mas omite o Praxismo (Lavra-lavra de Mário Chamie fincou um marco no nosso experimentalismo), seja do esteticista, mas omite um Ledo Ivo (Ode ao crepúsculo), seja do participante, mas omite um Moacyr Félix (Canto para as transformações do homem); 6) discursivos e alternativos (ou marginais) da Geração-60, mas nada inclui de vários nomes dentre os mais expressivos, como uma Marly de Oliveira (A suave pantera), um Marcus Accioly (Sísifo), um Affonso Romano de Sant’Anna (“Que país é este?”), um Bruno Tolentino (A balada do cárcere), nem de todo o seu segmento vanguardista; 7) diversos nomes da Geração-80, mas apenas os vinculáveis ao experimentalismo de 45 e à marginália de 60 e nada oferece de seu nome mais significativo até agora, que é Alexei Bueno, mais que infenso, oposto a essas duas influências. E inclui – como autores de poemas dos melhores – nomes como... Não precisam ir ao texto, nem sequer ao índice: vejam na capa. Essas omissões – injustificáveis numa antologia com esse título – acrescentam outro dado à precariedade do projeto, depois da discriminação dessa capa. Os critérios e conceitos que deviam norteá-lo não estão claros. Não está definido sequer o que o organizador entende por poema do século XX: o publicado no século? o de autor que chegou ao século? Neste caso, justifica-se a presença de Bilac, mas não a dos dois poemas escolhidos: “In extremis” e “A alvorada do amor” são poemas do século XIX. Apareceram em livro, como ele informa, em 1902, mas o primeiro foi publicado (com o título de “Nunca morrer assim”) na revista Fantasia do jornal A Notícia de 14.12.1895 e o segundo na revista Bruxa de 9.4.1897. E ao invés de informar como apareceram em livro (no segmento “Alma inquieta”, acrescentado – com “As viagens” e “O caçador de esmeraldas” – à 2a edição das Poesias), cita uma recente (a de Ivan Teixeira: São Paulo, Martins Fontes, 1997). Ele ensaia apenas um critério, e de modo confuso. Propõe uma seleção “não segundo critérios de representatividade acadêmica ou erudita e sim...” – mas, quando se espera que indique com clareza o seguido no lugar do recusado, ele (talvez sem o perceber) troca critério por objetivo, na continuação do período: “...tendo em vista a meta de oferecer ao público uma amostra do melhor da poesia brasileira” (p.16). No tópico seguinte, mistura os dois parâmetros: “o critério básico de escolha dos poemas foi seu caráter de essencialidade”, entendida como “a capacidade de um poema ser exemplar dentro do seu gênero específico” (p.17). Ora, escolher por ser exemplar “dentro do seu gênero específico” é escolher por representatividade, não por essencialidade: pode ser exemplar do seu gênero, e ser muito ruim. Para ser exemplar por essencialidade, o poema tem que ser bom em si mesmo (em sua linguagem, sua forma, seu ideário), não importa o gênero. Se os 100 melhores fossem 100 líricos sonetos, não entraria nenhuma outra forma, nenhum outro gênero. E a escolha não correspondeu à sua louvável intenção. Esse hibridismo decorre da indefinição: ele ficou indeciso entre o panorama (representatividade), onde cabem todos os representativos, e a seleção (essencialidade), onde só cabem os melhores. O título promete uma seleção: portanto, apenas textos essenciais, mas inclui muitos apenas representativos; a introdução realça o panorama: portanto, justifica-se a presença do apenas representativo, mas ignora muitos essenciais; e o conjunto, confundindo os dois pólos, não é uma coisa nem outra: não recolhe o essencial da poesia brasileira do século (ignora, por exemplo, monumentos como Morte e vida severina e Visão do último trem subindo ao céu) e, se ignora o essencial, não é representativo. Veremos, no final, que pode ser representativo – mas de outra coisa, não da poesia do século. A
ausência de rigor (o tom geral das intervenções do
antologista é de descontração e, em algumas passagens,
de intimidade) na proposição dos critérios e na formulação
dos conceitos acaba gerando essa mistura de parâmetros na tarefa
de seleção: ora tende ao valor estético, ora ao valor
histórico. Era preciso definir. Numa antologia com esse título,
os poemas tinham que ser escolhidos pela qualidade estética, não
pela significação histórica e, menos ainda, pela identidade
ideológica: pode ser muito significativo (por ex.: a lírica
de Gonçalves de Magalhães para o Romantismo inicial) e não
ser dos melhores.
Um cânone da poesia brasileira no século XX, sem Bandeira e sem Mário! Isso compromete a todos os envolvidos no projeto, pois engana o leitor – particularmente se for alguém que não conheça nada de nossa poesia. É para levar a sério? Levemos: a razão consiste no conceito equivocado que ele fornece de cânone, visto como formado por “obras máximas” (p.149). Canônico não é apenas o texto superior, mas também o inaugural, o representativo, o programático. Ana Cristina César pode não ter nenhum texto superior – e não tem mesmo – mas é a expressão canônica por excelência do segmento alternativo da Geração-60. Do mesmo modo que Gonçalves de Magalhães: não cabe numa seleção de nossos melhores poetas, mas tem um lugar sagrado e glorioso no cânone de nossa poesia. Foi bom encontrar Mário Faustino, que identifiquei como introdutor da Geração-60 (é esse o seu lugar em nossa evolução poética), num cânone, mesmo mutilado como este, porém canônico não é o mediano soneto escolhido e sim o poemeto “O homem e sua hora”, que intitula seu livro (Rio, Livros de Portugal, 1955. p.57-65). O 4o) “Fragmentos de um discurso vertiginoso” também mistura nomes das gerações de 45 e 60, esta mais pelo segmento alternativo, e acrescenta alguns da Geração-80, os mais próximos da marginália de 60 – o que evidencia o gosto e as relações pessoais do organizador, explicitados na preferência pelo texto ligeiro e pela face-vertigem dessa poesia, justamente os dois atributos que a direcionam para a arte de consumo, não de permanência. Diz ele que, neste momento, “O poema abandona pretensões de grandeza ou de grandiloqüência”, incorporando “o impuro, o pequeno, o obsceno” (p.245). Não o poema, desta forma assim absoluta: apenas uma determinada prática do poema – uma prática naturalmente vinculável à constituição cultural dos poetas que a assumem. Pode até ser o que esse momento tem de típico, mas não de melhor. E a antologia se pretende dos “melhores”, não dos mais típicos. Ele informa que, neste grupo, tentou se restringir “a apenas um poema por poeta”, ou seja: permuta, mais uma vez, o pólo da essencialidade pelo da representatividade; o panorama ao invés da seleção. Alguns desses nomes não teriam espaço numa antologia impessoal, não condicionada a idiossincrasias de grupo e de temperamento. O equívoco quanto ao conceito de cânone se repete aqui, e agora de maneira patética: ele afirma que “o poema típico do fim do século é pós-canônico, anticanônico ou paracanônico, jamais canônico” (p.245). Isso equivale ao absurdo de afirmar que não existe um cânone para essa vertente da poesia “do fim do século”. Existe: é essa miudeza generalizada reunida nesta última parte – com as três ou quatro óbvias exceções. E menos pelos textos que pelos nomes: aqui reaparece Drummond, não com outro grande poema, mas com “A bunda, que engraçada” (p.291). Como se deduz, há muito pouco em comum entre os textos reunidos em bloco – o que invalida o esforço de classificação. O que pretende apresentar-se como flexibilidade conceitual acaba desvirtuando-se em impressionismo – prática banida da crítica poética pela consciência estética exigida em nossa época. Não sendo nem escolásticos, nem estilísticos, nem geracionais, nem temáticos, nem grupais, esses subconjuntos são apenas arbitrários – como se vê claro na inútil tentativa de justificar a localização de Manuel de Barros (p.23). Esse subjetivismo acarreta a maior lacuna da coletânea: o épico pós-modernista. Ele evoca “a velocidade da comunicação e do fluxo de informações, que praticamente baniu a possibilidade de poemas longos ou com vocação épica obterem eco ou adquirirem relevância junto ao público leitor” (p.22) e deduz que “o poema curto (de uma linha a no máximo duas páginas) representa melhor o conceito contemporâneo de poesia, nesta era de transição, vertigem, visualidade e auditividade” (p.23). Não o conceito contemporâneo de poesia, também desta forma assim absoluta, mas apenas uma tendência da poesia contemporânea: a identificada com o hedonismo e a ligeireza da pós-modernidade, que gera aquele poema “não-canônico”, até de uma só linha. Pode até ser a tendência dominante – para a primeira geração a se formar entre o livro e a tevê – mas não a mais significativa, reproduzindo o que ocorreu com a Geração de 45: a tendência dominante é a esteticista, bem menos significativa do que a construtivista (João Cabral, Gilberto Mendonça Teles), a participante (Moacyr Félix, Ferreira Gullar, Thiago de Melo etc.) e a vanguardista (concretistas e praxistas). Portanto, se é a mais palatável numa postura consumista, é a menos satisfatória numa postura crítica. Wilson Martins (O Globo. Rio, 14.2.1998) identificou de modo definitivo o atributo básico desse segmento do “público leitor”: a frivolidade. O certo é que, com tal compreensão da poesia contemporânea, esta antologia acaba prestando um grande desserviço à nossa cultura, ao ignorar textos de alto nível poético, só por serem longos – e ele considera muito longos os poemas “com mais de 20 páginas” (p.19). 20 páginas: muito longos! Que adjetivo aplicaria a clássicos contemporâneos como Canto general? Ou The cantos? Ou a renascentistas como Jerusalém libertada? Poemas como Somos poucos de Carlos Nejar, Chão de espera de Gabriel Nascente, A grande fala do índio Guarany de Affonso Romano de Sant’Anna, Lições de espaço de Roberto Pontes, As marinhas de Neide Archanjo, Martu de Elizabeth Hazin, Almanaque poético de uma cidade do interior de Oswald Barroso, Táxi de Adriano Espínola, Antiuniverso de Fernando Py, Porantim de João de Jesus Paes Loureiro, Sísifo de Marcus Accioly (a grande saga épica da Geração-60, quase todos com mais de 100 páginas – o último tem 500), são poemas que exigem algum trabalho para ler mas honrariam qualquer literatura, e que não faltariam numa antologia mais criteriosa. Mas inclino-me a pensar que não se trata de opção e sim de desconhecimento: será que ele leu esses livros? Apoio-me em sua própria afirmativa de considerar “Poema sujo, de Ferreira Gullar, a mais bem-sucedida tentativa conhecida de poema longo feita por poeta brasileiro nas três últimas décadas” (p.23 – o grifo em “conhecida” é meu). Nenhum desses poemas aparece entre estes “melhores” do século. Morte e vida severina também não... É mais que “muito longo”! No entanto, e em mais uma incoerência, ele afirmara que “é no cânone que os textos mais longos encontram seu melhor habitat” (19). Ele acolhe 9 poemas de Drummond – e podia ser o triplo – mas deixa de fora sua obra-prima, que não é “A máquina do mundo” (texto que muita gente elogiou sem entender, pois, ao sonegar o que interessaria – o discurso da máquina – define-se como um simples álibi diante do inefável) mas “Nosso tempo”, bem como sua poética, que é “Procura da poesia”, ambos de A rosa do povo, e elege um texto tão envergonhado (o já mencionado “A bunda, que engraçada”) que o autor deixou para o publicarem depois de sua morte. Ele declarara, na Introdução, que trabalhou “na esfera da proteína pura” (p.20). Uma antologia de poemas deve ser trabalhada “na esfera” do poético – incluindo o impuro. De Bandeira, deixa de fora textos paradigmáticos como “Evocação do Recife” e acolhe a brincadeira do “Poema do beco” (são só dois versos); de Mário, ignora Café; de Vinícius, “O operário em construção”; de Faustino, “O homem e sua hora”. E de Cabral, bem: se a obra-prima de Cabral, que é um dos maiores poetas do século em todo o mundo, não é um dos 100 melhores poemas brasileiros do século XX (há quem considere que é o primeiro), então é preciso repensar o conceito de melhor. Ou de poema. E conferiu a “Luxo” de Augusto de Campos um destaque que o transforma no mais importante texto do volume, portanto do século, absolutamente injustificável (podia ter reduzido o corpo do tipo para caber na página); quase o mesmo, a esse exercício oco que é Galáxias de Haroldo de Campos (título e autor também destacados em página branca). Esse relevo aos concretos realça a exclusão do praxismo, ou seja: a incoerência. E transcreve 20 páginas do Poema sujo de Ferreira Gullar, num volume de 350 (com umas 60 em branco). Quantas teria que transcrever de Sísifo, se o conhecesse? No mínimo, 40. Mas é na preferência por textos de referência homossexual que mais se evidencia a predominância do gosto pessoal do organizador. Já vimos o que foi “pescado” de Drummond; de Faustino, ignorou o magnífico poema (na citada edição princeps tem 9 páginas!) que dá título a seu único livro e elegeu um soneto em que o protagonista divisa “o adolescente, / A rir, desnudo” (p.135); de Mário, ignorou Café e elegeu um “Soneto” em que o protagonista exibe seu “encanto” em face de um “corpo nu de adolescente” (p.103); de Glauco Mattoso, um “Soneto futebolístico”, onde o protagonista inveja “os massagistas dos Pelés” e se contenta “em chupar o polegar / do pé” (p.325); de Roberto Piva, um texto em que o protagonista “iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos” (p.252); e no poema pinçado para “representar” o cordel, um gênero reconhecidamente viril, pelo menos na tradição nordestina, “Quando menos esperava / Totonho engravidou” (p.255). Está claro que esses textos não foram escolhidos por razões estéticas, mas ideológicas: esse grotesco cordel aí, como exemplo, quebra freqüentemente a métrica da redondilha – falha que um cordelista de gênio, como Patativa do Assaré (é da minha terra mas já desfruta de um certo reconhecimento crítico fora dela), não cometeria. Ou seja: se, no que concerne à poesia “erudita” do momento, ele destacou a vertente dominante (não a mais expressiva, que é o poema longo), no que concerne ao cordel ele preferiu uma tendência inexpressiva (não a dominante, que é o poema heróico), em mais uma incoerência. E o título da obra não promete uma antologia ideológica (poemas a serviço disso ou daquilo), mas estética (“os melhores”). Se, na Introdução, o organizador fizesse essa referência temática, não poderíamos estranhar. Ele se reporta diretamente à “geração marginal” e à “revolução feminista” (p.19), mas não tem uma palavra sobre a poesia de tendência homossexual. Conclusão: esses textos entraram não por serem dos 100 melhores poemas do século, mas por servirem a uma causa a que a obra não se propõe. Isso estabelece um óbvio contraponto com a exclusão de mulheres: o percentual de nomes femininos na antologia é de pouco mais de 20%, quando todos concordam com o fato de que a poesia de autoria feminina atingiu um alto nível no século passado, com uma quantidade razoável de nomes de valor. Ele incluiu 12 poet(is)as, e omitiu pelo menos outro tanto – e algumas com um grau maior de reconhecimento crítico-histórico: Francisca Júlia (os Mármores são do século XIX mas as Esfinges, que não são apenas uma reprodução com outro título, são de 1903), Adalgisa Nery, Renata Pallottini, Lupe Cotrim Garaude, Lélia Coelho Frota, Orides Fontela, Myriam Fraga, Lucila Nogueira, Elizabeth Veiga, Neide Archanjo, Elisabeth Hazin, Astrid Cabral, Tereza Tenório, Denise Emmer, Marly de Oliveira e algumas outras. No Brasil, já tivemos antologias poéticas a serviço de muitas causas: da infância, da família, da pátria, da religião, do amor, dos prisioneiros, do proletariado, da revolução... Mas eram antologias temáticas, que se destinavam a essas causas e se assumiam como tais. Não é o caso desta: aqui, é como se o organizador estivesse apenas insinuando. Que abrisse uma 5a seção para abrigar esses textos, com um subtítulo definidor. Quando, na década de 50, publicou pela Oxford a sua famosa antologia da poesia inglesa, Auden evitou o proselitismo: não misturou critérios estéticos com critérios sexuais. Antes de datar os poemas escolhidos, o organizador chama a atenção para o fato de que muitos começam a atuar antes de incluídos em livro, publicados em revistas e jornais. Esperamos então registros rigorosos, que levassem na necessária consideração essas publicações prévias (principalmente envolvendo textos publicados em periódicos de Oitocentos mas em livro só em Novecentos), numa antologia de rígido corte sincrônico. Mas o que vemos é uma inaceitável distorção de datas e uma lamentável mixórdia de fontes. Mencionarei apenas 2 casos. 1o) Ele se reporta especificamente ao ano de 1930 e data desse ano (p.340) o poema “No meio do caminho”, de Drummond, referido por Sentimento do mundo (Rio, Record, 1999). O poema é de Alguma poesia, que é de 30 (Belo Horizonte, Pindorama, p.59), mas fora publicado antes no no 3 da Revista de Antropofagia, em julho de 1928, e logo na primeira página. Todos hão de lembrar a repercussão dessa revista. 2o) O “Soneto de fidelidade”, de Vinícius, está datado de 1957 (p.341), citado de um Livro de letras (São Paulo, Companhia das Letras, 1991). Trata-se do primeiro texto do livro Poemas, sonetos e baladas, que é de 1946 (São Paulo, Ed. Gaveta). Além da impropriedade da fonte (que o citasse ao menos pela antologia do poeta, já que não consultou nem a edição princeps nem a Obra poética), o que é que faz um soneto como este num livro de letras? Só porque foi intercalado pelo autor numa canção? Há outros, mas bastem esses. O volume não traz informações sobre os poetas – o que se pode tolerar, já que a antologia é de poemas. O autor imagina um “marciano” para seu leitor ideal – alguém que “teria por característica básica não conhecer nada ou quase nada da melhor poesia literária de seu país” (p.16) antes de ler esta antologia. Como esse marciano seria “brasileiro de nascença” (p.15), podemos supor que conheça alguma coisa de outras áreas de nossa civilização – de música popular, de futebol, de automobilismo, de tênis, de vôlei, de carnaval. Vai se decepcionar: “Pensei que um povo tão elevado em outros setores da cultura tivesse uma poesia melhor!” Pois fique sabendo, caro/a marciano/a, que tem – mas fora, bem longe desta indigente antologia. Ele chega a imaginar que “agradando a tal figura, estaria agradando a todos os demais leitores” (id.) – suposição ingênua demais para um antologista que é também professor de literatura: é como se se pudesse agradar igualmente a um leigo e a um especialista. Provável inconsciente intenção: conduzir, não informar, esse pobre leitor, que não sabia nada “da melhor poesia literária de seu país”. Vai ficar sabendo muito pouco. E muito mal. Mas não se poderia esperar nada melhor de um seletivo “olhar contemporâneo” (p.19) que não apenas considera poema (e dos melhores!) uma peça que tem por título a palavra “Argumento” e por texto (por todo o texto!) a seqüência de palavras “Mas se todos fazem” (p.327, sic). Se isto é um dos 100 melhores poemas brasileiros do século, coitadinho do século. E o autor considera o conjunto de sua seleção como poemas “incontornáveis, definitivos, inesquecíveis” (p.16). Para ele. Uns 40%, se tanto, para um leitor mais exigente. Se
esses são os 100 melhores poemas brasileiros do século XX,
coitadinha da poesia brasileira do século XX. A sorte é que
não são: são os 100 preferidos do organizador.
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A segunda, com seleção de José Nêumanne Pinto, textos introdutórios e notas biobibliográficas de Rinaldo de Fernandes, pesquisa de Sandra Moura (São Paulo, Geração Editorial, 2001. 324p) elege poetas e apresenta apenas um texto de cada um. Esta é ainda mais precária que a outra. A começar pela apresentação do organizador (“Uma demão de prosa”, p.11-17), que mais parece um pedido de desculpa, em 5 das situações em que se envolveu: 1a) ao considerar “frívola e precipitada” a decisão de aceitar o convite do editor; 2a) ao apresentar-se como “um profissional do jornalismo e literato amador”; 3a) ao confessar que, ao “dar o pontapé inicial à tarefa”, a primeira imagem que lhe ocorreu não foi, por exemplo, a da obra em mãos de leitores, mas “a do adolescente 35 anos mais jovem” catando livros onde praticamente não havia; 4a) ao incluir bissextos e ter que identificá-los como “não-poetas”; 5a) ao incluir certos nomes por sugestão de amigos, abdicando, se não de suas convicções, ao menos de sua iniciativa. Ele demonstra uma tão plena consciência dessas fragilidades que se preparou: “Que venham as pedras” (p.16). Ao lado da apresentação, as notas introdutórias do colaborador. Ele dedica 20 linhas ao Pré-Modernismo, 3 ao Modernismo, 6 à Geração de 45, 6 à Vanguarda, 11 aos Contemporâneos e 1,5 aos Poetas Populares. Parcimoniosas como são, essas notas são equivocadas como não poderiam ser. Os poetas estão agrupados em 6 seções: 1a) “Pré-Modernismo” – onde se misturam parnasianos (Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Vicente de Carvalho, o último Machado de Assis), simbolistas (Alphonsus de Guimaraens, Da Costa e Silva) e pré-modernistas propriamente ditos (Augusto dos Anjos, Raul de Leoni) e outros. A nota tenta justificar a injustificável mistura recorrendo à primeira das duas acepções (temporal e estética) do prefixo pré- para considerar pré-modernista “a produção do século XX” (p.23) de poetas como os parnasianos e simbolistas mencionados. Não é: o sentido temporal do conceito só se aplica aos poetas situados entre o simbolismo e o modernismo, os quais – sem terem criado uma nova escola – reviveram todas as nossas poéticas do passado e, por isso, são rotulados de neo. E se apóia em Alfredo Bosi, que os encara não como “neo” mas como “ainda” parnasianos ou simbolistas (p.23). Como “ainda”? Aí estão fundadores (Bilac) ou nomes da primeira hora (Alphonsus). Não podiam figurar num grupo com esse epíteto: têm identidade própria. Era preciso ter aberto mais duas seções: uma para os parnasianos, outros para os simbolistas. Do ponto de vista do século, são remanescentes. Pré-modernistas são uma Gilka Machado, um Martins Fontes, um Amadeu Amaral, um Moacyr de Almeida, um José Albano, um Olegário Mariano, um Hermes Fontes – que foram excluídos. 2a) “Modernismo” – onde se reúnem “Poetas ligados à Semana de Arte Moderna e que se inserem na chamada ‘fase heróica’ do nosso Modernismo (anos 20) e poetas da segunda geração modernista (anos 30)” (p.68). Esta seção abre, no entanto, com um poeta da Geração de 45, que não obteve maior reconhecimento fora do Ceará: Antônio Girão Barroso (que aparentemente teria entrado por insinuação de Mário Pontes), nascido no final da faixa de nascimento da Geração Modernista (em 1914: portanto, com 8 anos na época da Semana) mas que estrearia já no início da faixa de estréia da Geração de 45 (em 1938: Alguma poesia. Fortaleza, Edésio Ed.). Além dessa impertinência, os poetas “de 30” não compõem uma “segunda geração modernista” (apenas 8 anos de intervalo?) e sim o seu segundo momento: eles compõem com os “de 22” uma mesma geração – a única geração modernista. A seguir, abriga os grandes nomes de nosso Modernismo, mas é mais um antologista a ignorar Adalgisa Nery. Será que eles leram Mundos oscilantes? 3a) “Geração de 45” – “Poetas que amadureceram durante a II Guerra Mundial” (p.133). Ninguém amadurece no curto espaço de 6 anos. Durante a guerra, que encontra a geração em média na casa dos 20 anos, eles não amadureceram: estrearam (Cabral em 1942, com 22). E aqui não está a “Geração de 45”: apenas 11 nomes do seu segmento esteticista (tanto assim que dele excluíram Cabral), pois foram apenas os poetas deste segmento que, dentro da geração, “partiram para uma poesia tradicional” e que constituíram “o principal alvo da vanguarda concretista” (id.), movimento criado por nomes desta mesma geração. 4a) “Concretismo, Neoconcretismo, Práxis e Poema-Processo” – Movimentos da “Vanguarda dos anos 50 e 60 que renovaram a poesia brasileira” (p.157). Do Neoconcretismo foi excluído Affonso Ávila e de Mário Chamie foi escolhido um poema fora do Praxismo. 5a) “Contemporâneos” – onde se incluem outros nomes da Geração de 45, alguns da Geração-60 e um da Geração-80, subdivididos em três grupos: “1) poetas que, embora ligados de início às vanguardas (...), não fazem parte do núcleo principal dessas vanguardas e retomam depois o verso discursivo; 2) poetas que, situados inicialmente na geração de 45, renovam-se e partem para outras experiências; 3) poetas que começam a publicar depois de 1970” (p.173). Antes de tudo: ao rotular esses poetas de “Contemporâneos” (misturando assim designativos estéticos e cronológicos, como faziam os historiadores impressionistas até princípios do novecentismo), é como se os dos outros grupos fossem remotos antepassados, quando alguns são não apenas coetâneos mas até mais jovens. Quanto ao 1o grupo, ele cita os nomes de Affonso Ávila e Affonso Romano de Sant’Anna, mas Ávila faz parte do “núcleo principal” do Neoconcretismo; e esquece que, em alguns momentos, os concretistas (cf. Haroldo de Campos: A educação dos cinco sentidos. São Paulo, Brasiliense, 1985) também voltaram ao verso discursivo; quanto ao 2o, é como se alguns desses poetas de 45, ao se retiraram da linha geracional dominante, tivessem praticado o prodígio de se retirarem também da própria geração – caso típico de Cabral, que ofereceu a mais lúcida solução do problema, numa entrevista a Antônio Carlos Secchin, que cito entre as epígrafes de Sincretismo (p.18): “Pertencer a uma geração é um fenômeno biológico: não se pode mudar o ano de nascimento”; deste grupo foram excluídos dois significativos nomes da Geração-60 (Adriano Espínola, que aliás aparece no último número da revista Cult bem distante do grande poeta de Em trânsito, e Marcus Accioly, que ainda este ano publica Latinomérica, o primeiro poema brasileiro que se pode aproximar da Ilíada, da Odisséia, da Eneida, d’Os Lusíadas e poucos outros), todo o seu segmento vanguardista e quase todo o alternativo; quanto ao 3o, inclui apenas um nome da Geração-80 (Alexei Bueno) e, neste caso, ele está certo: o melhor dessa geração deve ser o que ela vier a produzir na faixa de maturidade – portanto, já no século XXI. Só que quem devia explicitar isso eram os organizadores, não um crítico. 6a) “Poetas Populares” – seis poetas de cordel. Tão precárias quanto as notas às seções, são as notas aos poetas. Citarei apenas uns 4 casos: 1o) na bibliografia de Alberto de Oliveira (p.25), o pesquisador aponta “Principais obras”, mas relaciona seus 4 primeiros títulos e as 4 séries das Poesias, que compreendem a obra toda (com a óbvia exceção da Póstuma). Mas ele chama a 1a série de Poesias completas: é apenas Poesias (Rio, Garnier, 1900). E, pois que informa que esta exclui as Canções românticas, deveria ter informado também que acrescenta os inéditos Por amor de uma lágrima e Livro de Ema; e que, por exigência do editor, na 2a edição (1912) a obra de estréia seria recuperada (desfazendo a falsa impressão – deixada pela antologia – de que fora expurgada para sempre), e que o Livro de Ema fora transferido para a 2a série (1906). 2o) Sem dizer que se trata da 2a, ele afirma (p.50) que a edição definitiva das Poesias de Olavo Bilac é a de 1902. De fato, por acrescentar três inéditos (“Alma inquieta”, “As viagens” e “O caçador de esmeraldas”) à princeps, ela exibe na folha de rosto a indicação de “edição definitiva”, mas deve-se entendê-lo como projeto do autor no momento dessa publicação, pois definitiva mesmo seria a 7a, de 1921, que traz a indicação de “revista” (corrigindo erros das anteriores, como a incrível omissão da palavra “inspire” no 2o verso da 28a estrofe da “Profissão de fé”: p.5 da 5a, de 1913) e incorpora pela primeira vez o póstumo Tarde, de 1919, exatamente em suas últimas 100 páginas (283-383). 3o) Sem precisar por qual ou quais críticos, afirma que Raul de Leoni (p.62) “é considerado o nosso último parnasiano de relevo”. Na eclética lírica de Leoni, os estilemas predominantes são, nesta ordem, o clássico (na permanente altivez do espírito), o simbolista (na melodiosidade da expressão), o romântico (em certa melancolia diante do ideal inatingível) e o pré-moderno (na antecipação de certas configurações sociais de nosso tempo); o parnasiano é o mais tênue (apenas na correção da forma e na depuração da linguagem – que não são privilégio do Parnaso): ele não escreveu um só poema em verso alexandrino e nenhum de seus magníficos sonetos, que representam quase 66% dos títulos de Luz mediterrânea (Rio, J. R. dos Santos, 1922), é parnasiano, e os restantes 34% são quase todos de um polimetrismo tão pessoal que toca o versilibrismo. 4o) Na bibliografia de Cecília Meireles (p.63), ele enuncia “Principais obras poéticas” e começa com Espectros (1919), Nunca mais e Poema dos poemas (1923) e Baladas para El-Rei (1925). São os três primeiros livros da autora, produções da juventude (entre os 18 e os 24 anos) que ela mesma excluiu na reunião de sua Obra (que lucidamente especificou como poética e não completa) e que, portanto, não podem ser relacionadas entre suas “principais obras poéticas”. É claro que essas notas deveriam relacionar a obra completa de todos os autores: a antologia é de poetas, não de poemas. Os critérios seguidos não estão delineados. Há apenas uma referência explícita, e de ordem bibliográfica, não estética: retirar os poemas “de edições dos autores” ou “de algumas antologias” (p.19). Isso não configura um critério de seleção – e de que outra fonte (excetuando-se as reescrituras e os inéditos) haveriam de retirá-los? Um outro seria o de dispor os poetas em ordem alfabética – uma cômoda e contraproducente solução, que impede a percepção das relações de dependência e vinculação escolástica ou estilística entre eles, operadas no tempo histórico. A ordem ideal é a de publicação. A coletânea oferece apenas um poema de cada autor. Está certo, já que é de poetas: a presença (ou ausência!) deste ou daquele texto passa a ser menos importante que as deste ou daquele nome. Mesmo assim, não podemos ignorar o caso de Neide Archanjo: entre tantas expressivas páginas, foi extraído de um longo poema um texto de quatro versos, cada um com uma palavra (p.261), que não diz tudo que encerra ao ser privado do seu contexto. E, se é de poetas, era necessário um enfoque analítico sobre todos eles: apreciações críticas que justificassem para o leitor a escolha de cada um como um dos 100 “melhores”, e não meras notas biobibliográficas, onde a crítica se reduz a breves citações – uma cessão da palavra. Talvez que o equívoco maior desta obra resida na relação entre o título e o conteúdo: se ele selecionou poetas e não poemas, por que incluir bissextos? Se ele mesmo os considera como “não-poetas”, o que fazem numa antologia de poetas, e dos melhores? Alguém da área de filosofia colocaria um não-filósofo numa antologia dos melhores filósofos? Se fossem poetas, seriam “contumazes”, não “bissextos” – para continuar com a terminologia de Bandeira. Se fosse de poemas, como a outra, caberia uma ou outra esporádica obra-prima, mas não é o caso. Com essa decisão, ele repete o equívoco do organizador da de poemas: confundir essencialidade com representatividade. Numa antologia com esse título, ninguém pode representar a outro: só a si mesmo. Em suma: ao eleger este ou aquele poema, ele esqueceu que seu projeto era de seleção de poetas. Segundo informação de Arnaldo Bloch (“O verso do século”. O Globo – Caderno “Prosa e Verso”. Rio, 10.3.2001), a obra foi preparada “a toque de caixa” para a Bienal Internacional do Livro do Rio, em maio desse ano. Este fato, que é grave, já seria suficiente para comprometer uma coletânea deste tipo. Aliás, a primeira também foi lançada na Bienal. Assim como a organização de uma antologia de textos de jornalismo político não é tarefa para um profissional da poesia, a da poesia de um povo, ao longo de um século, também não é tarefa para jornalista, por mais brilhante que seja, como Nêumanne, muito menos para “literato” e, ainda mais, amador e, mais ainda, “a toque de caixa”. Isso, ao mesmo tempo, justifica as falhas do projeto e absolve seu autor. Mas se ele mesmo considerou “frívola e precipitada” a subitânea decisão de aceitar o convite, deveria ter repensado. Conclusão: como ocorre com a outra, aqui também não estão os 100 melhores poetas brasileiros do século: estão os 100 preferidos do organizador, com uma ou outra intervenção de amigos ou especialistas. E ele teve a lucidez de reconhecê-lo e proclamá-lo: “Esta é, em resumo, uma verdade minha. Não terá de ser forçosamente de ninguém mais” (p.12). Perfeito. Essas duas antologias têm muita coisa em comum, além da onisciência dos títulos. Destaco uma: a presença do cordel. Poetas “da feira-livre” (como os chama o organizador da segunda – p.16) entre poetas de academias. Como nordestino, sou suspeito para afirmar que há cordéis melhores que muitos dos “poemas” destes florilégios, acadêmicos ou não, mas – ainda que ele ressalte que a proposta do editor “nunca foi escolher os ‘100 melhores poetas eruditos do Brasil’” (p.17) do século passado – por que misturar as coisas? A ciência, inclusive a literária, procede por classificação – como ambos tentaram fazer, agrupando poetas por escolas e poemas por algo meio nebuloso. Alguém, com o tolo argumento de que tudo é poesia, incluiria um poeta erudito numa antologia de cordelistas? Agora, se “O homem que deu à luz um menino”, de Manoel Caboclo (p.253 da de melhores poemas), é melhor poema que Morte e vida severina, e se Zé da Luz, autor de “Brasí Cabôco” (p.311 da de melhores poetas), é melhor poeta que um Moacir de Almeida ou um Marcus Accioly, então é preciso repensar também a identidade do poeta. Grande mérito destas crestomatias: fazer repensar conceitos. Só que esse mérito concerne ao repensar quando os conceitos é que precisam ser corrigidos. Pois se incluíram o cordel, deveriam ter incluído também letras de canções, grafites, trovas populares... Letras como “Construção”, de Chico Buarque, são superiores a grande parte dos “poemas” aqui selecionados. E há muita quadrinha genial nos tapumes das megalópoles e em portas de banheiro das Faculdades de Letras. Os antologistas conhecem os excluídos: então, revelam um gosto que limita com a ausência de senso crítico; mas, se desconhecem pelo menos um dos mencionados, revelam que não têm credencial para organizar antologias poéticas, muito menos com esses bombásticos e apelativos títulos. Será preciso que leiam mais. Certo estava Décio Pignatari, ao rejeitar sua inclusão em ambas: “Não autorizei, não autorizo e não autorizarei minha participação nessas antologias apressadas e precipitadas. É tudo em cima do laço. Acabam sendo atos mercadológicos. Os critérios são vagos. (...) Precisamos de antologias mais seletivas, para evitar o risco de uma obsolescência muito rápida” (O Globo. Rio, 10.3.2001). Mas não apenas para isso. Para se ter uma idéia ainda mais precisa da não-significância destas coletâneas, bastaria fazer um confronto com outra – já nem digo de 100 melhores poemas brasileiros do século XX, mas do XIX. Claro que não dava para confrontar com outra de 100 poetas, mas com outra de 100 poemas, imaginemos: uns 10 de Gonçalves Dias, uns 20 de Castro Alves, uns 20 de Olavo Bilac (com os dois “roubados” pelo século XX), uns 10 de Raimundo Correia, uns 5 de Machado de Assis (os de Ocidentais foram publicados em livro já no século XX mas muitos o foram na Revista Brasileira ainda no XIX), uns 20 de Cruz e Sousa e mais uma ou outra obra-prima de um Álvares de Azevedo, um Fagundes Varela, um Casimiro de Abreu, um Junqueira Freire, um Alberto de Oliveira, uma Francisca Júlia, um Alphonsus de Guimaraens... Chega: com essas duas aí, o século XX – “o século de ouro da poesia brasileira” – ia perder feio. É que meteram muito cascalho no meio do ouro. E ignoraram muitos diamantes. Claro que ganharia, mas com uma antologia autêntica. Isto é: impessoal. Ambos os organizadores ressaltam o problema da subjetividade da escolha, o gosto pessoal etc. Há uma maneira muito simples de resolver esse dilema, quanto aos poetas vivos: é só transferir para eles mesmos a tarefa de selecionar seus textos. Em suma: estas antologias são dois crimes contra a poesia brasileira – crimes que jamais seriam cometidos contra a filosofia, a economia, a política: nessas áreas – vedadas ao impressionismo – um editor sério não publicaria coletâneas tão lacunosas e tão equivocadas. Será que essas editoras não têm um Conselho Consultivo para a literatura, que evitasse erros tão primários? Se chegarem ao exterior, vamos afundar mais ainda no conceito que de nós formula o Primeiro Mundo. Para serem fiéis a suas respectivas “seleções” e a seus “critérios”, uma devia se chamar Os cem melhores poetas brasileiros que eu acho; a outra, Os cem poemas brasileiros que eu mais gosto. Assim mesmo, com essas redações: ostentariam, nos títulos, o que de fato são – preferências pessoais, não seleções críticas. E não afetariam nem a credulidade nem o bolso do leitor. E, para não se exporem à profanação dos outros, que não têm as mesmas preferências, guardá-las (como sonha o organizador da primeira – p.22), mas apenas para si, para seu íntimo deleite. Antologia pessoal é outra coisa: da própria obra, não uma seleção personalista da obra de outro/s. E este acaba sendo o defeito maior deste tipo de antologia. É que são seleções elaboradas de fato sob um único e não-assumido “critério” – o da empatia pessoal: o gosto, quanto aos mortos; o relacionamento, quanto aos vivos. Os organizadores deixam transparecê-lo nitidamente, nas referências introdutórias aos amigos e colegas. Pode-se elaborar assim arbitrariamente a antologia da própria obra, mas não da obra alheia. Esse personalismo contagia grande parte da atividade intelectual do Brasil de hoje, movida por estratégias grupais. É como se pensassem: precisamos dar força aos nossos companheiros e enfraquecer os concorrentes/inimigos. O mérito poético – referencial a ser observado em primeiro plano – fica em segundo. E tudo se dilui no voluntarismo e na arbitrariedade: uma antologia de “pedras de toque” de nossa poesia, publicada nos anos 90, inclui trechos de letras de música, de peças de teatro e até de crônicas. O organizador resolveu acabar com os gêneros literários, que têm sua especificidade mais profunda radicada em atributos distintos da própria condição humana. Ao
ler este texto no original, o editor José Mario Pereira, da Topbooks,
me propôs: “Pois agora faça você outra antologia, como
julga que deve ser”. Prometi, para daqui a uns cinco anos. Antecipo que
os poetas que aceitarem participar serão solicitados a escolher
seus próprios poemas.
Em@il do Lyra: pedrowlyra@hotmail.com Em@il do Moriconi: italomori@ax.apc.org Em@il do Neumanne: neuman@estado.com.br Em@il do editor: jpoesia@secrel.com.br |
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Não vou entrar em rota de colisão com o reclamante. Ele vinha tendo alguma razão, mesmo contando com certa ingenuidade ao crer que pudesse ele mesmo abstrair o critério pessoal ao montar uma antologia - como selecionar sem exercer preferência? -, mas vinha tendo razão nos comentários, não tanto pela falta de critério mas pela condição leviana de uma contradição sistemática, um estar a ver navios quando se trata de avaliar o que de fato houve no desenrolar de nossa trôpega tradição literária. Mas toda e qualquer razão que acaso pudesse ter foi para o mais longínquo espaço quando empunhou o bastão da TFP (Tradição Família Propriedade) e evidenciou a condição homossexual do Moriconi. Tornou-se então um canalha da pior espécie, desmerecendo qualquer ato zarolho de compaixão. Além disso, pelas preferências declaradas, deu para compor a antologia do reclamante. As leituras equívocas da parte dos dois antólogos são visíveis. No entanto, o reclamente propõe substituições de nomes que não ultrapassam justamente o que ele questiona: a interferência direta (ou única) da preferência pessoal. Muitos autores citados pelo reclamente não justificam senão o referido artifício. Assim é que levamos sempre o assunto para a mesma retórica de quermesse: meus poetas preferidos são melhores que os teus. Este raciocínio banal da parte do reclamante, somado a seu preconceito virulento e uma péssima visão de mundo em termos do que se passa nas entranhas de uma história da poesia na América Latina, torna quando menos risível qualquer mínima consistência a ser considerada em seu discurso. É algo lamentável porque toca - ainda que os exemplos sejam pobres - em pelo menos duas condições de exceção de nossa poesia: o verso de larga extensão (nem sempre épico) (e mesmo aí teríamos que pensar em uma atualização do épico, como já sugeria o nicaragüense Pablo Antonio Cuadra ao falar de uma épica desmitologizada) e a prosa poética ou poema em prosa. Nem os reclamados nem o reclamente deram pela presença desse último componente. Não estou aqui citando um único nome por uma simples razão: o que temos a discutir não são preferências pessoais, mas antes o grau de interferência de estilos, épocas, gêneros e demais fatores, muitos dos quais extra-literários. Quando esquecermos todos os nomes e nos concentrarmos nessa perspectiva que proponho, então estaremos um pouco mais próximo de compreender o que se passa com a poesia brasileira. Claro, o que se passa com a metodologia de antólogos e editores é outro problema. E não poderemos discutir este outro assunto enquanto não tivermos consciência do que somos ou representamos. De uma maneira geral - a exceção seguirá em seu valioso papel de confirmar a regra - os poetas brasileiros são ingênuos uns, descomprometidos outros e virulentos na maioria. Rejeitar diálogo ou ignorar a presença do outro são aspectos que se confudem em nossa medíocre realidade, e aí podemos pensar nas relações entre simbolistas e parnasianos, na ingenuidade que seja atribuir caráter iconoclástico aos nossos modernistas, na ignorância completa em relação aos desdobramentos estéticos da América Hispânica - aspecto este que nos faz pensar que sejamos geniais em certas condições estéticas -, abstraídos de todo critério quando nos impressionamos com a frívola cascata de resmungos ou subprofanações dos anos 70 e o academicismo doentio reinante logo em seguida.
Há muito o que ser discutido a sério sobre a poesia brasileira,
que está diretamente ligado à realidade deste país
como um todo. Nossos poetas se parecem com nossos políticos, não
há dúvida. Nossos editores, nossos historiadores, nossos
leitores. Todos se espelham nas lições do Planalto. Nem de
longe esquecer nossos jornalistas. Discutir sobre as preferências
de um antólogo é cair em um patético lugar-comum.
O reclamante torna-se débil pelo próprio impulso de seu resmungo.
A conversa a sério ainda estamos nos devendo.
Floriano
Martins
E@il
do Lyra: pedrowlyra@hotmail.com
Em@il do Moriconi: italomori@ax.apc.org Em@il do Neumanne: neuman@estado.com.br Em@il do editor: jpoesia@secrel.com.br |
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