Dutra e Melo


A Noite

Luminoso esteirão mal deixa ao longe, De ouro e púrpura aceso, o vasto carro Em que o Dia cercado de seus raios Pelo éter passeia: E a Noite melancólica e sombria, Colhendo sobre a fronte, os soltos cachos Dos úmidos cabelos, Em tomo aos ombros ajeitando o manto Lança às rédeas a mão, solta a carreira A seus negros ginetes. Enquanto despeitosa murcham, pendem Nas campinas as flores, Enquanto um suspirar surdo e longínquo Lamenta a ausência do esplendor do dia, Lúcidas brilham trêmulas estrelas De faróis lhe servindo — Ai! como é triste A solitária marcha da amargura Que abatida percorre a linda noite! Seus negros olhos e a carroça ebânea Que pelos céus a tira, As suas lonas roupas tenebrosas, Olhos desviam que o fulgor da Aurora Rutilante convida. Oh! ninguém busca vê-la — Aves e plantas, Homens, tudo a abandona! Ingratos, fogem Como ao leito mortal do extinto amigo. Tú és, ó Dia, o predileto encanto Da natureza inteira; Todos amam colher as áureas flores Que as rodas do teu carro à terra lançam; Para o teu rutilar voltam-me os olhos, E ninguém busca a Noite. — O sono os prende Enquanto vagaroso vai seu plaustro As campinas do céu plácido arando. Mas tu me és sempre deleitosa e cara, Noite melancólica; a minha alma Atrativos em ti descobre ansiosa. Não ama o pirilampo a luz do dia, Nem as aves da morte então soluçam! Noite amiga dos homens! — No silêncio, Na calma vaporosa que desdobras, No sossego dos campos, das florestas A vida interna saboreio ardente. Só então vive o espírito do homem; Tenaz rebenta o pensamento algemas; Linguagem da ternura e sentimento Lhe fala o coração nas doces horas; Surge a contemplação dos seios da alma Em cujas dobras cerra-se aos combates Da vida labiríntica do mundo; E fresca mão na fronte vem pousar-nos Mansa a filosofia animadora. Noite amiga dos homens! — Teus mistérios Coração de quem ama não deslembra. Podem muitos cantar-te em liras de ouro Enlaçadas de brancas sempre-viva, De perlas, não de lágrimas, bordada; Sons de fogo arrancar das lisas cordas, Confiá-los à brisa das cidades, Sem que um riso de mofa os enregele; Correr dedos na lira olhando uns olhos, E ver descer um beijo, e as mãos queimar-lhes. Mas eu na harpa de bronze dos finados, Onde a roxa Perpétua, onde o suspiro Abrançando a saudade entrelaçam, Donde um véu cor da morte à terra desce, Eu só posso cantar fúnebres cantos, Carpidas nênias que o feliz desama, Só, no campo, e lá quando abrindo as asas Tu me acolhes saudosa, ó Noite, esperto Essa lembrança que só tu conheces, Que eu guardo, e que uma tumba nos comparte. Noite amiga dos homens! Quando imperas, Maior o Criador se nos antolha. Que importa do teu Sol a pompa, ó Dia? Essa luz triunfal de resplendores, Esse golfo da vida pra os sentidos? Que importa esse brilhar da atmosfera, Esse vário matiz que adorna a terra? Perde-se a alma encarando o firmamento, Quando, ó Noite, o sombreias. — Vê brilhando Milhões de estrelas, que a distância imensa Minora a vista luminosa facha, Que em tomo a infindos sóis, infindos mundos Abismando a razão, lhe patenteia. E tu, mágica chave das ciências, Tu, vasta analogia, Que véus não rasgas, desdobrando à vista Mistérios que o entrever mais engrandece! Noite, ó Noite formosa! — Eu, que amo os astros, Eu, que neles suspeito mais que as luzes, Não sei te abandonar, pois, refletindo, Prezo ver nesses globos outros mundos Mais felizes que o nosso — onde outros seres Mal, dor, pecado e morte não conheçam; Onde o sopro da dúvida não tolde A argêntea luz da cândida verdade; E onde a hipótese louca e ambiciosa Criações moribundas não produza. Noite amiga dos homens! — Teus altares Não se mancham de tantos malefícios Com que as aras do Dia se deturpam. Unes o esposo à esposa, e aos dois a prole; A família vê juntos os seus membros, Irmãos, imito, em doce entretimento, Fruem prazeres que interrompe o Dia. Riso, amizade, e gosto sobrevoa Nessa amena tranqüila sociedade. A alma se acrisola e purifica Das escórias que o Dia lhe injetara. Noite amiga dos homens! — Grato o sono De teu carro debruça-se na terra; Quem fadigas e penas por minutos Contou no dia, — quem deseja a morte, Quem deseja acalmar o pensamento, Pertinaz suicida, espelho ustório Onde os raios de mim longes desgraças Vêm franger-se e abrasar uma alma fraca; Quem deseja num caos submergir-se, Ver o que ama, fugir o que detesta, Busca a sombra propícia do teu manto. Então é que ele frui tréguas aos males; Então é que o sossego alguns momentos Visita o coração do desditoso; Que essas almas que os homens não conhecem, Lassas do mundo já na tenra idade, Sob as asas do sono o mundo olvidam. Noite amiga dos homens! — Pensa o vate, Supremo fogo desce-lhe na fronte, Quando plácida reinas. — Turbulentas, Mil imagens descrevem-se nos ares, Ante a vista em figuras deslumbrosas: A lucerna do sábio, radiando, Assiste à criação d'altos mistérios, Lucubrações do gênio, ardente estudo, Em que os séculos pálidos, mirrados, Pelas mágicas fórmulas de análise, Recompondo o esqueleto, ressuscitam. Noite amiga dos homens! – Quando a Lua Iluminaste a rota solitária, Então vibras dest'alma a última corda. Então nem mesmo tu, ó poesia, Nem tu, divina música, soltaras Som que os sons imitasse desse harpejo; O céu cheio de nuvens como o oceano, Que devora uma nau, cheia de espólios; O mar, em que argentina se prolonga Essa imagem da luz — e ela tão linda, Tão sã, tão melancólica, tão pura!... Noite, ó Noite formosa! — mesmo quando Não tivesses tão grande majestade, Bastara o melancólico silêncio, O calmo rutilar de teu luzeiro, Para minh'alma te sagrar seus hinos; Bastara duma lágrima a lembrança, O passado surgindo ante meus olhos, E esse nome que então murmuram sempre A aragem frouxa, as ondas sonolentas. Tu, só tu, bem no âmago do peito, Vês a serpe roer-me o engenho e a vida; Vês gotejarem sangue ainda as fridas De punhal traiçoeiro em mão de amigo. Oh! vem pois com teu bálsamo saná-las; Vem, ó Noite propícia, consolar-me, Té que a Noite no túmulo me salve De um mundo que me esmaga, e que eu detesto.


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