A silenciosa revolução
da literatura na Internet
Para o meu
amigo Wander Melo Miranda
Partimos do reconhecimento prazeroso de que, mesmo no ambiente de fluxos infoeletrônicos intermitentes em que vivemos, a literatura tradicional
continua fascinante e insubstituível. Através de palavras
gravadas no papel, podemos nos mover pelo que Mario Vargas Llosa definiu
como “as mais belas paisagens da imaginação”. É impossível
abandonar o contato suave com a superfície lisa, a capa fosca ou
brilhante, as folhas brancas encadernadas, a lombada, os marcadores...
Devemos, porém, admitir que o mundo das letras já não
gravita apenas em torno de livros impressos, prontos e acabados, nem se
vincula, atavicamente, a crivos acadêmicos, aos filtros da grande
mídia e às injunções do capital. Os materiais
literários alastram-se pela Internet com rara e imprevista desenvoltura.
A rede integra-os com flexibilidade para enlaçar novos conteúdos
e multiplicá-los em usos partilhados, através de bases de
dados e publicações eletrônicas, em constantes mutações
e acréscimos, abarcando períodos históricos, gêneros,
movimentos e escolas.
A vida literária na Web passa a dispor de uma profusão de
fontes de consulta, além de preciosos espaços de produção,
divulgação e intercâmbio. As paisagens híbridas
do ciberespaço encontram-se superperpovoadas de sites literários
— desde coleções de textos da era greco-romana a workshops
virtuais. A poesia é o gênero literário de maior penetração
na Web, com cerca de 4 milhões de registros no Altavista, em vários
idiomas. Em 20 de maio de 2000, somente o poeta chileno Pablo Neruda era
citado em 11.293 páginas. Eis os cinco poetas brasileiros com maior
número de referências: Vinicius de Moraes, 2.254; Castro Alves,
2.001; Carlos Drummond de Andrade, 1.465; Mário de Andrade,
954; e Manuel Bandeira, 684.
Na atmosfera virtual desterritorializada, testemunhamos a rápida
desfronteirização do campo literário. Soares Feitosa,
editor do Jornal de Poesia (www.secrel.com.br/jpoesia/poesia.html), esplêndido
banco de poesia em língua portuguesa, com 2 mil autores, recebe
por dia uma média de 40 e-mails. “O do Piauí chega com a
mesma tranqüilidade do de Macau, do Canadá ou da Suíça.
Um mundo novo, localíssimo, na palma da mão. Os escritores
lusófonos, africanos inclusive, espalhados ao redor do mundo, encontram-se
nas confrarias virtuais e nos intercâmbios poéticos”, assinala.
(1) Lecionando na Suécia, o professor uruguaio Leonardo Rossiello
recorreu à Web para ajudar a tornar a literatura hispano-americana
mais conhecida do outro lado do Atlântico. Hospedou a ciberrevista
Nuevo Mundo (www.hum.gu.se/~romlr/index.html) no servidor da Universidade
de Gotemburgo. Ao abrir diariamente a sua caixa postal, encontra pelo menos
20 e-mails remetidos da América Latina, Espanha, Austrália
e EUA. (2) A Universidade de Aarhus, da Dinamarca, administra o mais completo
site eletrônico sobre o poeta argentino Jorge Luis Borges. Fundado
em 1994, o Centro de Estudios y Documentación Jorge Luis Borges
(www.hum.aau.dk/institut/rom/borges/spanish.htm) é consagrado aos
estudos borgesianos em relação à filosofia, à
semiótica e à literatura comparada. Possibilita consultas,
em inglês, francês e espanhol, a uma vasta coleção
de registros sobre a vida, a obra e o pensamento de Borges.
Parece
não haver limites para a imaginação. O tímido
poeta pode colocar no ar seus versos titubeantes, lado a lado com as homepages
de Prêmios Nobel. Leitores participam da construção
de romances e contos interativos. A obra desliza pelo monitor, em composição
seqüencial, numa espécie de cibercolagem de interferências
coletivas. Contam-se às centenas os grupos de discussão,
fóruns, conferências e salas de conversação
em tempo real sobre assuntos tão díspares como a literatura
vietnamita e a poesia de Manuel de Barros.
A literatura eletrônica — sem sobrepor-se ou equiparar-se à
literatura tradicional — sublinha a emergência de um ecossistema
fundamentado em interseções comunicacionais que possibilitam
uma hibridação entre emissores-produtores e receptores-consumidores.
É possível informar e ser informado quase simultaneamente.
Novos hábitos de percepção e vias de representação
irrompem no entrelaçamento dos aparatos tecnológicos com
a esfera literária. Desvelemos, pois, os enlaces múltiplos,
as virtualidades que transportam idéias, sentidos e emoções.
O
ciberespaço funda uma ecologia comunicacional: todos dividem um
colossal hipertexto, formado por interconexões generalizadas. (3)
Trata-se de um conjunto vivo de significações, no qual tudo
está em contato com tudo: os hiperdocumentos entre si, as pessoas
entre si e os hiperdocumentos com as pessoas. A partir da hipertextualidade,
a Web põe a memória de tudo dentro da memória de todos,
numa malha de mais de 800 milhões de páginas indexadas (o
equivalente a seis terabytes de textos). (4)
Nos encadeamentos do hipertexto, cada ator inscreve sua identidade na rede
à medida que elabora sua presença no trabalho de seleção
e de articulação com as áreas de sentidos. O princípio
subjacente ao hipertexto é o de que qualquer parte de um texto armazenado
no formato digital (seqüência de caracteres que são reconhecidos
e acessados por softwares específicos) pode ser associada automaticamente
a unidades textuais armazenadas do mesmo modo. O clique sobre as palavras
sublinhadas instrui o computador a ativar o acesso oculto por trás
do link, projetando na tela o assunto requerido, quer ele esteja no mesmo
documento ou em outras bases de dados. O usuário tem a alternativa
de saltar de uma fonte a outra, em um itinerário sem começo
nem fim. Os textos deslizam pelo monitor, em ritmo seqüencial, numa
espécie de cibercolagem de interferências individuais e coletivas.
O hipertexto afigura-se, pois, como um texto modular, lido de maneira não-seqüencial,
composto por fragmentos de informação, que compreendem links
vinculados a nós. O percurso não-linear faculta novos gabaritos
de intervenção por parte dos ciberleitores. Conforme seus
interesses e preocupações, a pessoa segue caminhos próprios
e extrai sentidos dos dados localizados. Pierre Lévy observa que,
na comunicação escrita tradicional, os recursos de montagem
são utilizados no momento da redação. “Uma vez impresso,
o texto material mantém uma certa estabilidade... à espera
das desmontagens e remontagens de sentido a que o leitor se irá
entregar.” Já o hipertexto digital aumenta consideravelmente o alcance
das operações de leitura: “Sempre num processo de reorganização,
ele [o hipertexto] propõe uma reserva, uma matriz dinâmica
a partir da qual um navegador-leitor-usuário pode criar um texto
em função das necessidades do momento. As bases de dados,
sistemas periciais, folhas de cálculo, hiperdocumentos, simulações
interativas e outros mundos virtuais constituem potenciais de textos, de
imagens, de sons, ou mesmo de qualidades tácteis que as situações
particulares atualizam de mil maneiras. O digital recupera assim a sensibilidade
no contexto das tecnologias somáticas [voz, gestos, dança...],
mantendo o poder de registro e de difusão dos meios de comunicação.”
(5)
Por outro lado, a Web dissolve a subordinação a instâncias
intermediárias (acadêmicas, mediáticas ou editoriais)
e descentraliza os processos de edição, difusão e
consumo de textos. A figura do autor reacende em importância estratégica:
pode ser seu próprio editor e distribuidor; pode alterar ou atualizar
as suas obras sem custo adicional; pode divulgar e debater o que produz
por correio eletrônico, em listas de discussão, boletins e
anéis de sites. De maneira análoga, na escrita colaborativa
divisa-se a reciclagem de fórmulas inventivas e de técnicas
de composição. A criação experimenta deslocamentos,
variações e modulações— as “tempestades de
constantes seqüências” de que nos fala Michael Joyce, pioneiro
da hiperficção com Afternoon: a story. (6) Os hyperlinks
reordenam a estrutura narrativa e a arquitetura ficcional, bem como dinamizam
os itinerários de leitura e interpretação. O que é
sólido pode ser também móvel, fluido, desenraizado
e acessível a qualquer segundo.
Assim, os fluxos interativos da Internet incrementam a composição
literária coletiva, através de hipertextos que constróem
romances, contos e poemas com a interferência de usuários.
A antiga estrutura do texto final convive agora com a escrita não-linear,
seqüencial e atualizável do espaço virtual. (7) Esboça
um novo tipo de escritor — batizado de autor eletrônico —, que se
vale de suportes infoeletrônicos para a formulação
de narrativas hipertextuais e/ou para a integração dos leitores
ao processo criativo. (8)
As hipernarrações,
também chamadas de escritas colaborativas, atraem usuários
para os sites The Written Word (www.geocities.com/Athens/Acropolis/1810),
Writers Workshop (www.romance-central.com/Workshops/ring.htm) e Infine
(twine.stg.brown.edu/projects/hypertext/landow/HtatBrown.hotelmoo.html),
este um programa de ações hipertextuais, incluindo roteiros
para cinema.
Surgem páginas de poesia coletiva, como a norte-americana Poetry
Web (cnsvax.albany.edu/~poetry/webs.html) e a italiana Ipertesto Colaborativo
di Media/Mente (www.uni.net/mediamente). Cada participante tem direito
a acrescentar um verso, alternadamente. Já funcionam, inclusive,
ateliês de criação literária em rede. As inscrições
são feitas por e-mail. O professor-escritor orienta o aprendizado
das técnicas hipertextuais e avalia o andamento das hiperficções
boladas pelos alunos. Depois, os trabalhos são debatidos pelo grupo,
em e-mails e chats.
Essa
febril emergência da ciberliteratura vem suscitando questionamentos
— às vezes apaixonados, ranhetas ou apocalípticos — sobre
o futuro da expressão escrita e do próprio livro. Em 1964,
Marshall McLuhan previa que as tecnologias eletrônicas suplantariam
os veículos impressos. “O poeta Stéphane Mallarmé
pensou que ‘o mundo existe para acabar em um livro’. Agora, estamos em
condições de poder ir mais além e transferir todo
o espetáculo para a memória de um computador”, sentenciava
McLuhan. (9) Se vivo fosse, o teórico canadense estaria publicando
seus livros, como a autenticar o fracasso de seu vaticínio. Em contrapartida,
a revolução informacional confirmaria a sua pressuposição
de que as redes eletrônicas se incumbiriam de projetar para fora
do cérebro humano “um vivo retrato do sistema nervoso central”,
interligando as atividades cotidianas como feixes de neurônios.
Contudo, ainda existem intelectuais que desconfiam do computador. Não
adianta ponderar que estamos ingressando na era dos set-top boxes digitais,
equipamentos concebidos para unificar os circuitos de Internet, televisão
a cabo e telefonia. O romancista Antônio Torres, por exemplo, mantém-se
fidelíssimo à velha máquina de escrever. Reluta em
memorizar lições de informática e não se deixa
dobrar facilmente pelos apelos da Internet. Quando quer se comunicar com
mais rapidez com colegas, ou enviar algum material urgente, usa o endereço
eletrônico de sua mulher, Sonia. Até os e-mails de leitores
são amavelmente respondidos por ela. Guillermo Cabrera Infante,
escritor cubano radicado há uma década em Londres, garante
não estar familiarizado com a Web, nem com CD-ROM, muito menos com
“qualquer um dos métodos espetaculares de conhecimento”. Desafia
as inovações: “O livro existe há três mil anos.
É muito difícil abandonar um hábito querido.” No escritório
do autor de La Habana para infantes difuntos, ocupa lugar privilegiado
um computador presenteado pela família. Ele raramente o liga. (10)
Torna-se indispensável demarcar os territórios em tensão.
De um lado, os cultores de paradigmas clássicos, para os quais a
literatura se materializa no papel, e assim deve prosseguir. Esta corrente
recusa a pertinência dos fluxos tecnológicos na criação
artística. O mundo eletrônico diluiria a aura da obra literária,
substituída pelo encantamento high tech. A abundância desordenada
das redes dificultaria reflexões críticas conseqüentes.
Fábio Lucas, atual presidente da União Brasileira dos Escritores
e destacado crítico literário, alerta para os efeitos da
hipervelocidade no domínio cultural. A seu ver, determinadas atividades
humanas não se ajustam à lógica da urgência,
sob pressão da mídia e das tecnologias de informação.
Ele salienta que a criação e a fruição literárias
demandam tempos mais demorados, enquanto que na mídia prevalece
o imediatismo. E acrescenta: “O tempo da produção literária
nem sempre se coaduna com a velocidade de acesso às matrizes do
saber. O vagar da reflexão crítica e da elaboração
artesanal da obra se choca com a fugacidade das impressões da era
da imagem. Uma coisa é o prazer da demorada leitura de um texto
literário, sua fruição estética; outra coisa
o deleite vertiginoso de um videoclip. A literatura necessita de pausas,
enquanto a linguagem da publicidade vive do bombardeio ininterrupto de
mensagens sobre o consumidor potencial aturdido.” (11)
De preocupações semelhantes às de Fábio Lucas
compartilha o escritor mexicano Carlos Fuentes. Nem quer ouvir falar em
computador: “Escrevo como no século XIX. Escritores como Balzac,
Juan Goytisolo e William Styron escreviam à mão e com pena.
Estou demasiado acostumado e feliz com a comunicação que
existe entre minha mente, meu coração, minha mão,
minha pena e meu papel. Tudo flui com grande rapidez. Diz-se em inglês
que não se pode ensinar a um cachorro velho truques novos. Gabriel
García Márquez, que escrevia à mão, um dia,
já tarde, descobriu o computador e para ele se voltou louco de gosto.
Diz que escreve muito mais rápido. Eu não; não sei
como manejar um aparato desses. Sou um idiota mecânico. Mas, com
uma pena, vou longe, com uma velocidade que não alcanço sequer
com a máquina de escrever.”
No caso da Internet, o pensamento de Fuentes move-se em ziguezague — ora
zangado e impaciente, ora simpático e condescendente. A comunicação
por e-mail parece-lhe razoável, mas se queixa das mensagens indesejáveis
e das “solicitações cretinas” que lhe chegam à caixa
postal. “É uma invasão da intimidade”, ralha, acrescentando
que adoraria limitar a correspondência aos amigos. Apesar de considerar
a educação pública à distância, via Internet,
um fator de integração dos povos marginalizados da América
Latina, Fuentes teme que a Web acabe aprofundando as desigualdades entre
o Terceiro e o Primeiro Mundos.
Lembra que o acesso ao ciberespaço ainda é privilégio
das camadas com poder aquisitivo para custear linhas telefônicas,
computadores e provedores. Mesmo ressalvando que as inovações
técnicas nunca lograram derrotar o espírito criativo — e,
em algumas ocasiões, até o incentivam —, o escritor mexicano
reage com vigor quando se intenta soldar o desenvolvimento literário
a ferramentas eletrônicas: “Não aceito que a Internet sacrifique
a comunhão profunda e secreta que é a leitura, algo que não
se pode alcançar em nenhum outro meio. Esse ato de comunhão,
para mim, é um ato insubstituível, muito parecido com o ator
de amar. É muito difícil amar numa tela; seria uma forma
de onanismo. O livro é um ser de carne e osso.” (12)
Se Fábio Lucas e Carlos Fuentes levantam objeções
contra a literatura eletrônica, no lado oposto situam-se os profetas
da decadência do livro impresso. Entre as vantagens insuperáveis
do livro digital, enaltecem a natureza e o alcance de sua difusão;
a distribuição em largo espectro, sem dependência a
redes livreiras e meios de transporte; o baixo custo de edição,
sem gastar papel; liberdade de publicar textos de qualquer tipo ou tamanho;
buscas em arquivos literários de ponta; novas possibilidades de
criação ficcional e poética. Em tom apocalíptico,
o escritor uruguaio Juan Grompone sustenta que o livro impresso está
em vias de extinção: “Não quero dizer que vá
desaparecer em cinco anos, mas está condenado à morte. Vivemos
em um mundo de imagens, onde as cores e as formas nos condicionam totalmente.
Creio que continuarão sendo publicadas as obras de grande qualidade,
com tiragens limitadas, excelente papel, ilustrados à mão,
essas coisas que são quase artesanais.” (13)
A polarização acima descrita embute um falso dilema. Em primeiro
lugar, livro não é fetiche, seja ele de papel, de pano ou
eletrônico, esteja ele em volume encadernado, em CD-ROM, disquete
ou na Internet. Qualquer suporte que dissemine informações
favorece, em maior ou menor grau, a socialização da cultura
— e parece indubitável que a infra-estrutura das redes constitui
um poderoso canal de distribuição. Ela descentraliza e barateia
o processo editorial, libertando-o do atrelamento inevitável às
diretrizes mercadológicas, industriais e mediáticas. As ferramentas
eletrônicas contribuem igualmente para preservar a memória
literária, em acervos digitais com gigantesca franquia para estocagem.
Obras raras voltam a ser acessíveis. Sem contar as inovações
de escrita e leitura que se descortinam nas narrativas hipertextuais.
Mas o livro impresso não perdeu, em absoluto, a sua vitalidade.
A começar pelo fato de que se adapta a variados contextos socioculturais,
abarcando idiomas e linhas de pensamento. É facilmente transportável
e não depende de dispositivos para ser utilizado; sua durabilidade
não está sujeita aos ciclos de obsolescência tecnológica,
como pode ocorrer, por exemplo, com um CD-ROM (títulos impressos
há séculos continuam legíveis); engendra protocolos
de leitura até aqui insuperáveis. Mais: ler diante da tela
cansa, dificulta a concentração e às vezes entedia.
É verdade que o texto exibido no monitor pode chegar ao papel e
ser lido na praia ou no táxi — basta apertar o botão para
a impressora materializá-lo. Ainda assim, o conforto proporcionado
pelo desfrute do livro dificilmente será ultrapassado pelo mais
leve e funcional dos computadores portáteis.
Por que ainda necessitamos de livros? Derrick de Kerckhove responde com
uma analogia entre o ritmo febril dos bits e a leitura cadenciada no papel.
O diferencial da literatura consistiria em contrapor-se à velocidade
dos sistemas eletrônicos, devolvendo as pausas e o tempo necessário
ao mergulho na imaginação. A obra impressa funcionaria como
“desacelerador consumado”, como explica: “O livro é fixo, estável
e estabelecido, e esta estabilidade é crucial. Porque hoje o desafio
não é acelerar a informação, mas torná-la
mais lenta. (...) Nossa cultura é absolutamente obcecada em acelerar
todos os aspectos das atividades humanas e as formas de nos relacionarmos
com elas. O que precisamos é desacelerar e construir sentidos no
nosso relacionamento com a informação, para negociar com
ela em um ritmo adequado. O tempo tecnológico é ultra-rápido
e fora de controle. Para controlá-lo, temos que jogar golfe ou ler
livros. (...) No ambiente eletrônico, o papel dos livros é,
então, o de desacelerar a informação e, subseqüentemente,
acelerar o pensamento, dando às pessoas tempo para pensar sobre
isto e tornar o processo de leitura um capacitador de conhecimento.” (14)
A eficácia do suporte literário virtual depende de sua capacidade
de oferecer elementos operativos que satisfaçam demandas culturais,
liberando avanços que as tecnologias anteriores não alcançaram.
É o caso da hiperficção on line. A primeira versão
de um escrito pode ser modificada a partir de comentários e sugestões
por correio eletrônico ou em grupos de discussão. Em idêntico
diapasão, tornam-se exeqüíveis obras de autoria coletiva,
envolvendo pessoas que talvez nunca tenham se visto ou sequer falado por
telefone ou carta. Outra evolução que se insinua: periódicos
eletrônicos publicam materiais literários de todo e qualquer
tamanho — de pequenos opúsculos a volumes inteiros de domínio
público, dos haicais de menos de oito linhas às 450 páginas
de Os Sertões, de Euclides da Cunha, disponíveis nos Textos
Eletrônicos de Literatura Brasileira (www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html),
do Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
(Nupill), da Universidade Federal de Santa Catarina.
O livro coexistirá com a televisão, a multimídia,
a realidade virtual ou qualquer engrenagem interativa. Assim como a imprensa
não suprimiu os manuscritos. O próprio livro foi combatido
pelos epígonos da cultura elitista da Idade Média. Os benefícios
da impressão mecânica não se impuseram de imediato.
Durante muito tempo ela dividiu a cena com os pergaminhos, até se
consolidar como meio que possibilita uma circulação social
mais rápida, barata e abrangente. As sociedades valem-se de distintas
tecnologias de comunicação, simultaneamente. Os suportes
são empregados em função de seu uso social. A escrita
manual relaciona-se à comunicação pessoal, enquanto
o computador é utilizado com freqüência no trabalho,
de diversas maneiras, e mais recentemente para a informação
e o entretenimento, através das redes informáticas, do CD-ROM
e de jogos eletrônicos. Para o contato instantâneo à
distância, o telefone continua insuperável. Outras circunstâncias
pedem o fax, o correio eletrônico, o pager ou a carta registrada.
Estas modalidades sobreexistem em função da natureza da informação
que se deseja transmitir, acessar ou receber.
Não será outra a lógica que, mais cedo que se espera,
presidirá as fronteiras de complementaridade entre as literaturas
impressa e digital. Primeiro, porque não precisamos abrir mão
do agradável prazer da leitura para navegar por publicações
on line, e vice-versa. Acabamos por acumular dados e experiências
que nenhuma das partes sozinha poderia exibir. A convergência entre
o setor editorial e as indústrias multimídias, em especial
nos EUA traduz-se na hibridação de recursos e processos tecnológicos
para gerar rentáveis produtos associados a best-sellers impressos,
como filmes, seriados televisivos, CD-ROMs, vídeos, DVDs (Digital
Video Disc), CDs, videogames, videoclipes e jogos on line. A conjunção
de atividades revela-se crucial para reposicionamentos mercadológicos,
notadamente numa conjuntura econômica marcada por altíssima
taxa de expansão de conhecimentos científicos e de contínua
renovação de sistemas e métodos produtivos. (15)
Na vertigem dos nós, um número cada vez maior de obras tende
a ser disponibilizado, lido e analisado, numa prova eloqüente das
interseções possíveis entre real e virtual, dentro
de um conjunto de ambientes integrados e auto-ajustáveis, sob a
primazia da inteligência humana. Por que isolar as variáveis
eletrônicas dos tesouros impressos? Não estamos aqui expondo
idéias sobre a ciberliteratura em papel e tinta? Esqueçamos
as referências imutáveis, o apego a crenças enrijecidas
que geralmente conduzem a dogmatismos. Optemos por uma dialética
de complementaridades, interinfluências e fertilizações
mútuas entre o real e o virtual. Até porque, arrisca Roger
Chartier, os autores não escrevem livros; escrevem textos que se
transformam em objetos escritos, manuscritos, impressos e, agora, virtuais.
NOTAS
(1) Entrevista de Soares
Feitosa
ao Autor, em 30 de outubro de 1997.
(2) Entrevista de Leonardo
Rossiello ao Autor, em 18 de maio de 1998.
(3) Emprego os termos ciberespaço
e cibercultura nas acepções propostas por Pierre Lévy.
Ciberespaço é o novo meio de comunicação que
emerge da interconexão mundial das redes de computadores. Engloba
não somente a infra-estrutura material da comunicação
digital, como também o oceano de informações que abriga
ao mesmo tempo os seres humanos que por ele navegam e o alimentam”. Cibercultura
designa o conjunto de técnicas materiais e intelectuais, de práticas,
de atitudes, de modos de pensar e de valores que se desenvolvem paralelamente
ao crescimento do ciberespaço. Ver Pierre Lévy. Cyberculture.
Rapport au Conseil de l’Europe. Paris: Odile Jacob, 1997, p. 17.
(4) A estimativa sobre o
número de páginas indexadas consta de estudo dos pesquisadores
ingleses Steve Lawrence e C. Lee Giles, divulgado na edição
de 7 de julho de 1999 da revista britânica Nature.
(5) Pierre Lévy. A
inteligência coletiva: para uma antropologia do ciberespaço.
Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 72. Consultar, do mesmo autor, As tecnologias
da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 25-26.
(6) Entrevista de Michael
Joyce ao Autor, em 14 de dezembro de 1997. Afternoon: a story desenrola-se
em torno de um acidente de carro que pode ou não ter acontecido.
Tudo depende da navegação do leitor pelos meandros da narrativa.
A cada clique do mouse, sobrevém uma cena, um novo personagem surge,
uma nova versão dos fatos é conhecida. Michael Joyce escreveu
o romance depois de ter se unido a um programador para criar um software
que permitisse criar um “texto em teia”. Hoje, o programa é a base
da maioria dos hiperlivros encontrados na Internet.
(7) Joaquín Maria
Aguirre Romero. Literatura en Internet. Qué encontramos en la WWW?
Disponível em www.ucm.es/OTROS/especulo/numero6/www_lite.htm. Consultar,
do mesmo autor, El futuro del libro. Disponível em www.ucm.es/OTROS/especulo/numero5/futlibro.htm.
(8) Eis um exemplo de escrita
colaborativa. Le Bouquin du Web (www.2icompany.com/pages/indexlivre.html)
convocou leitores de língua francesa a intervirem na elaboração
de um romance policial em rede. O editor J. J. Brissiaud redigiu o primeiro
parágrafo: “Franck, alcoólico inveretado, barrigudo, modesto
funcionário da Caixa de Assistência à Doença,
de Paris, testemunhar de seu ponto de observação favorito
(o bistrô de seu amigo Paul) à morte de um misterioso homem
louro por uma misteriosa mulher morena. No momento de morrer, o homem louro,
que se chamava Pietroj, remeteu Franck para uma outra dimensão.”
Para garantir razoável organização aos trabalhos,
estabeleceu-se um faixa horária diária para o envio
de colaborações. Os acréscimos incongruentes ou incoerentes
iam sendo excluídos pelo editor. O resultado superou as expectativas:
de 27 de novembro de 1997 a 6 de junho de 1998, cooperaram 12 franceses,
quatro canadenses, um belga, um tunisiano, um luxemburguês e um sírio.
Coube a Brissiaud dar por encerrado o romance.
(9) Marshall McLuhan. Os
meios de comunicação como extensões do homem. 4a.
ed. São Paulo: Cultrix, 1974.
(10) Guillermo Cabrera
Infante, citado por Nuestro Mundo, 10 de dezembro de 1997.
(11) Ver de Fábio
Lucas: “Reflexões sobre a literatura na era eletrônica”, em
Quinto Império — Revista de Cultura e Literaturas de Língua
Portuguesa, nº 8, segundo semestre de 1997; “Literatura versus velocidade
eletrônica”, em O Escritor, outubro de 1997.
(12) Carlos Fuentes. “Internet,
el escritor y el Tercer Mundo”. El País Digital, 21 de outubro de
1998.
(13) Juan Grompone, citado
por Patrícia Turnes, “Yo libro, tú computadora”, em Brecha
(edição Internet). Disponível em www.brecha.com.uy/numeros/n635/apertura.html
(14) Derrick de Kerckhove.
Connected intelligence: the arrival of the Web society. Toronto: Somerville
House Publishing, 1997, p. 122-123.
(15) Consultar Dênis
de Moraes. O Planeta Mídia: tendências da comunicação
na era global. Campo Grande: Letra Livre, 1998, p. 69.
Dênis de Moraes, pós-doutor
em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Federal de Minas
Gerais e doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, é professor do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade
Federal Fluminense. Publicou, entre outros livros, O Planeta Mídia:
tendências da comunicação na era global (Letra Livre,
1998) e Globalização, mídia e cultura contemporânea,
org. (Letra Livre, 1997). O texto acima baseia-se em questões abordadas
de forma mais abrangente em seu relatório final de pós-doutorado
em Letras na UFMG (1999).
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