<dpiza@estado.com.br> Por que não poesia?*
Às vezes me pergunto se não sou exigente demais em matéria
de romances, mas alguém me lembrou outro dia a frase de William
Faulkner: 'Se eu fosse um grande escritor, faria poemas; se fosse bom,
faria contos; como não sou, faço romances'. Não faz
muito tempo, eu disse em palestra em Belo Horizonte que li avidamente dois
gêneros em minha adolescência - poesia e filosofia - que talvez
tenham me dado uma espécie de suspeita quanto a romances. O que
vale em poesia é o que o modernista Ezra Pound percebeu: a linguagem
em alta condensação, hiperconcentrada, polissêmica,
em busca de ser inesgotável. Filosofia pode lhe parecer supérflua
ou chata, mas ter lido Montaigne, Voltaire, Kant, Nietzsche, Russell, Wittgenstein
e Popper parece a mim quase uma condição 'sine qua non' para
manter a percepção aguda, o senso crítico, a rejeição
à retórica; tudo depende de quem lê e como lê,
afinal há filósofos que causam justamente o efeito contrário.
Incluo ainda o crítico de cultura, 'kulturkritik', gente como Karl
Kraus, Bernard Shaw e H. L. Mencken, que me fizeram a cabeça. Todos
ajudam a criar curto-circuitos neuronais que põem em dúvida
as estratégias romanescas e fazem você prever mais rapidamente
aonde o cara quer chegar. Redundância é irritabilidade.
Não por acaso todo grande romancista duvida do romance.
Não por acaso, também, todo grande romancista é leitor
de poesia, como se pode perceber na prosa de Faulkner, para ficar no exemplo,
que era tão admirador de Shakespeare que chamou um de seus melhores
livros de 'Sound and Fury'; Shakespeare, afinal, é um pensador-poeta.
Se você quer uma dica para usar melhor seu tempo de leitura, invista
em poetas e pensadores. Guarde sua paciência para os melhores romancistas,
a não ser quando você estiver buscando um 'passatempo' puro
e simples, se bem que, com o cinema, narrativas para passar o tempo - isto
é, para nos prender o interesse sem requerer muito esforço
- são abundantes. Logo, como disse Philip Roth, romances estão
se tornando um culto de minoria; perderam muito de seu status.
No entanto, hoje a poesia e a filosofia estão numa crise
óbvia. Sim, há uma vastidão considerável de
autores mortos que nos legaram mais obras do que uma vida permite ler.
Mas cultura é uma contraposição constante entre passado
e presente, e todo indivíduo tem de ser um homem de seu tempo, isto
é, se já não tiver desistido dele. E são romancistas
que nos têm mantido alertas - talvez a grande função
da arte, manter-nos alertas - para sutilezas, ironias e complexidades que
nos dizem respeito atualmente. Tome o exemplo de Philip Roth. Há
quem o considere um mero 'realista', mas quem disse que a realidade é
algo de mero entendimento? Roth têm uma maturidade mental sem par
e é por isso que escreve muito bem; seu texto é evidentemente
o produto de uma inteligência e sensibilidade que se dedicaram a
ler muita poesia e filosofia. Não há poeta ou pensador vivo
que esteja à sua altura.
No Brasil ocorre a mesma coisa. João Cabral de Melo Neto
- um dos três maiores poetas brasileiros - já não escreve,
afligido pela cegueira. Os mais interessantes são, pela ordem, Ferreira
Gullar e Bruno Tolentino. Gullar escreve pouco, como deve fazer todo poeta,
e neste ano deve publicar uma coletânea com seus novos textos que,
pelo adiantado nos 'Cadernos de Literatura Brasileira' do Instituto Moreira
Salles, poderá suprir quase três décadas de carência.
Tolentino tem uma variedade de recursos impressionante e escreve muito,
ou demais; prefiro quando ele é menos metafísico e mais pós-romântico,
como em 'A Balada do Cárcere', despretensiosamente marcante.
Convenhamos: é pouco, muito pouco,
ainda que no mundo inteiro a carestia impere, não só aqui.
Li neste fim de semana, por exemplo, duas antologias organizadas por Heloisa
Buarque de Hollanda, '26 Poetas Hoje' e 'Esses Poetas' (editora Aeroplano),
procurei muito e não encontrei quase nada, apenas um verso ou outro.
Também
li a coletânea de Haroldo de Campos, 'Crisantempo' (Perspectiva),
e só achei ali anotações eruditas recortadas sem critério
orgânico. No conjunto, esses autores todos me pareceram ensimesmados,
acomodados dentro de uma linguagem ora especiosa ora simplória,
sempre dando a impressão de que acreditam estar dizendo mais do
que estão. Há uma saudável volta ao verso, com
exceção do subconcretismo de Arnaldo Antunes, e tenta-se
evitar certo prosaísmo que contamina no momento a poesia de língua
inglesa, ainda atrelada demais ao heroísmo fragmentário de
Eliot, Auden, Plath e Lowell, apesar de herdeiros inferiores mas competentes
como os falecidos John Ashbery e Ted Hughes. Mas os poetas brasileiros
desses volumes são tímidos, parasitários, acabrunhados.
Não têm a coesão de um Gullar nem a intensidade de
certo Tolentino.
Acho que quanto à filosofia não preciso me estender.
Não é que o Brasil não tenha tido pensadores de qualidade,
ainda que, à moda da casa, irregulares. Mas, como notou o crítico
Antonio Candido, alguns pensaram com a língua portuguesa, mas quase
ninguém pensou em português. Tivemos bons pensadores que assumiram
a ficção, como Machado de Assis, Euclides da Cunha, Lima
Barreto e Guimarães Rosa, mas poucos pensadores 'strictu sensu'.
E todo o debate de idéias no Brasil sofre de pobreza crescente.
Sim, houve vinte anos de ditadura; sim, auto-intituladas vanguardas fizeram
de tudo, a começar pelos lobbies, para evitar a diversidade e a
liberdade sem a qual as artes não resistem; sim, há uma revisão
internacional dos excessos e das funções da estética
modernista. Mas já é hora de parar de culpar a sociologia
pelos crimes de nossa poética. Não há razão,
além disso, para que a poesia e o pensamento não encontrem
seus nichos nesta tal 'era da informação'. Se temos cada
vez menos tempo e cada vez mais conhecimento, nada poderia ser mais indicado.
Por que poesia? - uma geração toda perguntou pós-Hiroshima.
Por que não poesia? - é o que devemos perguntar agora.
- 'Grace under pressure' - Há um subproduto desse assunto todo que é a discussão sobre o que a citada perda de status cultural dos romances causará em sua(s) forma(s). Claro, isso só o tempo dirá. Mas, no mesmo fim de semana em que me dediquei aos poetas contemporâneos brasileiros, li pela primeira vez um conto de Thomas Pynchon chamado 'Entropy'. Li todos os volumosos romances de Pynchon, dos quais meu predileto é o mais recente, 'Mason & Dixon', e ele é um dos maiores escritores vivos: ousado, imprevisível, pletórico; certamente leu muita poesia e filosofia. Só que ninguém precisa ficar muito preocupado por não tê-lo lido se, sabendo inglês, adquirir o volume a que 'Entropy' pertence, 'Slow Learner - Early Stories' (Little, Brown and Company), emprestado a mim por um amigo. É um conto de gênio, que talvez aponte para a ficção do futuro por empregar termos e imagens da ciência, conhecimento musical e uma inteligência irônica que se realiza em elaboração dramática, façanha que muitos tentam e raríssimos conseguem. São 18 páginas. Há bastante citação e referência, mas todas têm uma razão de ser criativa. Os diálogos soam reais e o ritmo é, como sempre, um prodígio de ziguezague vertiginoso que não mergulha na obscuridade autista nem no exibicionismo lingüístico. Pynchon é o único romancista atual capaz de mesclar ficção e não-ficção com tanta organicidade, com tanta adrenalina; é um legítimo herdeiro de Joyce e, ao contrário de Borges, Calvino, Burgess e outros pós-modernos, tem o mesmo prazer no discurso direto, vívido, extraído de sua percepção pessoal da vida exterior com todo o vigor narrativo que ela demanda; é uma espécie de Nabokov-cum-jargão, menos obcecado por mulheres e literatura, mais interessado em política e ciência. Que ele tenha feito tudo isso em um conto foi o que me impressionou. Me fez pensar em Kafka também: uma literatura em alta condensação, irônica mas não narcisista, ágil mas não incidental. Recentemente, a propósito, a revista alemã 'Der Spiegel'
criticou José Saramago por tentar ser um tipo de Kafka 'enrolado',
barroco, o que é uma contradição. Pois é este
o problema de Pynchon nos romances: eles são muito longos, peripatéticos,
como se ele buscasse o nunca encontrado 'Grande Romance Americano', do
que Nabokov riria. Mas que 'Entropy', de 1960, parece uma antevisão
do futuro, parece.
- O ludopédio - Por que o futebol é o esporte mais
popular do mundo? Porque é o que tem mais variáveis equacionadas
em campo. São 22 jogadores lidando com os pés e tolhidos
por regras diversas (nem todas eficientes, como a do impedimento), o que
lhe dá maior imprevisibilidade e, logo, sabor artístico.
Por isso também é que todo biotipo humano pode participar
do jogo com padrões atléticos: alto ou baixo, forte ou franzino,
rápido ou lento, etc. É, em suma, um prato cheio para a ficção,
muito mais do que qualquer outro esporte. Mas precisa ser um grande escritor,
um Pynchon, para recriá-lo com grandeza. Oxalá um brasileiro
chegasse lá. Temos crônicas, análises e até
filmes de qualidade sobre o assunto, mas ninguém roubou para a linguagem
verbal sua complexidade, com todas as implicações físicas,
psíquicas e sociais. Quem foi mesmo que disse que tudo está
dito?
- Estilo - Este caderno trouxe na semana passada reportagens sobre
o crescimento do mercado de moda masculina. Mais homens estão querendo
se vestir bem e dispõem de opções satisfatórias,
até porque é mais fácil para eles encontrar roupas
que são modernas sem ser metidas, sóbrias sem ser caretas.
Eu acho que, excetuados os acessórios, há quatro estilistas
que acertam esse ponto criativo - 'simple chic' - em ternos, blazers, calças
e camisas: Armani, Zegna, Paul Smith e Hugo Boss. E não é
só moda: design e culinária também estão interessando
a eles. Há lojas de decoração, como a Artefacto no
shopping D&D em São Paulo, que atingem essa combinação
saudável. Morar bem, sentir-se bem dentro da roupa, comer bem. Em
suma, é como se os homens estivessem se 'feminizando' no bom sentido,
isto é, dando valor a estilo e beleza em suas vidas, sem ostentação
ou 'gênero'; claro, me refiro à minoria de sempre. Quem tem
uma boa frase sobre isso é o jurista Gofredo da Silva Telles: 'A
beleza é uma condição de felicidade'. Insuficiente,
mas indispensável.
- O Lobo da Estepe - Uma subsacanagem de Clinton nessa grande sacanagem que foi o bombardeio sobre o Iraque foi chamar sua operação de 'Raposa do deserto'. Primeiro, porque lembra a alcunha de Rommel, o comandante nazista no norte da África. Segundo, porque ecoa o auto-epíteto de Herman Hesse, 'o lobo da estepe', existencializado em livro homônimo que marcou muitos adolescentes no mundo todo. Mas Clinton, pelo visto, não sabe pagar o preço de ser solitário. Não merece o impeachment, mas uma assessoria melhor viria a calhar... - Por que não me ufano - Vou dar os números oficiais da Bienal de São Paulo para que também não me acusem de lidar mal com eles... Segundo a fundação, foram 387.732 visitantes, dos quais cerca de 130 mil estudantes em tour escolar. O que dá pouco mais de 250 mil visitantes e confirma queda de mais de 100 mil (mais de 30%) em relação à edição passada. Você só leu aqui. - Aforismos sem juízo - Viver é reescrever um livro que
nunca fica pronto.
[* in Fim de Semana, caderno cultural do jornal Gazeta Mercantil, 23.12.1998] [ ÍNDICE DO AUTOR
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