Daniel
Piza
<dpiza@estado.com.br>
Morte e vida cabralina
in Gazeta Mercantil,
15.10.1999
É triste
que João Cabral de Melo Neto (20/1/1920-9/10/1999) tenha morrido
constando dos volumes de história da literatura brasileira como
consta. Nenhum poeta de sua grandeza foi tão vítima dos reducionismos
quanto ele. Como resultado, sua obra é bem menos lida do que deveria
ser, salvo aquela que melhor se encaixa nas classificações
habituais, 'Morte e Vida Severina' (1956), musicada por Chico Buarque e
filmada pela Rede Globo. Os estragos da interpretação sociológica,
que também vitimam Graciliano Ramos (que Cabral disse ser o prosador
que ele, Cabral, gostaria de ser), foram completados pelos da interpretação
formalista, que insistiu em convertê-lo em artista 'construtivo'
para quem o tema não passa de figura coadjuvante. Mas a maior qualidade
da poesia de João Cabral foi justamente superar a dicotomia entre
expressão e construção. É difícil, aliás,
encontrar, a não ser em certo período de Carlos Drummond
de Andrade, poeta brasileiro em que elas se tenham combinado de forma tão
única e rica.
Os sociólogos
da literatura teimam em rotular a poesia de Cabral de regionalista. Eis
o perigo de valorizar o tema ante a linguagem. O Nordeste, suas paisagens
e personagens, é assunto fundamental para João Cabral, mas
sua apropriação desse assunto escapa nitidamente ao estilo
predominante nos anos 30 e 40. Inspirados por Gilberto Freyre, de quem
Cabral era primo, os romancistas do chamado ciclo regionalista tinham a
limitação de tomar a parte pelo todo, que era em muitos casos
uma limitação ideológica: o mundo que eles retratavam
seria metonímia do Brasil; seus personagens, os mais caracteristicamente
brasileiros. A fonte e origem dessa literatura era José de Alencar,
cujo romantismo rousseauniano exaltara o autóctone. E o grande licenciador
intelectual, um tanto às avessas, era Euclides da Cunha, cujo 'Os
Sertões' (1902) parecia dar uma rasteira em sua própria pretensão
positivista ao advogar em defesa dos sertanejos contra a arbitrariedade
republicana. Nas teses de Gilberto Freyre, esses exemplos seriam erguidos
em oposição ao programa modernista dos anos 20, que para
ele não passava de importação de estéticas
estrangeiras incapazes de dar conta da realidade brasileira, porque demais
presas ao racionalismo racista e reprimido do Velho Mundo.
A exceção
nesse painel seria Graciliano Ramos, embora, como José Lins do Rego,
Rachel de Queiroz ou Jorge Amado, sua literatura fosse dedicada a registrar
a opressão social sofrida pelo sertanejo. Mas, se em José
Lins o escape a tal opressão estava na comunhão com a natureza,
em Rachel de Queiroz na afetividade familiar e em Jorge Amado na explosão
da sensualidade e religiosidade, em Graciliano nem sequer havia escape.
Ele estava, como grandes ficcionistas de qualquer latitude, mais interessado
em mostrar a natureza humana sob pressão. O autoritarismo oligárquico
era um ingrediente poderoso dessa pressão; o meio ambiente, outro;
mas seus efeitos sobre a psicologia humana é que eram esmiuçados.
Em toda história de Graciliano o ser humano vê a realidade
como turva e esquiva, e todo esforço de enxergá-la mais nitidamente
é frustrado ou revertido. Daí a semelhança, no estilo
e nos personagens, com Machado de Assis, cujos temas urbanos e preocupações
burguesas seriam criticados pelos regionalistas. Estes seriam endossados
por um Mário de Andrade arrependido da aventura de 1922, que declararia
Machado 'colonizado' e faria em 'Macunaíma' (1928) uma espécie
de colagem folclórica em defesa da identidade que haveria na mistura
de identidades brasileira, ecoando o conceito de mestiçagem de Freyre,
promessa de paraíso racial e sexual.
João
Cabral apareceria nesse cenário polarizado em 1942, quando lança
'Pedra do Sono'. O ciclo regionalista dos anos getulistas já começara
a ceder, como Getúlio já cedia aos Aliados durante a Segunda
Guerra. Naquele mesmo ano Clarice Lispector surgia com 'Perto do Coração
Selvagem', recuperando a linhagem urbano-psicológica de forma até
excessiva, em sua recusa da descrição social ou natural.
A formação intelectual de Cabral é curiosa. Ele se
muda para o Rio no mesmo ano. O livro que publica é bastante coerente
com a poesia daquela que se chamaria de Geração de 45, por
usar termos como 'sobrenatural' e 'hierofante', temas como morte e sonho,
e uma escrita que beira o confessional: 'Minha memória cheia de
palavras/ meus pensamentos procurando fantasmas/ meus pesadelos atrasados
de muitas noites'. Influenciado por modernos como Drummond, Manuel Bandeira
e Murilo Mendes, Cabral exibe atração pelo surrealismo. Mesmo
com o título 'O Engenheiro' (1945), seu livro seguinte ainda coloca
a 'persona' do poeta em primeiro plano: 'A noite inteira o poeta/ em sua
mesa, tentando/ salvar da morte os monstros/ germinados em seu tinteiro'.
Ou faz metáforas de um tipo que depois rejeitaria: 'As nuvens são
cabelos crescendo como rios'.
No Rio, porém,
o contato com a vanguarda arquitetônica - e com sua maior influência
intelectual, o francês Le Corbusier - e o desenvolvimento de sua
dicção própria, aqui e ali ensaiada nos livros anteriores,
faz Cabral mudar sua linguagem. 'Psicologia da Composição'
(1947), do período em que assume seu primeiro posto diplomático,
na Espanha, anuncia a virada: 'Esta folha branca/ me proscreve o sonho,/
me incita ao verso/ nítido e preciso'. As vaguezas das primeiras
coletâneas são abandonadas, o sonho é proscrito, e
o leitor de Graciliano diz que 'não há fuga'. O prosaísmo
surreal é trocado por uma linguagem mais límpida e concisa,
nem por isso livre de metáforas: 'Não a forma encontrada/
[...] não a forma obtida/ [...] mas a forma atingida/ como a ponta
do novelo que a atenção, lenta, desenrola'. O poeta diz rejeitar
a concha simbolista e a inspiração parnasiana: não
quer nada frouxo ou invísivel, quer a poesia mineral como as palavras
que a compõem: 'É mineral, por fim,/ qualquer livro:/ que
é mineral a palavra/ escrita, a fria natureza/ da palavra escrita'.
Mas o poeta não está negando as 'flores úmidas' de
outrora, o 'carvão consumido nos sonhos': está justamente
apontando o hiato entre o reino quente das coisas e o reino frio dos nomes,
e que cabe ao poeta falar com as coisas, não sobre elas ou através
delas. Lançar fios sobre a noite, sem presunção de
cobrir o vazio, de salvar os monstros.
Em Barcelona
Cabral se torna editor de livros de arte, fica amigo de Tàpies e
conhece Miró, aprimora sua criatividade gráfica. Aos 30 anos,
chega à maturidade. Começa a fazer uma poesia que a literatura
brasileira não conhecia até então: uma poesia sem
coloquialismos sentimentais, sem afetações líricas
- sem escapismo. É curioso que publique o livro que melhor sintetiza
sua visão poética, 'O Cão sem Plumas' (1950), no mesmo
ano em que o artista Alfredo Volpi volta da Itália e, influenciado
pelo construtivismo sem se deixar render a ele, cria uma pintura de têmperas
em que a mínima vibração da cor e o mínimo
ângulo do traço são aproveitados para remeter a um
repertório de emoções e lembranças que não
precisam 'explodir': a 'mulher febril' habita a ostra, a 'cadela fecunda'
tem o ventre liso, mas não precisam gritar. O rio é silencioso,
'jamais se abre em peixes' e carrega a terra negra; de vez em quando, pára,
e então tem 'algo da estagnação de um louco'. A intenção
não poderia ser mais clara: Cabral quer que sua poesia seja como
esse rio que se arrasta, que não se abre em peixes e fervores, e
ao mesmo tempo é como a água de uma fruta madura, pingado
pelos açúcares de Pernambuco, aberto a 'flores sujas'.
Não
poderia ser mais curioso. No momento em que enxuga e 'mineraliza' sua dicção,
Cabral volta a suas referências de infância, do Pernambuco
rural em que crescera. Ele jamais embarca na frieza geométrica de
concretistas, na poesia como design pregada sobretudo nos anos JK, pois
se recusa a 'romper com a sintaxe' e a crer numa estética praticada
em nome de uma indústria internacional, numa estética inanimada
e cinza. Sua ênfase na construção é em busca
de nova forma de expressão. O que havia lido nos metafísicos
ingleses, nos modernistas brasileiros e nos românticos franceses
não é descartado: é condensado. Recebe a influência
da 'rima toante', comum na poesia espanhola (e que distingue as consoantes,
como entre 'morre' e 'posse', valorizando os sons menos palatais), e examina
suas memórias. Tem agora o instrumental necessário para fazer
uma poesia que caminha no meio-termo: entre o regionalismo e o internacionalismo;
entre o estóico e o lírico; entre o fluente e o mineral.
O ano de 1956
é o ínicio do apogeu. 'Duas Águas', 'Paisagens com
Figuras', 'Uma Faca só Lâmina' e 'Morte e Vida Severina' são
lançados. Em todos há a contraposição dos universos:
moças, touradas, pássaros, frutas e flores convivem com facas,
pedras, ventos, areia. O poeta, que se propunha a 'cultivar o deserto como
um pomar às avessas', extrai expressão do que para os outros
é secura ou redundância. É de 'Paisagens com Figuras'
um de seus poemas mais formidáveis, 'O Vento no Canavial'. O poeta
encontra no canavial 'oculta fisionomia:/ como em pulso de relógio/
há possível melodia/ ou como de um avião/ a paisagem
se organiza,/ ou há finos desenhos/ nas pedras da praça vazia'.
O vento aviva o canavial e lhe dá, não a 'disciplina de milícias'
dos construtivistas, mas a 'solta simetria' que há em comum entre
Miró, Klee e Mondrian, para quem a forma é vital, não
mortalha, como se encontrassem padrões em redemoinhos, harmonias
em multidões. Essa arquitetura de figuras em movimento, encontrada
no detalhe ou no conjunto, e flagrada pela natureza fria das palavras -
eis o objetivo da poesia de Cabral.
Então
o poeta que chega a 'Morte e Vida Severina' está livre das imagens
especiosas da juventude e dos dogmas racionalistas da vanguarda. Se Oscar
Niemeyer é influenciado por Le Corbusier a fazer uma arquitetura
de grafismos e espelhos, colocando curvas e cortes onde havia retas e cubos,
Cabral procura a mesma estética - 'Eu procuro escrever da forma
mais racional possível, mas para me comunicar com o leitor não-racionalmente'
- só que num registro humanista, sem o monumentalismo de Niemeyer,
sem a retórica futurista ou funcionalista que se afirma pela escala.
O 'conteúdo social' da obra de Cabral não é programático;
é parte integrante de sua psicologia da composição,
de seu processo estético. Não é o autor que se identifica
com o personagem ou quer que o leitor se identifique: é a própria
poesia. Aqui está toda a incompreendida diferença.
Só
mesmo um grande artista poderia assumir ecos de um discurso social sem
ser panfletário, romântico ou esteticista. Quando ele diz
em 'Cemitério pernambucano' (também em 'Paisagens com Figuras')
que aqueles enterrados eram 'mortos ao ar-livre', não é para
levar o leitor a explodir em lágrimas. Na expressão de Le
Corbusier que vivia repetindo, seus poemas eram 'máquinas de comover';
'co-mover', no entanto, em seu sentido bruto de 'mover junto', de 'açular
a atenção' do leitor para aquilo que é observado e
metaforizado no próprio poema, em seu organismo concreto: 'Mortos
ao ar-livre, que eram,/ hoje à terra-livre estão./ São
tão da terra que a terra/ nem sente sua intrusão'. Cabral
não precisa de neologismos e paramorfismos para fazer o leitor se
intrometer no texto não só pela imagem que sugere mas também
pela palavra que imagina.
Não
precisa desmontar os nomes e as sentenças, nem mimetizar o evento
descrito na própria forma da descrição. Basta a ele
acentuar as consoantes, intervir com elipses, explorar o som, a imagem
e o conceito das palavras em mútuo relacionamento. A severidade,
a resignação, a cristalização que ele vê
nas coisas deve estar também nas palavras, porque estas, afinal,
são coisas. E é no diálogo de coisas-coisas com coisas-palavras
que se pode remeter ao invisível, apontar para o silêncio,
ler 'a edição do vento'. A árvore amputada adquire
gumes de pedra ('Encontro com um poeta') mas, por ser árvore, é
que suas arestas se tornam mais diretas e múltiplas. O contraponto
de orgânico e inorgânico - o 'sentimento do sedimento' - é
o foco de Cabral.
Em 'Morte
e Vida Severina' ele vai correr ainda mais riscos. O poema usa não
só a fluência do cordel nordestino, mas também sua
teatralidade, e mesmo assim as palavras vão desenrolando esse novelo
sem que o leitor se abandone à simples dramatização.
Todo tipo de recurso é invocado para identificar o severino e sua
morte-em-vida com a própria poesia daquele autor. As frases são
'magras e ossudas' como seu personagem e seu sangue de 'pouca tinta'. Até
as repetições da fala servem para reforçar a abnegação
daquela vida, a provação a que aquela região onde
o rio 'jamais espelha o céu' submete os homens. Voz e silêncio
correm paralelos. Até mesmo o humor entra nessa espécie de
toada a palo seco. Não há nada do barroquismo de autos compadecidos,
nem do choro desesperado de Jó: não é preciso apelar
à compaixão que os 'sociólogos do lugar' celebram,
em sua confusão entre o possível e o modelar.
Mas, talvez
por aquele mesmo paralelismo, a obra mais famosa de Cabral é sua
obra menos econômica. Não à toa os livros seguintes
vão parecer trabalhos daquele que, quando jovem, sonhara ser crítico,
não poeta. Em 'Serial' ele faz poesia sobre outros poetas (Marianne
Moore, Francis Ponge) e sobre pintores (Miró, Mondrian) e, na diversidade
de estilos, encontra o traço que sintetiza: todos atuam lembrando
a si mesmos de que a verdadeira disciplina é a de seguir reaprendendo.
Mas o poeta é mais essencial do que o crítico: é sua
própria linguagem que se enriquece das análises que faz.
O salto para 'A Educação pela Pedra' (1966), ponto alto de
sua poética, está feito. Cabral de novo se concentra no tema
da própria poesia. Preposições ('pela de dicção'),
gerúndios ('um ser estando') e verbos ('ser falar delas') são
substantivados; uma pontuação mais variada faz mudanças
de ritmos e ênfases; o registro é mais de apresentação
do que de descrição ou narração. Voz e silêncio
se misturam e se interrompem, criando melodia como o vento no canavial.
Como pode
ser tão musical um poeta tão mineral? Uma música comedida
e rascante, sim, mas música. A 'elocução horizontal'
do canavial e a 'veemência passional' do mar se dão lições
mútuas, porém não coincidentes: 'O comedimento do
latifúndio do mar,/ que menos lastradamente se derrama'. Lastro
e líquido, mineral e fluente, o poema se faz e se desfaz a todo
instante. No conjunto, porém, é uma formação:
uma 'teia tênue', como de diz no célebre 'Tecendo a manhã'.
Veja como o poema se tece em 't' e 'n', em nós e vazios: 'E se encorpando
em tela, entre todos,/ se erguendo tenda, onde entrem todos,/ se entretendo
para todos, no toldo/ (a manhã) que plana livre de armação'.
Esse jogo entre construir e interromper faz do poeta um ser a meio caminho
entre arquiteto e músico, entre o que solidifica e o que dissolve,
entre o seco e o úmido: 'Um rio precisa de muitas águas em
fio/ para que todos os poços se enfrasem:/ se reatando, de um para
outro poço,/ em frases curtas, então frase a frase,/ até
a sentença-rio do discurso único/ em que se tem voz a seca
ele combate'. Jogando grãos na água, o poeta 'obstrui a leitura
fluviante, flutual,/ açula a atenção, isca-a com o
risco', mas não para negar a língua, e sim para lhe dar outra
e mais sutil riqueza.
Mas por que,
nesse poeta como em tantos grandes poetas, a poesia é tema da própria
poesia? Porque o homem que luta com as palavras - o poeta - é o
homem preocupado com a essência do homem, uma essência que
sabe ambígua e fugidia e atrás da qual tateia com o que lhe
é dado. E o que lhe é dado, o concreto da palavra, traz o
abstrato dentro de si: 'Os vazios do homem sentem a um cheio/ [...] Os
vazios do homem, esse vazio cheio/ [...] contêm nadas, contêm
apenas vazios/ [...] ou o vazio que inchou por estar vazio'. Esse artista
não está interessado apenas no jogo visual de vazio e cheio,
de silêncio e voz, de inorgânico e orgânico: ele vê
nesse mesmo jogo a condição do homem, um 'vazio cheio', inchado
por um orgulho falastrão e cerimonioso que finge ignorar a morte,
pronto a se derramar para além dos limites, em discursos frouxos.
Há, enfim, uma ética detrás dessa poética:
ao poeta cabe canalizar e cristalizar a palavra, 'fundi-la em coisa, espessa,
sólida,/ capaz de chocar com a contígua'.
Nesse choque
entre palavras perfiladas, cravando a lâmina no rio do tempo, Cabral
fala do homem, pratica arte moderna e combate a moleza da língua.
O trono não está vazio: o último livro de Ferreira
Gullar bebe justamente na fonte precisa de Cabral. Mas Cabral atingiu entre
'Cão sem Plumas' e 'Educação pela Pedra' uma grandeza
fundadora, em que a sociologia e o esteticismo perdem valor. Como os melhores
criadores do país, ele soube resistir à carnavalização
e ao cartesianismo e, na adequação elíptica entre
expressão e construção, foi um grande poeta brasileiro
moderno. Acima das classificações frouxas.
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