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Página atualizada em 22.10.1999

 
Daniel Piza
<dpiza@estado.com.br>


VINICIUS DE MORAES 

           De “O ar está cheio de murmúrios misteriosos” a “Ganga Zumba, tui, tui, tui, é Zambi” – primeiro e último versos do volume “Poesia Completa e Prosa” que a Nova Aguilar acaba de publicar –, os poemas e canções de Vinicius de Moraes (1913-80) podem parecer bastante díspares, até mesmo contraditórios. Sua literatura começa impregnada de Romantismo, com influências nítidas de Rilke e Whitman, marcada por uma retórica discursiva em que palavras como “infinito” se repetem; aos poucos vai ganhando sensualidade, humor e coloquialidade, influenciada por modernistas como Bandeira e Neruda; e, ao final, depois de invadir a música popular, se esvazia completamente das metafísicas e simbologias juvenis. Na troca dos substantivos “sublimes”, grafados em maiúscula, para os diminutivos que valeriam ao próprio autor o apelido de “poetinha”, muito se perde e muito se ganha. A leitura das 467 páginas de sua poesia e das 223 de seu cancioneiro, incluídas na edição organizada por Alexei Bueno, não pode colocar a irregularidade como cômputo final, mas as mutações da obra de Vinicius saltam aos olhos.

          Na seção “O sentimento do sublime”, que reúne os três primeiros livros do poeta (1933-36), encontram-se versos de teor religioso como “Eu continuo à beira do caminho/ Vendo a luz do infinito/ Que responde ao peregrino a imensa dúvida” que associam Vinicius a uma linhagem de intelectuais brasileiros prenhe de agonia católica, à qual pertenceram seus amigos Octávio de Faria, Otto Lara Resende, Pedro Nava, Augusto Frederico Schmidt e outros. Já a partir de 1936, quando conhece Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, sua poesia sofre a primeira grande mudança. O livro “Novos Poemas” (1938), incluído no volume da Nova Aguilar sob a epígrafe “A saudade do cotidiano”, ainda é dominado por formulações melancólicas e afetadas (“E os mais serenos cristos se desenlaçam dos madeiros/ Para lavar o rosto pálido na névoa”, diz “Intangível”), mas já há poemas que adotam vocabulário simples e enunciação direta como “O falso mendigo” (“Minha mãe, mande comprar um quilo de papel almaço na venda/ Quero fazer uma poesia”).

          Mas é depois de 1938, quando faz sua temporada inglesa, com os textos mais tarde coligidos em “Poemas, Sonetos e Baladas” (1946; rebatizado como “O encontro do cotidiano”), que Vinicius chega a uma maturidade estilística – e a seu apogeu poético. É nesse período que, além dos sonetos famosos (“Soneto de fidelidade”, “Soneto do maior amor” e “Soneto de separação”) e de “O dia da Criação” (“Porque hoje é sábado”), escreve suas obras-primas. Nada contra os sonetos, com sua eloquência criativa e cadência bem-comportada, mas são especialmente as baladas desse livro que trazem uma combinação de qualidades inédita para a poesia brasileira. Afinal, Vinicius pode não ter sido tão grande poeta quanto Drummond, Bandeira, Murilo ou Cabral, mas alguns poemas seus transcendem classificações fáceis.

          É nessas baladas que, num olhar livre de cronologia, vemos um híbrido dos impulsos que parecem dividir a obra de Vinicius – o idealista e o sensual. É nelas que seu humor pontua sua religiosidade, que seu romantismo ainda não se rendeu à marotice ipanemense, que seu registro pode passar do erudito ao vulgar sem perder riqueza ou flexibilidade. Não por acaso são baladas, a meio caminho entre as canções que dependem do canto para viver e os poemas que pedem o silêncio para reler. Conjugam rigor e liberdade, coloquialidade e refinamento. Todo o efeito vem, na verdade, desses contrastes harmonizados.

          Vinicius se mostra capaz de usar polissílabos raros e a segunda pessoa do plural para se dirigir a prostitutas: “Pobres flores gonocócicas/ Que à noite despetalais/ As vossas pétalas tóxicas!” Assim começa a “Balada do mangue”, um de seus maiores poemas. O som e o sentido se reforçam mutuamente: “No entanto crispais sorrisos”, e a sequência de vogais faz pensar num trovador fescenino, num repentista obsceno e culto ao mesmo tempo, falando alto com um sorriso ao canto da boca, “Glabras, glúteas caftinas/ Embebidas em jasmim/ Jogando cantos felizes/ Em perspectivas sem fim./ Cantais maternais hienas/ Canções de caftinizar/ Gordas polacas serenas/ Sempre prestes a chorar”. O ex-leitor de Leopardi reencontra o infinito melancólico em meio a cantos felizes, o mistério no contraponto de vozes; e o menino que era puro agora se diverte sem ilusão, mas ainda questiona: “Para onde irão vossos cantos/ Para onde irá vossa nau?” Afinal, trata-se de mulheres “pobres, trágicas” que o poeta, depois de usar o adjetivo “multidimensionais” como um só verso de passagem, qualifica de “ponto morto de choferes” e “passadiço de navais”... E, depois de chamar o antro de “hospital etílico e heliotrópico” – remetendo às pétalas tóxicas da abertura –, pergunta por que elas não ateiam fogo às vestes e se lançam como tochas “contra esses homens de nada nessa terra de ninguém”. Da angústia à malícia, as palavras vão dançando em compasso de jogral semimodernista, misturando ritmos e registros.

          Poucas vezes a literatura brasileira, tão rica em humor, viu trocadilhos tão saborosos como “Ou não era Pedro Nava/ Quem me falava aqui junto/ Não era o Nava de fato/ Nem era o Nava defunto?” (“Balada de Pedro Nava”). Ali está ele, o “poetinha”, como um Baudelaire tropical se apaixonando pela mulher que passa, mas ainda definindo as beldades de bicicleta na praia de Copacabana como “centauresas transpiradas”, para citar uma expressão difícil de fazer caber em letra de música sem soar ridícula. E ali está ele, bacharel em Direito, olhando lascivamente para arquivistas e lamentando sua vida “sem sexo e sem saúde” (“Balada das arquivistas”). Há tanta tristeza nesse poeta exclamativo – depois autor dos versos famosos de canção, “Tristeza não tem fim/ Felicidade sim” – que ele pode escrever uma “Balada dos mortos dos campos de concentração” e fazer humor com esse assunto trágico: “Vossas louras manicuras/ Arrancaram-vos as unhas/ No requinte de tortura/ Da última toalete...”.

          E tem mais. Ele pode escrever um poema que Cabral ou o Drummond de “Áporo” assinariam: “Allegro”. Já na primeira estrofe desse soneto atípico ele dá o andamento de um encontro passional: “Sente como vibra/ Doidamente em nós/ Um vento feroz/ Estorcendo a fibra”, em que a inversão sintática acentua a torção; e logo em seguida ele chega à metáfora erótica, “E as plantas carnívoras/ De bocas enormes/ Lutam contra as víboras”, descrevendo um casal fazendo amor ao luar. Não à toa a homenagem “A Verlaine” (outro poema do livro), às “iluminações malditas” do poeta: Vinicius aos poucos se torna um pós-romântico desiludido diante da rosa de Hiroxima ou, como diz, “na corda bamba do abismo”.

          Eis por que se segue sua terceira grande virada, no pós-guerra. Faz amizade com escritores “engajados” como Neruda e Guillén, agita no cinema e, em 1953, escreve seu primeiro samba, “Quando tu passas por mim”, em parceria com Antonio Maria. (Já havia escrito, nos idos de 1932, um foxtrote, “Loura ou morena”, com Haroldo Tapajós.) O volume traz sua crítica de cinema, obra de um humanista até certo ponto ousado, de um homem de letras que pertenceu à primeira geração que começou a levar o cinema a sério (até então não era considerado “arte”, nem mesmo a sétima), talvez a sério demais. No começo, por sinal, fez uma cruzada contra o cinema falado, quando filmes como “Cidadão Kane” já haviam mais do que provado a eficiência do meio. Mas Vinicius gostava do cinema ingênuo e sentimental dos americanos tanto quanto do cinema “dialético”, plástico, de um Eisenstein, e depois de morar em Los Angeles se rendeu à indústria hollywoodiana. Nos textos, além de pôr muita cultura e curiosidade, sabia ser engraçado e mordaz: “Mais um filme brasileiro, mais uma desilusão”, começa ele o artigo sobre “Segura esta Mulher”, da Atlântida, em 1946. O cinema, ironicamente, terminaria levando-o à música popular.

          Em 1955 Vinicius é chamado pelo produtor francês Sasha Gordine a escrever o roteiro do filme “Orfeu Negro”, que se tornaria a peça “Orfeu da Conceição”, e no ano seguinte convida Tom Jobim para fazer a música do espetáculo. A Bossa Nova seria lançada dois anos depois, e ao lado de Tom ele faria suas melhores canções, como o “Cancioneiro” sensatamente incluído no volume deixa claro. Antes, porém, precisa modificar sua forma de escrever. Sua mulher de então, Lila Bôscoli (irmã de Ronaldo), reclama da rima entre “peixinhos” e “beijinhos” e, segundo Ruy Castro em “Chega de Saudade”, Vinicius diz a ela para não ser “tão sofisticada”. Tom depois diria que a letra foi muito difícil de musicar, mas alguma transformação ocorria em Vinicius para que ele passasse a escrever versos como “Não quero mais esse negócio/ De você viver sem mim”. Tom era o melhor parceiro de Vinicius justamente porque refreava seus enfeites literários, ainda que isto soe ofensivo para muitos compositores populares que querem ser considerados exclusivamente poetas, como se versos concatenados a uma melodia dessem resultado exatamente igual ao dos lidos em papel calado. Outro grande parceiro de Vinicius, nesse sentido, foi Carlinhos Lyra, com quem escreveu “Minha Namorada”, entre outras.

          Com Tom Jobim, Vinicius comporia “Garota de Ipanema”, uma das canções mais executadas no mundo todo até hoje, ao lado de “Yesterday”, dos Beatles, e “My Way”, com Frank Sinatra. O segredo de canções como “Garota de Ipanema” está no diálogo sonoro entre letra e música, entre a dicção fonética e a linha melódica. Quando se ouve “Olha que coisa mais linda/ Mais cheia de graça/ É ela menina/ Que vem e que passa/ Num doce balanço, a caminho do mar”, o balanço da garota tem expressão vocal graças ao jogo das vogais com o ritmo sincopado. Em outras, como “Insensatez”, as sílabas longas, especialmente em “a”, se somam à tristeza da melodia. Seja como for, a poesia de Vinicius diminuía em quantidade e qualidade à medida que seu cancioneiro se ampliava.

          A partir daí Vinicius faria parcerias com o grande violonista Baden Powell, nos “afro-sambas”, com Edu Lobo, Francis Hime e, depois de 1970, com Toquinho. Agora, porém, o ex-diplomata francófilo e cinéfilo, que já não fazia versos como antigamente, também via suas canções começarem a perder a força. Não há uma canção sua com Toquinho que não tenha uma palavra em diminutivo, e a música ressalta o tom edulcorado por não possuir a sofisticação harmônica da batida da Bossa Nova. Seu lirismo e sua espirituosidade estavam novamente dissociados, ou aguados pelos hectolitros do que chamava de “cachorro engarrafado” (o whisky) – e já fazia mais de 30 anos que o poeta tinha escrito em Oxford suas baladas mais memoráveis. Mas a grande angústia do “poetinha”, a olhos vistos, ainda estava ali, descalça, camisa aberta no peito.


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