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Dráuzio Varella

As valiosas palavras 
no inferno do Carandiru 
Depois de uma década de trabalho voluntário e convivência no interior do maior presídio do País, Drauzio Varella traz relatos surpreendentes aos ouvidos da opinião pública  
  
Por Rose Guirro 
in Jornal da Tarde, 17.07.1999
 
  

Muito já se falou sobre o Carandiru, a maior prisão da América Latina. Histórias de rebeliões, de tentativas de fuga, de crimes e de mortes. Mas, agora, um livro mostra um lado novo. São histórias de vida, contadas ao médico oncologista Drauzio Varella, que em 1989 iniciou naquela prisão, que abriga 7.200 homens, pesquisas sobre a Aids. Estação Carandiru mostra muito mais do que números da doença que, aliás, faz menos vítimas hoje em dia. Se, em 1994, 13,7% dos presos estavam infectados pelo HIV, no ano passado, este número caiu para 7,2%. Graças ao crack, como ele conta.  

Não que o médico defenda o uso dessa droga, mas sim por que o uso de cocaína injetável era o grande responsável pela transmissão do HIV. Num dos capítulos do livro, Drauzio Varella explica como era o ritual de cocaína injetável, ou “baque”, como é chamado pelos usuários. É chocante, mas também mostra a criatividade que é necessária para viver na cadeia. Um dos personagens conta como faz seringas para vender aos viciados usando uma caneta Bic e as tiras da sandália havaiana.  
Graças a essa capacidade de improvisar, algumas vezes o médico foi enganado pelos seus pacientes. Ele narra como recebeu vários pedidos de receitas de Biotônico Fontoura. Descobriu, depois, que o fortificante era misturado à Maria Louca, uma espécie de cachaça feita nas celas com casca de frutas, para dar mais sabor. Em outra ocasião, cansou de receitar vitamina B6. Mas ficou sabendo que as ampolas eras vendidas a presos que cultuavam o físico e que o dinheiro servia para compra de drogas.  

Drauzio expõe, ainda, outras situações engraçadas ou trágicas. Como no capítulo sobre leptospirose. Vários presos contraíram a doença e ele perguntou a um deles, em tom de brincadeira, se o motivo era a escavação de um túnel. Constrangimento geral. Pouco depois, em maio de 96, viu no jornal que vários presos haviam tentado fugir por um túnel, numa ação espetacular. O plano não deu certo porque um dos fugitivos ficou entalado. Ele ganhou o apelido de Rolha e sofreu várias ameaças.  

No capítulo reservado aos travestis, mais surpresas. O autor confessa que, no início de seu trabalho na Detenção, não sabia se os chamava de “ele” ou “ela”, mas acabou optando pelo segundo. Porque compreendeu que são mulheres. “Travesti é a pessoa mais marginal que existe. Todo mundo tem um amigo ou conhecido homossexual, mas ninguém tem um amigo travesti. Ele é sozinho e, por isso, na cadeia tem de impor respeito. Mas faz isso usando técnicas femininas. Só não são aceitos quando querem dar uma de ‘macho’. ” Se brigar, conta, assina sua sentença de morte.  

Além de aceitos, são disputados. Há o caso surpreendente de Sheila, que confessou ao médico ter mantido relações com mais de mil parceiros em um ano, apresentando testemunhas, que não se infectou com o HIV. Mas a grande maioria dos travestis morreu na cadeia. Varella diz que a morte numa cela é a coisa mais solitária que já viu.  
“O preso fica lá, numa cama, longe da família e dos amigos. É muito triste.”  

Os três últimos capítulos do livro relatam a maior tragédia do Carandiru, ocorrida em 2 de outubro de 1992, quando 111 presos foram mortos. Muitas versões sobre o fato já foram divulgadas, a maioria por policiais e funcionários da cadeia. Esta, contada por Varella, tem o seu testemunha e o de alguns presos.  

O médico relembra que, naquela tarde, estava na enfermaria até pouco antes da  
invasão. Estava tudo calmo. Mas, de acordo com os presos, numa partida de futebol estourou uma briga. Os presos foram para os pavilhões e a confusão ganhou corpo. Aí começam as divergências entre a versão oficial e a dos presos. Na primeira, consta que nessa hora vários presos foram mortos. Os detentos negam. Eles contam que a PM chegou a gritou que ia invadir e que era para todo mundo entrar nas celas. “A gente pode ser ladrão, mas burro não. Ninguém gosta de morrer”, relembrou um preso ao contar a história a Varella.  

Os relatos seguem dizendo que os PMs foram em várias celas e metralharam os presos, que tentavam se esconder. Foram 30 minutos de tiros, depois o silêncio. Os sobreviventes foram obrigados a tirar a roupa e ir para os corredores. Apanharam e foram atacados por cachorros. Dois detentos contam como conseguiram se salvar: um, Jacó, que traficava por telefone, se deitou entre os mortos, apesar de estar apavorado com a possibilidade de contrair Aids no meio de tanto sangue. Outro, Dadá, um ladrão, escapou porque um tenente decidiu poupá-lo: ele era muito parecido com o filho mais velho do PM. Só para lembrar, nesta invasão não houve nenhum ferido e nenhum policial foi morto.  

Num local onde a palavra vale mais do que as leis, o médico sabe que nem tudo o que os presos contaram e que está no livro é verdade. Ao mesmo tempo em que cumprem o que prometem aos colegas para sobreviver, sempre garantem que estão lá por engano. É a lei da sobrevivência.  



ESTAÇÃO CARANDIRU, de Drauzio Varella. Companhia das Letras, 368 págs., R$ 26,00.  
Rose Guirro é jornalista e chefe de reportagem da editoria de Geral do Jornal da Tarde 




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