Enéas Athanázio
Não teve jeito
Mal Janary
Messias saiu do comitê e a moça rumou na sua direção. Alta e
espigada, tinha olhos verdes e cabelos aloirados que desciam sedosos
até os ombros. Vestia se bem e se movia com elegância em cima dos
saltos altos, exibindo vaidosa as curvas do corpo. Quando o perfume
que exalava lhe chegou às narinas, o advogado sentiu que estava
diante de uma mulher de virar a cabeça de qualquer vivente.
Brilhavam os olhos do solteirão no momento em que ela chamou com voz
rouca:
– Dr. Janary!
Dr. Janary!
Sorridente,
estendia a mão morena, prendendo com firmeza a dele e procurando
afastá lo das pessoas que o envolviam. Com alguma dificuldade o
rapaz se livrou e seguiu a até a sombra da aroeira folhuda do outro
lado da rua.
– Sou a Letícia
Bridon, professora no Caxambu – foi ela dizendo. – O senhor não me
conhece, mas preciso de um favor seu.
Surpreso com
aquilo, ele imaginava o que poderia fazer pela moça cheirosa.
Esperou que não fosse algum desses pedidos impossíveis, feitos às
vésperas das eleições. Não gostaria de desapontar uma pessoa assim.
Ansiosa, a moça o fitava com os olhos incríveis, como se lesse nas
faces sua inquietação.
– Não é nada de
mais – explicou, manifestando com um gesto o receio de que fossem
outra vez cercados pelos eleitores que se aproximavam. – Nada que o
senhor não possa fazer!
– Muito bem,
Letícia, vamos ver do que se trata.
– É que eu
queria ser apresentada ao candidato – disse a moça meio nervosa,
rindo sem jeito e olhando em redor para verificar se ninguém ouvia.
– Sou apaixonada por ele, não posso perder a ocasião! – E repetiu,
escandindo as sílabas: – A-pai-xo-na-da...
E agora? –
cogitou o advogado. O candidato tinha fama de marica, não gostava de
mulher, vivia rodeado de homens. É verdade que não aparentava,
trajava se com discrição e tinha uma fala grossa de fazer inveja.
Por mais que se
esforçasse, Janary não encontrava na memória um episódio em que o
candidato se envolvesse com mulher, não lhe constava que tivesse
namorada ou mesmo caso passageiro. Por via das dúvidas, na convenção
realizada na Capital, votara contra mas fora vencido e agora, como
chefe do Partido em São Simão, não podia deixar de apoiá lo. Os
caboclos da terra, campeiros desconfiados, trabalhavam contrariados
e observavam atentos os gestos do candidato. Janary torcia para que
não escapasse algum trejeito suspeito. Seria o fim.
Mas isso não
podia ser dito àquela moça e a solução era entrar no jogo e
apresentá la ao homem, mesmo que tivesse que desenvolver uma
operação de cerco.
– Está bem –
concordou ele. – Não vai ser fácil, com tanta gente, mas vamos
chegar no homem até você falar com ele. Quando isso acontecer, não
desgrude. Você tem que ajudar.
Trocaram um
olhar cúmplice e o advogado se envolveu com os outros, nos
preparativos da recepção e do comício. Não demorou e alguns foguetes
estouraram para os lados do campo, anunciando a chegada da comitiva.
Uma caravana barulhenta de carros e caminhões entrou levantando
poeira pela rua principal. Gritos, buzinas, foguetes e até alguns
tiros formavam uma zoeira infernal, espantando as vacas nos
potreiros e os guapecas vadios que chispavam arrepiados e ganiçando
para baixo dos soalhos. Nas casas, irritadas, as mulheres acalmavam
crianças alvorotadas com a bulha incomum.
Em pouco a
caravana atingiu a praça e estacou. Muito teso e aprumado, o
candidato desceu e foi recebido por Janary e outros partidários.
Fechou se um círculo em torno do grupo e as pessoas procuravam
cumprimentar o candidato, estimulá lo, trocar palavras. Ali perto,
muito atenta, a professora tentava furar a roda e se aproximar,
enquanto o visitante apertava mãos suadas e nem sempre limpas. Não
parecia perceber e tinha uma palavra simpática para todos, segurando
um tempão cada mão calosa que lhe estendiam. Notando, afinal, uma
brecha no povaréu, Janary fez sinal à moça e ela se aproximou com
grande agilidade, no maior sorriso, esbanjando beleza. Sua figura
esguia e suave destoava no meio áspero daquela gente mal ajambrada e
quando chegou perto provocou um ligeiro silêncio ou, pelo menos,
reduziu o volume da zoada.
– Professor! –
apressou se Janary. – Quero apresentar lhe a nossa companheira
Letícia. Quer conhecer o senhor.
A moça se
colocou na frente do homem, mostrando se inteira, exibindo se como
num desfile. O rosto se iluminava, olhos, dentes e cabelos
rebrilhavam ao sol ardente quando ela estendeu o braço para o
cumprimento. Embora seus lábios esboçassem um ligeiro sorriso
profissional, o candidato não conseguiu esconder a contrariedade que
lhe passou pela face e um leve enrugamento da testa. Ao cumprimento
caloroso da mulher, respondeu com um toque rápido, enrolou palavras
murmuradas e se integrou outra vez no magote de caboclos.
Desconcertada, a
mestra do Caxambu reprimiu o sorriso e olhou com desalento para o
advogado. Sem revelar surpresa no olhar divertido, Janary encolheu
os ombros e fez um gesto que significava: “Não desista!” Ela
entendeu de pronto, grudou se nas pegadas do candidato e se dispôs a
segui-lo sem descanso. Não lhe daria sossego!
Dali em diante
não o largou mais. Por bem ou por mal, teria que notar sua presença,
mesmo que se transformasse na lembrança mais desagradável daquela
visita ao São Simão. E assim foi. Acotovelando e empurrando, pisando
e sendo pisada, mantinha se firme ao seu lado, disputando o espaço
com eleitores, cabos, chefes e chefetes, às vezes sujeitos mal
encarados de assustar criança. Virando se para a direita, o
candidato deparava com ela, solícita, sorridente; voltando se para a
esquerda ou para trás, lá estava ela, ágil, passando o copo de água,
apresentando quem chegava, lembrando algum nome esquecido,
esclarecendo detalhes. E assim foi na andança pelas ruas poeirantes,
nas visitas às figuras gradas e à igreja, na inspeção às obras
públicas, em todos os lugares, enfim. Até no comício achou jeito de
ficar a seu lado no palanque armado na praça.
Emburrado, não
podendo mais esconder a irritação, o candidato tudo fazia para
evitar a moça e fugir do assédio. Janary acompanhava tudo com ar
divertido, as pessoas mais próximas notaram o que acontecia e aos
poucos todas acompanhavam com interesse aquele jogo estranho e
engraçado. As risotas, as caçoadas e as insinuações se espalhavam e
muitos dos presentes afirmariam mais tarde que o visitante tratou de
abreviar o programa e ver São Simão pelas costas, incluindo a
apaixonada insistente. No momento em que cruzou as divisas do
município, era visível o alívio que sentia e um suspiro nascido nas
profundas escapou sem disfarce.
Enquanto isso,
na bodega do Nhô Gué, a caboclada se divertia a la grande com o
acontecido. Aquela cidade, com justa fama de valente, já tinha feito
correr juiz, delegado, inspetor e autoridades menores. Até sujeitos
temerosos e cueras foram postos para fora, jamais se atrevendo a
voltar. Mas essa era a primeira vez que um candidato saía de São
Simão corrido de mulher bonita.
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