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			Enéas Athanázio* 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
			A alma 
			encantadora das 
			ruas 
			  
			  
			
			Sustentando que só 
			flanando pelas ruas, em contato direto com o povo, se pode conhecer 
			uma cidade, o escritor carioca João do Rio publicou, no início do 
			século passado, um livro tão interessante quanto raro nos dias de 
			hoje — “A Alma Encantadora das Ruas” (1908). Perambulando sem 
			cansaço pelas ruas, praças e becos, conseguiu captar a vida urbana 
			ao seu natural, a fisionomia da cidade, as pequenas profissões e 
			atividades do povo miúdo, seus dramas, paixões e alegrias, 
			tornando-se um dos mais autênticos intérpretes da alma carioca e 
			contribuindo para que se tornasse conhecida. No seu rastro viria, 
			pouco depois, Lima Barreto, pintor de uma paisagem ocupada por seres 
			sofridos mas que sabem desfrutar os momentos de fugidia felicidade. 
			E Jorge Amado, mais tarde, prestaria idêntico serviço a Salvador. 
			Ambas as cidades muito devem à literatura; foi ela que contribuiu de 
			forma decisiva para que se divulgasse o modo de ser de seu povo e 
			sua filosofia de vida.  
			
			Surge agora, em 
			outro recanto do país, um romancista de fôlego que se propõe a 
			enfrentar idêntico desafio em relação à sua cidade de Teresina, a 
			chamada “Cidade Verde”. Trata-se de OTON LUSTOSA, escritor piauiense 
			que acaba de lançar o romance Vozes da Ribanceira (EDUFPI – 
			Teresina, 2003), cuja ação se ambienta no bairro do Poti Velho, nos 
			arrabaldes da metrópole e às margens do Poti, um dos rios que a 
			banham. Escrito numa linguagem muito pessoal, com estilo próprio, o 
			autor revela desde o início conhecer com segurança a vida daquela 
			gente e seu modo de agir e pensar, transmitindo seu texto um retrato 
			autêntico do meio onde batalham pela sobrevivência os oleiros, 
			artesãos, pescadores, pequenos comerciantes, passarinheiros, 
			proprietários, canoeiros, violeiros e cantadores, não faltando 
			malandros, traficantes, jagunços, prostitutas e todo um ror de 
			figuras entregues às mais variadas e estranhas ocupações. Desse meio 
			buliçoso, barulhento e colorido, ele compõe uma poesia que brota das 
			águas do rio, do barro, da alma do povo, enfim. 
			
			O tema central do 
			romance é desenvolvido em torno da gente humilde que habita o 
			bairro, vítima da costumeira exploração pelos mais aquinhoados ou 
			mal intencionados que existem em toda parte. Para complicar o 
			quadro, surge ali um elemento estranho, perturbando os espíritos e 
			gerando suspeita, na pessoa do “hippie” oriundo do Recife, cujo 
			passado misterioso intriga a “autoridade” e fascina o povo. Artesão 
			habilidoso, músico e, ainda por cima, poeta — reúne tudo que possa 
			inquietar o coração do soldado que impava de orgulho por ser “nobre 
			e descendente do Visconde da Parnaíba”, cuja maquinação junto a um 
			investigador que farejava “subversivos” em todos os cantos acaba por 
			levá-lo à prisão, e, depois, à fuga para local desconhecido, 
			episódio em que contou com a solidariedade silenciosa dos moradores 
			do bairro. Além disso, seu porte atlético, suas tatuagens e seus 
			versos acalentavam os sonhos secretos das moças e acabaram por 
			seduzir uma radialista cujo programa tinha intensa penetração 
			popular. Ele “faz um pacto de amor com o rio de águas barrentas”, o 
			que implica em dizer com o povo ribeirinho.  
			
			No desenvolvimento 
			da trama o autor se movimenta com desenvoltura, colocando no cenário 
			um sem-número de outras figuras, situações e episódios que revelam 
			um mundo ativo e complexo na sua aparente singeleza, onde explodem 
			conflitos, maiores ou menores, nos quais todos se envolvem, muitas 
			vezes com paixão. 
			
			Entre tais 
			episódios, chamam atenção a rivalidade entre adeptos de crenças 
			diferentes, esboçada de forma clara na festa de São Pedro, o santo 
			pescador, e a procissão aquática em que os seguidores de outras 
			seitas não deveriam participar, ainda que seus santos fossem os 
			mesmos, provocando intermináveis discussões. A criação da Oficina do 
			Barro, organizando as artesãs numa espécie de cooperativa que 
			permite a produção de um artesanato de luxo e a melhoria dos 
			rendimentos das que lidam com a “massa peguenta do barro”.  As 
			“coroas” do rio, onde medram plantas passageiras, enquanto as águas 
			não vêm, amores fugazes e encontros suspeitos, observados, talvez, 
			pelo Cabeça-de-Cuia, o pescador Crispim, cuja lenda povoa o 
			imaginário local. A procissão pelo rio, capitaneada pela majestosa 
			lancha “Sereia”, luzidia e enfeitada, compondo uma cena de cinema. A 
			festa, o baile, os desafios dos repentistas, as comidas típicas e as 
			bebidas fortes, as músicas, o permanente temor das enchentes, a 
			preocupação com o desmatamento, os incêndios, as invasões de 
			terrenos e a inevitável presença do latifúndio a sugar 
			arrendatários. Dramas e alegrias de um povo miúdo e sofrido, ligado 
			ao rio por um amor carnal, físico, e que fez um pacto de amor com a 
			cidade desenhada no horizonte, da qual todos se sentem integrantes. 
			Nada escapou ao autor na pintura desse cenário repleto de vida, luta 
			e esperança. 
			
			Acentuando a 
			autenticidade do ambiente, o autor lança mão de termos e expressões 
			locais, embora bem dosadas, evitando o exagero e a caricatura. 
			Revela riqueza de imagens, algumas de cunho popular e de uso comum 
			nas ruas: “todo lorde” (elegante), “alisado de mão” (carícia), 
			“moças oferecidas”, “o rio a lamber as raízes”, “o rio manso é 
			ginete marchador”, “em riba das canoas”, “no colo da terra”, 
			“galego”, “quicé”, “gunguna” etc., e assim fixando ainda mais o 
			romance ao chão teresinense. 
			
			Concluindo, direi 
			que o romance de OTON LUSTOSA é convincente e bem escrito, 
			contribuindo para que sua cidade seja melhor conhecida e, em 
			conseqüência, amada. Não temo em afirmar que Teresina ganhou o seu 
			romance. Como dizia Câmara Cascudo, “bata o Piauí nas tábuas do 
			peito: ganhou um grande escritor brasileiro!” .  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
			  
			
			  
			
			
			  
			
			Leia Oton Lustosa 
			
			  
  
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