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            Enéas Athanázio 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Estranhos na fazenda 
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Chovia há dias e 
            o céu continuava cinzento, prometendo. Tudo parecia lavado, pingava 
            água das árvores, o gramado verdejava nas coxilhas e as canhadas 
            viraram banhados. A passarada gritava, os sapos coaxavam, alguma rês 
            mugia. O grosso do gado se enfurnava nos capões de mato e só algumas 
            cabeças pastavam no campo limpo. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            No casarão da 
            Fazenda, sede da “Primavera”, os moradores se acomodavam em roda do 
            fogão, depois do café da manhã. O assunto era pouco e não tardou a 
            recair nas suspeitas que vinham preocupando a todos. Na tarde 
            anterior, montado na velha mula preta de fiança e coberto por uma 
            capa lageana, o fazendeiro Elísio Leite Preto, de apelido Nhô Pré, 
            andara investigando para os lados do rio Canoas e do Taimbé e 
            voltara mais desconfiado. Tudo indicava que os bugres vinham 
            cruzando o rio à noite e entravam na Fazenda, deixando sinais de sua 
            passagem. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            As desconfianças 
            começaram quando o capataz Aristides e os peões notaram eitos de 
            roças de milho colhidas às pressas, leitões e ovelhas desaparecidos 
            sem explicação e até o sumiço de ferramentas deixadas num paiol. 
            Depois as suspeitas se agravaram com a descoberta de rastos frescos 
            de pés descalços, alguns deles perto da casa, o que intrigava Nhô 
            Pré porque os cachorros não deram alarme. Em conversa com o Arigó, 
            negro velho que morava de agregado na boca do mato, ele lhe afiançou 
            que os bugres tinham mandingas que faziam calar os cachorros, mesmo 
            os mais brabos.Com aquilo encasquetado na cabeça e a ruga da testa 
            mais funda, Nhô Pré imaginava como contar à mulher que a Fazenda 
            vinha sendo visitada pela bugrada, inclusive no quadro da casa. 
            Criada em colégios e pouco simpática à lida fazendeira, era de temer 
            a reação dela.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Naquela manhã, 
            enquanto a chuva oriava, as crias da casa aproveitavam para fazer o 
            serviço de fora. Sozinho com a mulher na frente do fogão, Nhô Pré 
            encontrou ocasião para falar sem provocar pânico. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “Eles andam por 
            aí” – começou de repente, quebrando o silêncio.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Voltando para 
            ele os olhos azuis, a mulher nada disse, como se esperasse. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “Os bugres têm 
            entrado na Fazenda” – afirmou com calma para não assustar. – “Agora 
            não tenho dúvida. E parece que são muitos...” 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A mulher fez um 
            gesto de incredulidade, seus olhos faiscaram e os cabelos loiros 
            foram sacudidos em negativas enérgicas de cabeça. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “Não é 
            possível!” – exclamou ela, quase gritando. – “Eles nunca passaram 
            para o lado de cá, ficaram sempre no Rio Grande.” 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “Quem sabe é a 
            crise” – argumentou o marido. – “A safra do lado de lá foi muito 
            fraca por causa da chuvarada, os bugres não acham roça pra saquear e 
            se baldeiam pra este lado do rio. Os fazendeiros de lá também estão 
            batendo forte neles.” 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ela aquietou, 
            cismando, e levantou de repente da cadeira, gritando numa voz 
            angustiada: 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “As crianças! 
            Tem que buscar as crianças!” 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Em instantes, 
            chamava pelo capataz, através da janela da cozinha, e determinava 
            que fosse buscar o casal de filhos, na escola do Umbu, para onde 
            tinham ido muito cedo. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “Calma, mulher, 
            calma!” – repetia o marido. – “De dia não tem perigo.” 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A fazendeira, 
            porém, só se acalmou quando as crianças apontaram no carreiro do 
            piquete, escoltadas pelo Aristides e um peão armados. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Todos os 
            moradores ficaram sabendo das visitas indesejáveis e o fazendeiro, 
            para tranqüilidade geral, determinou que a peonada não largasse das 
            armas, sem perder de vista a casa da sede. Também mandou recados aos 
            agregados para ficarem de sobreaviso. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            As crianças, 
            decidiu a mulher, tinham que ser mandadas para a casa da cidade com 
            uma das criadas. Lá continuariam as aulas. Lembrava ela que os 
            bugres gostavam de roubar crianças brancas e depois queimavam as 
            solas dos pés para não fugirem do toldo. Na manhã seguinte, com um 
            enxoval arrumado às pressas, as crianças rumaram para a segurança da 
            cidade. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Nhô Pré, 
            enquanto isso, se desdobrava nos cuidados. Ninguém podia se afastar 
            sozinho e sem armas do pátio da sede e durante a noite um peão 
            armado de papo-amarelo e revólver dormia na sala da frente, pronto 
            para o que desse e viesse. Mandou uma reconvença aos vizinhos mais 
            próximos, dizendo que requisitaria ajutório em caso de precisão, 
            mesmo sabendo que isso pouco resolvia. Com a imensidão e o 
            isolamento da “Primavera”, qualquer auxílio seria tardio. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Nas noites 
            seguintes nada aconteceu e a paz parecia ter voltado à Fazenda. Tudo 
            funcionava como sempre, embora pairasse no ar um temor antes 
            desconhecido. O tempo melhorou. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Numa noite 
            escura e quente o pessoal dormia na casa silenciosa. O vento suave 
            chacoalhava as galhadas altas do velho umbu do pátio, uma coruja 
            piava num jeito lúgubre. Na sala da frente, o peão de guarda acordou 
            inquieto, já de arma na mão, com a impressão de ouvir ruídos 
            estranhos debaixo do soalho de madeira. Afinou o ouvido e percebeu 
            movimentos cuidadosos de alguém mexendo no porão, local onde se 
            guardavam trastes variados. Levantou pé-por-pé, abriu num safanão a 
            porta e pulou para fora. Ligeiro que nem corisco, um bugrão correu 
            pelo lado da casa e desembestou pelas árvores do pomar rumo do mato. 
            Mesmo apanhado de surpresa, o peão disparou duas vezes contra o 
            vulto que fugia, gritando para que parasse, mas ele não atendeu e 
            continuou na corrida, quebrando no peito o mato ralo que encontrava. 
            Foi um reboliço. Surgiu gente de todos os lados e a cachorrada 
            estumada saiu acoando no garrão do bugre. Mas ele desapareceu no 
            mato e o fazendeiro proibiu a perseguição no escuro da noite. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ninguém mais 
            dormiu. Assustados com a ousadia do bugre, todos amanheceram 
            acordados em roda do fogo, sugando mates e bebendo café preto, 
            enquanto os homens se revezavam na guarda. Mal raiou o sol, 
            examinaram o pátio e descobriram muitos rastos, sinal de que vários 
            bugres lá estiveram. Na trajetória do bugre atirado encontraram 
            vestígios de sangue, indicando que fôra atingido. A situação se 
            agravava; agora os bugres buscariam a vingança: seria a lei do 
            talião – olho por olho, dente por dente. Alguma coisa precisava ser 
            feita, excogitava o fazendeiro, já pensando em levar a mulher para a 
            cidade, com o que ela não concordou. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A vigilância foi 
            reforçada e o próprio Nhô Pré foi à cidade para renovar o estoque de 
            munição. Na volta, aconselhando-se com o Aristides e o Arigó, 
            decidiu organizar um grupo de batedores de mato para espantar os 
            bugres da redondeza. Vários peões e agregados, escolhidos a dedo 
            entre os mais valentes, armados até os dentes, levando foguetes, 
            bombas e cachorros, constituíram a companhia sob o comando do 
            capataz.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Em dias 
            seguidos, sempre em horas e rumos incertos, enveredaram pelos matos, 
            gritando, atirando, soltando fogos, estumando a cachorrada, num 
            alarido que ecoava longe e punha em pânico os pacíficos viventes que 
            neles moravam. Às vezes saíam alta madrugada, outras ao entardecer e 
            até na calada da noite. Levavam fachos e lanternas de querosene. 
            Varejaram campos e matos aos quatro ventos, com sol e chuva, de dia 
            e de noite. Encontraram vestígios antigos, mas não avistaram um 
            único bugre. Respirando aliviados e acreditando que a limpeza fôra 
            completa, Nhô Pré e a mulher decidiram encerrar as batidas e 
            recomeçar as lidas da Fazenda, até então meio paradas. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Tranqüila, a 
            “Primavera” ganhou vida. Ensalou-se o gado no rodeio, foram marcadas 
            novas cabeças e domados alguns potros, reiniciando o serviço das 
            roças e reforçando o lenheiro do pátio. As crias da casa faziam 
            queijos, torravam café e lidavam na horta. Saudosa dos filhos, a 
            fazendeira pensava em mandar buscá-los para um fim de semana e até 
            achava tempo para tratar das primaveras do seu canteiro predileto. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Numa tarde 
            ensolarada, com o céu azul sem nuvem, Siá Barbina, a mais antiga das 
            empregadas, desceu para o rio das lavadeiras. Levava na cabeça a 
            imensa trouxa de roupas, presa com uma das mãos, e na outra a bacia 
            de alumínio para as peças torcidas. Cantarolando, ajoelhou-se à 
            beira do riacho e principiou a lavação, tal como fazia dês que o 
            mundo é mundo, esfregando no lajedo liso as roupas mais grosseiras. 
            Entretida no serviço, tardou a sentir que era bombeada de dentro do 
            mato, na outra margem do córrego. Foi então que deparou com o rosto 
            acobreado cujos olhos pretos a fitavam através das folhas, a poucos 
            passos. Procurou se conter e levantar, mas quando viu aquele índio 
            avantajado cruzando o arroio na sua direção, jogou contra ele a 
            bacia, provocando um barulho de lata, e correu gritando morro acima. 
            Seus gritos ecoaram pelo campo próximo, houve um momento de total 
            silêncio, e a reposta veio rápida. Gritos, latidos, tiros e logo a 
            bulha de passos que iam na carreira para socorrê-la. Num instante 
            vários homens armados estavam ao seu lado e invadiam o mato em busca 
            do bugre. Mas quem diz; ele desapareceu como se tivesse evaporado. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A prontidão 
            voltou à Fazenda e tudo parou outra vez. A sede e os arredores 
            lembravam um acampamento de guerra, com aquela homarada armada e 
            atenta, andando dia e noite para lá e para cá. O fazendeiro, 
            abalado, pela primeira vez na vida não sabia o que fazer. Coube ao 
            Arigó, naquela prosa lerda e mansa, sugerir a solução salvadora. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “O patrão carece 
            justar um bugreiro” – disse o negro velho na maior tranqüilidade. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Nhô Pré levou um 
            baque. Nunca pensara naquilo, sentia repugnância pelos bugreiros, 
            sojeitos que ganhavam o pão com a matança de bugres. Rejeitou a 
            idéia de pronto e não se falou mais no assunto. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Os dias passaram 
            e a cada entrada nos matos os peões encontravam novos vestígios 
            indicando que os bugres se movimentavam por perto e com toda a 
            liberdade. Os prejuízos cresceram, o gado abandonado, as roças 
            carecendo de cuidados e tudo o mais entregue ao deus-dará. A mulher 
            e as crias morriam de medo e nenhuma queria fazer os serviços de 
            fora, quanto mais aqueles distantes. Visitas não apareciam, 
            atemorizadas pelas notícias que deveriam correr mundo. Diante da 
            situação, Nhô Pré teve que considerar a proposta do Arigó, mesmo com 
            a discordância enérgica da mulher. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “Bugreiro não!” 
            – dizia ela, horrorizada. – “Temos que espantar os bugres, não matar 
            os próximos. . .” 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            O fazendeiro não 
            lhe deu ouvidos e conferenciou com o Arigó sobre quem contratar. 
            Cogitaram de um lageano e de um riograndense, mas acabaram se 
            definindo por Martinho Bugreiro, morador de Taquaras, na 
            Serra-Abaixo, no picadão entre Lages e Palhoça. Diziam ser o mais 
            competente conhecedor dos costumes da indiada, capaz de ler suas 
            marcas onde ninguém enxergava nada e de surpreendê-los nos toldos 
            sem que percebessem sua chegada. Além disso, mantinha um esquadrão 
            organizado e bem armado, no comando do qual fizera “limpezas” em 
            diversas regiões. Decidido pela sua contratação, Nhô Pré ordenou ao 
            Aristides e dois peões os preparativos para a longa viagem em busca 
            do famoso personagem. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Fazia gosto ver 
            o Aristides e os peões afilipados para viajar. Montavam cavalos da 
            escolha, apeirados nos trinques, e trajavam roupas da estica para 
            fazer figuração na terra estranha. Cabresteavam mulas do trote 
            largo, com bruacas estufadas de munição de boca e de tiro. Foram 
            escoltados até a estrada geral por outros homens bem armados; 
            afinal, nunca se sabe. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Desde que 
            partiram, a “Primavera” ficou em suspenso. Rolavam lerdos os dias e 
            as noites, com os moradores entregues ao trivial de comer, dormir, 
            vigiar, esperar. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Até que, numa 
            tarde, quando o sol descambava para trás das coxilhas, um piá gritou 
            na frente da casa: 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “Aiviéro! 
            Aiviéro eles!” 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Todos correram 
            para a área, de onde avistaram o trio de mensageiros saindo do capão 
            da restinga, num tranco firme de chegar. Houve um vazio que enervou 
            as pessoas até que surgiu o grupo de cavaleiros levantando a poeira 
            vermelha do carreiro. Em poucos minutos todos estavam diante da casa 
            e Nhô Pré desceu a escada rangente para recebê-los. Enfezada, a 
            mulher se enfurnou no quarto. Nem quis ver aqueles bandidos. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            O esquadrão se 
            compunha de vinte e cinco homens, todos ainda moços, chefiados por 
            Martinho Bugreiro em pessoa e tendo ao lado Belarmino Luciano, seu 
            inseparável lugar-tenente e cunhado, anos mais tarde morto com uma 
            flechada. Ali estavam os mais experientes homens de ataque de que se 
            tinha notícia e também os da retaguarda, aqueles que se ocupavam com 
            as bagagens, armas e comidas. Vestiam roupas de brim ordinário, de 
            cores neutras, que não dessem na vista. Portavam revólveres por 
            baixo dos casacos, mas não se viam armas pesadas, com certeza 
            acomodadas nos cargueiros. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Martinho era um 
            caboclo simples e comum. Alto, corpo equilibrado, nariz afilado num 
            rosto moreno e fino. Cabelo espesso, usava um bigode aparado. Falava 
            pouco, de um jeito nasalado e meio pernóstico, sem sotaque 
            barriga-verde. Calmo e tranqüilo, embora aparentasse um ar meio 
            tristonho, ninguém diria que carregava nas costas o peso da 
            tragédia. Tinha fama de homem sério nos negócios e merecia até a 
            confiança dos governos. Seu batalhão agia com discrição e disciplina 
            profissionais. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Acomodados no 
            galpão, já varrido e preparado, os homens trataram de se organizar e 
            dedicaram o dia seguinte ao descanso. Convinha deixar que a poeira 
            da chegada baixasse. Os índios poderiam ter bombeiros por perto e 
            isso prejudicaria a batida. Discretos e silenciosos, pouco se 
            mostravam, só saindo sozinhos ou em duplas, quando necessário. 
            Martinho passou um tempão consultando o mapa da Fazenda, tirado por 
            agrimensor, e se informando sobre rios, córregos, matos e campos.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Alta madrugada, 
            refeitos da viagem, levando suas armas e mochilas pequenas, os 
            homens desapareceram no mato para os lados do Taimbé, só retornando 
            no anoitecer seguinte. E assim fizeram várias vezes, quietos e 
            tranqüilos, como se voltassem do mais comum dos serviços. Nem 
            parecia que a Fazenda hospedava toda aquela gente. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Em grupos de 
            dois ou três, tomavam banho na sanga, lavavam as roupas e se 
            recolhiam ao galpão para comer e dormir. Nas poucas palavras 
            trocadas com o fazendeiro, o bugreiro afiançava que “o selviço ia 
            muito bem.”  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Numa dessas 
            saídas, permaneceram ausentes por quatro dias. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Todos se 
            inquietaram e Nhô Pré já pensava em providências quando eles 
            apontaram no tópe de um coxilhão, no lado oposto da partida. Desta 
            vez proseavam alto, rindo e fumando sem qualquer cautela. Traziam 
            grande quantidade de arcos, flechas, lanças, cocares, enfeites, 
            balaios, purungos e outros apetrechos tomados dos bugres, além de 
            algumas moças e meninotas índias que foram amarradas como bichos no 
            tronco da mangueira. Seriam vendidas na viagem de volta, nos 
            lugarejos do caminho, e quanto mais longe, melhor. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            No outro dia, 
            muito cedo, quando Nhô Pré mateava na área, Martinho pediu licença, 
            subiu e sentou ao seu lado. Trocaram algumas palavras, o bugreiro 
            sugou um mate e começou a falar do seu jeitão entojado, trocando o
            r pelo l. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “Seu selviço tá 
            feito” – disse ele. – “Andemo nos quatro lado da Fazenda e na úrtima 
            batida varêmo pro Rio Grande. Com o ajutório dum bugre manso, a 
            troco de uma garrafa de pinga, achêmo a paragem deles. Quando 
            cheguêmo tavam dormindo, demo uns tiro pra assustá e dispois passêmo 
            o resto no fio do facão, que a munição tá cara. Peguêmo o cacique, o 
            curandô, os conselheiro e os guerreiro. Não sobrou um pra contá o 
            causo. Dispois amontoemo os tarecos e toquemo fogo em tudo, até nos 
            ranchos. Arguma muié avalentoada também levou chumbo, o resto fugiu 
            pros mato co’as criança.” 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Repugnado, Nhô 
            Pré sentia um misto de remorso e vergonha pelo que tinha mandado 
            fazer. Mas o que estava feito, estava feito, não tinha remédio.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “A limpeza foi 
            geral e completa” – continuava o caboclo na prestação de contas. – 
            “Nenhum bugre vai le incomodá. Peguêmo pra mais de cento. Ai bugre 
            sem cabeça e sem orelha sameado por todo esse fundão” – e ele fez um 
            gesto abrangente. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Em seguida, 
            puxou um saco de estopa, salpicado de sangue seco, e fez menção de 
            exibir a prova da macabra missão. Ali se acomodava mais de uma 
            centena de pares de orelhas. Nhô Pré, nauseado, se recusou a olhar. 
            Fez as contas de cabeça, foi até a arca do canto do quarto e apanhou 
            um maço de dinheiro. Voltou à área e pagou ao homem com uma nota em 
            cima da outra.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            O esquadrão 
            permaneceu na “Primavera” por uns dias para o caso de aparecer algum 
            bugre de má tenção. Depois, com muita calma, arrumou os trens e 
            pegou o estradão de volta. Só então, pelas costas e de longe, a 
            fazendeira anuiu em olhar para Martinho, admirada de que pudesse ser 
            um homem normal, que comia, dormia e tratava com outras pessoas como 
            qualquer vivente. Ficou a observá-lo em silêncio até que desapareceu 
            na curva. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Naquela semana, 
            causou geral espanto a quantidade de corvos no céu da Fazenda, 
            voando baixo, mais ainda para os lados do Taimbé e do Canoas. E até 
            para além do Pelotas. 
  
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