Enéas Athanázio
Algemas
Eu terminara de
almoçar e lia na sala os jornais que haviam chegado. Eles me ligavam
ao mundo e informavam sobre os acontecimentos tormentosos daqueles
dias de repressão. Minha mulher também corria os olhos pelas
notícias e nossos filhos, ainda pequenos, pulavam por ali.
O telefone
tocou. Era um colega de cidade vizinha que pedia minha presença na
telefônica, no centro da cidade, com a maior rapidez porque seu
tempo era curto. Tinha sido preso e estava sendo conduzido não sabia
para onde, queria falar-me, precisava de apoio, estava desesperado.
Chamara também os demais colegas e contava que todos fossem até lá
para darem, pelo menos, apoio moral. Sentia-se na sua voz uma grande
angústia.
Não hesitei um
momento. Expliquei tudo em duas palavras à minha mulher, peguei um
agasalho e rumei para o lugar indicado. Nenhuma outra consideração
entrou no meu espírito – nem medo, nem cálculo, nem conveniência de
qualquer espécie. Tratava-se de um advogado como eu, colega e amigo,
ainda que não fosse dos mais chegados, e meu dever era socorrê-lo no
momento amargo, quaisquer que fossem as conseqüências.
Na minha
juventude de então eu não sabia que estava vivendo um instante
fugidio mas glorioso da existência. Enquanto dirigia pela colina
abaixo quase explodia de indignação diante da arbitrariedade que me
parecia monstruosa e ia pronto para tudo, inclusive para ser preso e
seguir com o colega, se isso fosse necessário. Hoje, na maturidade,
fico encabulado à lembrança de alguns arroubos daquela época, mas
esse episódio me envaidece e meu coração afirma que sairia
novamente, agora, em socorro do colega se ele estivesse me chamando.
Minha surpresa
foi grande ao notar a ausência dos demais. Nenhum compareceu, nenhum
se dispôs a amparar o seu igual, nem mesmo os que se diziam
“correligionários” do preso, de quem eu era, por coincidência,
adversário em política. Olhei incrédulo para a casa de um deles,
distante pouco mais de cem passos, e tive ganas de gritar com a
força máxima dos pulmões:
– Covardes!
Covardes!
Creio,
sinceramente, que hoje eu gritaria.
Mas o choque
maior foi quando percebi as algemas, aquelas peças niqueladas nos
punhos do bacharel, como se fosse um marginal perigoso e prestes a
intentar a fuga. Moço culto e educado, incapaz de uma grosseria,
quanto mais da menor violência, ele mal podia falar em meio aos
oficiais condutores. E tudo aquilo por ter sido contrário aos
mandões do momento!
Fiquei arrasado.
Ele, num esforço
imenso, resumiu tudo numa pergunta:
– E os outros?
Não tive o que
dizer e me limitei a encolher os ombros. Depois, meio sem jeito,
tratei de abraçá-lo e confortá-lo. Prometi telefonar à família (ele
fora preso no escritório e nem pudera se despedir), atendê-la no que
pudesse e acompanhar o destino dele próprio, até então obscuro. Seus
olhos marejavam e eu senti com intensidade a gratidão que se
instalava na alma do colega mais velho pela atitude do mais jovem.
O carcereiro,
impaciente, queria partir. Tinha ordens e horários a serem
cumpridos. Relutante, atrapalhado com as algemas niqueladas, o
advogado embarcou. Em instantes a viatura policial dobrava a esquina
em direção à estrada poeirenta.
Fiquei ali um
tempão, parado na frente da telefônica, com o olhar fixo na
estradinha campeira. Todo o edifício jurídico construído dentro de
mim, em anos de estudo e trabalho, estava abalado.
Mas a vida
continuava e era preciso lutar. Voltei devagar para casa, a esposa,
os filhos, a profissão. Naquele trajeto, sozinho e amargurado,
assumi comigo mesmo o compromisso formal — até hoje cumprido a duras
penas — de jamais transigir com os inimigos da democracia,
mascarados ou não, e defendê-la pelos modos ao meu alcance. Acima de
tudo, incutir nos filhos a consciência democrática como forma de
ensinar que só a democracia protege a dignidade do homem e que ela
poda ter mil defeitos mas ainda não se inventou nada melhor.
|