Há cem anos morria o criador de "O Primo Basílio",
autor que foi mania no Brasil nas primeiras décadas deste século
Febre de Eça
Paulo Franchetti
email: franchet@obelix.unicamp.br
especial para a Folha de São Paulo
Caderno Mais!
13.8.2000
Há um século,
no dia 16 de agosto de 1900, Eça de Queirós morria em Paris,
com 55 anos. A notícia repercutiu fortemente no Brasil. É
que Eça não era aqui apenas um romancista de sucesso. Era
já havia tempos a figura idealizada que o jovem Alberto de Oliveira,
quando o viu certa vez no Porto, ficou contemplando como se fosse "um pequeno
deus". De fato, desde pelo menos a publicação de "Os Maias",
em 1888, a intelectualidade brasileira parece ter sido acometida, para
usar o termo criado por Monteiro Lobato, por uma "ecite": uma febre ou
paixão intensa por Eça de Queirós, que vai atravessar,
sem perder a força, pelo menos as duas primeiras décadas
deste século.
A especial afeição
brasileira por Eça de Queirós, porém, parece ser ainda
anterior aos anos 80 e deve-se a um conjunto amplo de motivos. Por um lado,
o romancista não aparecia ao público apenas como o autor
de umas tantas obras-primas. Era uma presença muito mais próxima:
um jornalista que escrevia regularmente nos periódicos brasileiros,
opinando sobre os mais diversos assuntos.
De fato, só na "Gazeta
de Notícias", Eça escreveu durante 16 anos seguidos, a partir
de 1880. Além disso, tinha sido um dos jovens rebeldes que, ao lado
de Antero de Quental e Teófilo Braga, se empenharam na denúncia
do atraso político, moral e científico das nações
ibéricas: era um dos representantes da já mítica Geração
de 70, iconoclasta e modernizadora. Era também o autor das "Farpas"
(1871-72), em que não só satirizara a sociedade portuguesa
do seu tempo, mas também ironizara cruelmente o imperador do Brasil,
d. Pedro 2º, no momento mesmo em que começava a fortalecer-se
o republicanismo no país.
Por tudo isso, no ambiente
encharcado de propaganda republicana dos últimos anos do Império
e de propaganda antilusitana nos primeiros anos da República, Eça
podia ser visto como um aliado progressista: um equivalente, para a vida
portuguesa sua contemporânea, do que era o seu amigo Oliveira Martins
para o passado dessa mesma sociedade. Quanto a esse ponto, vale ainda observar
não apenas que o naturalismo foi geralmente assimilado ao positivismo
e à ideologia republicana, mas também que o pensamento de
Oliveira Martins ainda em 1902 forneceria a base de um livro tão
importante quanto o "América Latina -Males de Origem", de Manuel
Bonfim. Por outro lado, é certo que Eça de Queirós
era, sob muitos aspectos, o oposto do outro grande romancista português
havia pouco desaparecido, Camilo Castelo Branco. Camilo representava, para
a maioria dos escritores brasileiros do tempo, o censor caturra, o ciumento
corretor da linguagem utilizada deste lado do Atlântico. Era, além
disso, o romancista da predileção da grande colônia
portuguesa, que nele via o seu escritor por excelência: o que dispunha
suas histórias em linguagem e paisagens legitimamente lusitanas.
Eça, por sua vez, exibia uma linguagem muito diferente, de sintaxe
mais direta e de vocabulário menos exuberante, cheia de neologismos
e estrangeirismos, principalmente galicismos. Tão incorreta talvez,
pelos parâmetros de Camilo ou de Castilho, quanto a de Alencar ou
de Varela, essa linguagem simples e ágil não recuava tampouco
ante o bom-senso ou as conveniências e descrevia de modo muito "realista"
os vícios que os primeiros romances do autor visavam a denunciar.
"Sórdido como uma página de Eça de Queirós!"
-era assim que um moralista do tempo insultava um poema que julgava pernicioso.
E foi graças a "O Primo Basílio" que "realista" e "naturalista"
durante um bom tempo foram sinônimos, para o leitor comum, de repulsivo,
indecente ou obsceno. Por tudo isso, Eça de Queirós era,
de modo convincente, muito moderno e muito cosmopolita. Mas a substância
mais ativa na promoção da "ecite" não foi nenhuma
dessas, e sim a célebre ironia queirosiana, que, depois de "O Primo
Basílio", vai marcar cada vez mais inconfundivelmente os seus romances,
tanto na construção da frase, quanto na composição
das personagens. Diferente da ironia romântica que, tal como aparece
em Camilo e mesmo em Garrett, tem sempre um travo de amargura, a de Eça
supõe uma atitude de espírito de luminosidade constante,
um jeito de olhar que ao mesmo tempo promove a crítica dos costumes
e reafirma o afastamento do analista em relação ao objeto
da sua análise. Reconhecemos logo o estilo de Eça em frases
simples como, por exemplo, "encalhado contra o piano, esfregava lentamente
as mãos, esmagando o meu embaraço" ou "a figura de Napoleão
sobre rochedos enfáticos". É a essa ironia, a esse sistemático
olhar analítico, tingido de humor e de ceticismo, que se deve o
fato de não haver heróis positivos no elenco dos protagonistas
queirosianos. São sempre ou francamente negativos, como a Luísa,
de "O Primo Basílio", ou o Raposão, de "A Relíquia",
ou ambíguos e esbatidos, como o Gonçalo, de "A Ilustre Casa
de Ramires", ou o Carlos, de "Os Maias". As personagens secundárias,
por sua vez, são usualmente desenhadas com traço mais forte,
ou para rebaixar, por contraste, as principais, ou para proporcionar uma
síntese caricatural, reveladora do ambiente da época retratada
no romance.
Figura pomposa
Esse procedimento produziu
tipos inesquecíveis: o Conselheiro Acácio, o poeta romântico
Alencar, a empregada Juliana, o revolucionário e inconsequente João
da Ega, entre outros. Desses, a criação mais popular é,
sem dúvida, o Conselheiro de "O Primo Basílio", que passou
a integrar o patrimônio da mitologia e do vocabulário comum,
pois desde os anos 80 do século passado pode-se dizer de qualquer
figura pomposa e vazia que é um "acácio" ou que é
uma figura "acaciana".
Estruturada a partir desse
olhar distanciado e descrente, a narrativa queirosiana não vai firmar
o desenvolvimento do enredo romanesco nas paixões, nem na coerência
psicológica das personagens ou nas determinações fatais
à sua liberdade. Pelo contrário, uma tendência forte
do romance de Eça é a de se estruturar em painel mais ou
menos alegórico, composto a partir da construção muito
realista de situações particulares. Disso resulta uma narrativa
cuja unidade não provém da verossimilhança realista
do conjunto, mas é construída pelo recurso sistemático
à intertextualidade e às simetrias e espelhamentos na construção
dos episódios, das cenas e das personagens. Resulta também
uma voz narrativa que nunca deixa de enfatizar os aspectos sensórios
de cada um deles, destacando o que é mais ridículo, mais
sedutor ou apenas mais plástico em cada momento da romance.
Esse conjunto de características
da ficção queirosiana faz com que sua obra descreva uma curva
que, se tem a sua origem num livro naturalista como "O Crime do Padre Amaro",
rapidamente se afasta desse tipo de discurso e método compositivo,
em direção ao que A.J. Saraiva denominou "impressionismo".
Esse afastamento já
é bastante notável no segundo romance de Eça, "O Primo
Basílio". O primeiro a dar conta da novidade desse texto foi o próprio
escritor, que, assim que o livro saiu, escreveu a Teófilo Braga
e fez um longo ato de contrição por não ter feito
um romance ortodoxamente naturalista. Por outro lado, quando o livro foi
publicado no Brasil, Machado de Assis logo notou que as suas personagens
careciam de determinações fortes de qualquer tipo, fossem
internas ou externas, e que o próprio enredo se montava a partir
de uma série de acidentes, de casualidades. A autocrítica
de Eça era claramente defensiva e por isso apresentava como defeito
tudo o que fosse fuga ao receituário naturalista. Já a avaliação
de Machado era moralista e se fazia de uma perspectiva marcadamente romântica.
Mas ambas acusavam a existência nesse livro de uma nova forma de
composição, que só ganhará força desse
momento em diante na obra do autor.
Dois anos depois, em 1880,
vem a público "O Mandarim", em que se completa o abandono da maneira
naturalista. E após mais oito anos, em 1888, Eça publica
"Os Maias". É o ponto alto da maturidade do romancista, no pleno
domínio de uma maneira própria, e é, também,
o ápice da "ecite" no Brasil.
Os dois grandes livros seguintes
já serão póstumos: "A Ilustre Casa de Ramires" e "A
Cidade e as Serras". Em ambos, acentua-se o traço alegórico
e o distanciamento irônico da voz narrativa. Por isso, o primeiro
vai ser objeto de graves reparos por parte dos críticos mais fiéis
ao paradigma romântico/realista, calcado na verossimilhança
psicológica e na construção orgânica da narrativa.
A.J. Saraiva, por exemplo, vai escrever que dois defeitos principais de
"A Ilustre Casa" são que a personagem central é um títere
(é a mesma acusação de Machado a Luísa) e que
o livro todo "é pensado, sobreposto e encaixado como as pedras de
um edifício".
De fato, desde "O Primo
Basílio", que José Régio considerava o mais bem construído
romance de Eça, o escritor já pratica um tipo de literatura
que, sem ser naturalista, continua a ser anti-romântica e se apresenta
afinada com a evolução do romance europeu, principalmente
com o esteticismo de um Huysmans, para não mencionar ainda outros
escritores de grande voga na virada do século e pouco depois, como
Oscar Wilde e Anatole France.
Assim, não é
de estranhar que, para os brasileiros do final do século 19 e começo
do 20, Eça tivesse encarnado adequadamente o ideal de modernidade;
que tivesse representado para os leitores e escritores brasileiros um modelo,
em língua portuguesa, do esforço para superar o velho mundo
romântico (que no Brasil se confundia com o país monárquico,
rural e escravocrata) e construir uma nova cultura: citadina, burguesa
e republicana, fundada na instrução e no discernimento do
cidadão médio. Um modelo, enfim, daquilo que era o título
de um conto belíssimo, temperado de ironia e autocrítica,
que Eça publicou originalmente em 1892 na "Gazeta de Notícias"
do Rio de Janeiro: "Civilização".
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