Estatutos da Padaria
Espiritual
Eis os Estatutos da Padaria Espiritual, movimento pioneiro no Ceará
— terra de José de Alencar — e precursor das academias de letras
em terras brasileiras. Movimento modernista, ainda hoje atual, com 40 anos
de antecedência à Semana de Arte de 1922.
1) Fica organizada, nesta
cidade de Fortaleza, capital da "Terra da Luz", antigo Siará Grande,
uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, denominada Padaria Espiritual,
cujo fim é fornecer pão de espírito aos sócios
em particular, e aos povos, em geral.
2) A Padaria Espiritual se
comporá de um Padeiro-Mór (presidente), de dois Forneiros
(secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na
acepção intrínseca da palavra (bibliotecário),
de um Investigador das Coisas e das Gentes, que se chamará Olho
da Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios
terão a denominação geral de Padeiros.
3) Fica limitado em vinte
o número de sócios, inclusive a Diretoria, podendo-se, porém,
admitir sócios honorários que se denominarão Padeiros-livres.
4) Depois da instalação
da Padaria, só será admitido quem exibir uma peça
literária ou qualquer outro trabalho artístico que for julgado
decente pela maioria.
5) Haverá um livro
especial para registrar-se o nome comum e o nome de guerra da cada Padeiro,
sua naturalidade, estado, filiação e profissão a fim
de poupar-se à Posteridade o trabalho dessas indagações.
6) Todos os Padeiros terão
um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual
poderão usar no exercício de suas árduas e humanitárias
funções.
7) O distintivo da Padaria
Espiritual será uma haste de trigo cruzada de uma pena, distintivo
que será gravado na respectiva bandeira, que terá as cores
nacionais.
8) As fornadas (sessões)
se realizarão diariamente, à noite, à excepção
das quintas-feiras, e aos domingos, ao meio-dia.
9) Durante as fornadas, os
Padeiros farão a leitura de produções originais e
inéditas, de quaisquer peças literárias que encontrarem
na imprensa nacional ou estrangeira e falarão sobre as obras que
lerem.
10) Far-se-ão dissertações
biográficas acerca de sábios, poetas, artistas e literatos,
a começar pelos nacionais, para o que se organizará uma lista,
na qual serão designados, com a precisa antecedência, o dissertador
e a vítima. Também se farão dissertações
sobre datas nacionais ou estrangeiras.
11) Essas dissertações
serão feitas em palestras, sendo proibido o tom oratório,
sob pena de vaia.
12) Haverá um livro
em que se registrará o resultado das fornadas com o maior laconismo
possível, assinando todos os Padeiros presentes.
13) As despesas necessárias
serão feitas mediante finta passada pelo Gaveta, que apresentará
conta do dinheiro recebido e despendido.
14) E proibido o uso de palavras
estranhas à língua vernácula, sendo, porém,
permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes.
15) Os Padeiros serão
obrigados a comparecer à fornada, de flor à lapela, qualquer
que seja a flor, com excepção da de chichá.
16) Aquele que durante uma
sessão não disser uma pilhéria de espírito,
pelo menos, fica obrigado a pagar no sábado café para todos
os colegas. Quem disser uma pilhéria superiormente fina, pode ser
dispensado da multa da semana seguinte.
17) O Padeiro que for pegado
em flagrante delito de plagio, falado ou escrito, pagará café
e charutos para todos os colegas.
18) Todos os Padeiros serão
obrigados a defender seus colegas da agressão de qualquer cidadão
ignáro e a trabalhar, com todas as forças, pelo bem estar
mútuo.19) É proibido fazer qualquer referência
à rosa de Maiherbe e escrever nas folhas mais ou menos perfumadas
dos álbuns.
20) Durante as fornadas,
é permitido ter o chapéu na cabeça, exceto quando
se falar em Homero, Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José
de Alencar porque, então, todos se descobrirão.
21) Será julgada indigna
de publicidade qualquer peça literária em que se falar de
animais ou plantas estranhos à Fauna e à Flora brasileiras,
como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc.
22) Será dada a alcunha
de "medonho" a todo sujeito que atentar publicamente contra o bom senso
e o bom gosto artísticos.
23) Será preferível
que os poetas da "Padaria" externem suas idéias em versos.
24) Trabalhar-se-á
por organizar uma biblioteca, empregando-se para isso todos os meios lícitos
e ilícitos.
25) Dirigir-se-á um
apelo a todos os jornais do mundo, solicitando a remessa dos mesmos à
biblioteca da "Padaria".
26) São considerados,
desde já, inimigos naturais dos Padeiros - o Clero, os alfaiates
e a polícia. Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear
seu desagrado a essa gente.
27) Será registrado
o fato de aparecer algum Padeiro com colarinho de nitidez e alvura contestáveis.
28) Será punido com
expulsão imediata e sem apelo o Padeiro que recitar ao piano.
29) Organizar-se-á
um calendário com os nomes de todos os grandes homens mortos, Haverá
uma pedra para se escrever o nome do Santo do dia, nome que também
será escrito na Ata, em seguida à data respectiva. 30) A
"Avenida Caio Prado" é considerada a mais útil e a mais civilizada
das instituições que felizmente nos regem, e, por isso, ficará
sob o patrocínio da Padaria,
31) Encarregar-se-á
um dos Padeiros de escrever uma monografia a respeito do incansável
educador Professor Sobreira e suas obras.
32) A "Padaria" representará
ao Governo do Estado contra o atual horário da Biblioteca Pública
e indicará um outro mais consoante às necessidades dos famintos
de idéias.
33) Nomear-se-ão comissões
para apresentarem relatórios sobre os estabelecimentos de instrução
pública e particular da Capital relatórios que serão
publicados,
34) A Padaria Espiritual
obriga-se a organizar, dentro do mais breve prazo possível, um Cancioneiro
Popular, genuinamente cearense.
35) Logo que estejam montados
todos os maquinismos, a Padaria publicará um jornal que, naturalmente,
se chamará O Pão.
36) A Padaria tratará
de angariar documentos para um livro contendo as aventuras do célebre
e extraordinário Padre Verdeixa.
37) Publicar-se-á
, no começo de cada ano, um almanaque ilustrado do Ceará
contendo indicações uteis e inúteis, primores literários
e anúncios de bacalhau.
38) A Padaria terá
correspondentes em todas as capitais dos países civilizados, escolhendo-se
para isso literatos de primeira água.
39) As mulheres, como entes
frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio excetuadas:
as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes.
40) A Padaria desejaria muito
criar aulas noturnas para a infância desvalida; mas, como não
tem tempo para isso, trabalhará por tornar obrigatório a
instrução pública primada.
41) A Padaria declara desde
já guerra de morte ao bendegó do "Cassino".
42) É expressamente
proibido aos Padeiros receberem cartões de troco dos que atualmente
se emitem nesta Capital.
43) No aniversário
natalício dos Padeiros, ser-lhes-á oferecida uma refeição
pelos colegas.
44) A Padaria declara embirrar
solenemente com a secção "Para matar o tempo" do jornal "A
Republica", e, assim, se dirigirá à redação
desse jornal, pedindo para acabar com a mesma secção.
45) Empregar-se-ão
todos os meios de compelir Mané Coco a terminar o serviço
da "Avenida Ferreira".
46) O Padeiro que, por infelicidade,
tiver um vizinho que aprenda clarineta, pistom ou qualquer outro instrumento
irritante, dará parte à Padaria que trabalhará para
pôr termo a semelhante suplício.
47) Pugnar-se-á pelo
aformoseamento do Parque da Liberdade, e pela boa conservação
da cidade, em geral.
48) Independente das disposições
contidas nos artigos precedentes, a Padaria tomará a iniciativa
de qualquer questão emergente que entenda com a Arte, com o bom
Gosto, com o Progresso e com a Dignidade Humana.
Amassado e assado na "Padaria
Espiritual", aos 30 de Maio de 1892.
Seguem-se as assinaturas
dos padeiros presentes, em número de dezoito, faltando, portanto,
duas assinaturas.
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