A nova edição das Poesias Completas de Da Costa e Silva
(Nova Fronteira, 1985), comemorativa do centenário de nascimento
do poeta, nos põe mais uma vez em contato com uma das expressões
mais altas da poesia brasileira deste século. Organizado com o maior
carinho por seu filho, e também poeta, Alberto da Costa e Silva,
esse belo volume sai num momento em que a poesia parece estar recuperando
um pouco de seu antigo prestígio entre nós. Há uma
sede de boa poesia entre os leitores mais jovens — e os concursos mostram
que nunca se escreveu tanta poesia como agora. À parte
alguns equívocos inevitáveis, os que têm alguma coisa
a dizer já descobriram que sem os instrumentos de uma arte poética
o melhor da inspiração, e mesmo do talento, se perderá.
Só os ingênuos se permitem acreditar que nada existiu antes
deles, e que podem prescindir dos liames imemoriais que fazem de cada poeta
o continuador do mesmo e infinito poema. Em poucos poetas brasileiros essa
lição é tão nítida e profunda quanto
em Da Costa e Silva.
Foi ele um dos poucos poetas realmente populares ao longo de várias
décadas, presença em toda sorte de publicações
e antologias, recitado e imitado. Essa popularidade não pode ser
subestimada, porque ele a repartiu com dois outros grandes poetas do mesmo
período, Raul de Leoni e Augusto dos Anjos. O que chama a
atenção é que nenhum dos três escrevia na clave
do popularesco e do fácil: um deles cultivava uma linguagem difícil,
os dois outros primavam pelo requinte formal. E são exatamente esses
três que mantêm nosso interesse crítico por todo
um grupo de poetas de transição, situados entre as últimas
manifestações do parnasianismo e do simbolismo e os primeiros
vagidos do modernismo.
Recapitulando alguns poemas de Da Costa e Silva que se tornaram mais conhecidos
— e que eram literalmente antológicos — , vemos que nenhum deles
envelheceu. Pelo contrário. Depois do modernismo, temos o distanciamento
e a visão armada para avaliá-los melhor, e penetrar, sem
emoções de fundo temático, no que trazem de essencial
como poesia pura. Páginas como "Saudade", "A moenda", "Minha terra",
"Vale de lágrimas", "Visões da morte", "Rosa Mística",
"Rio das Garças", "A balsa", "Natureza sofredora" — e, mais tarde,
esse "Adeus à vida", digno de um Antero de Quental — revelam o delicado
trabalho de elaboração da obra-prima, a que não faltam
lampejos de genialidade. As pequenas alterações que ele introduziu
nos versos — e das quais Alberto da Costa e Silva nos dá expressiva
relação no final do volume — mostram sua ânsia de perfeição
e uma aguçada sensibilidade para com os detalhes mínimos,
a exemplo de Alberto de Oliveira, que o antecipa, mas não o supera,
no extraordinário domínio técnico do verso. Basta
mencionar as sutis modificações em três versos
do soneto "Saudade", que o tornaram perfeito: "E, ao vento, as folhas lívidas
cantando/ A saudade imortal de um sol de estio", em vez de : E à
noite as folhas lívidas cantando/ A saudade infeliz de um sol de
estio", e sobretudo "As mortalhas de névoa sobre a serra" em vez
de "Ai ! mortalhas de névoa sobre a serra", onde a substituição
do lamento interjetivo não só eliminou um ruído anômalo
na cadência dos versos como propiciou uma imagem de forte sugestividade.
Pode-se observar que muitos dos poemas antologizados de Da Costa e Silva
pertencem ao seu primeiro livro, Sangue, de 1908, publicado no Recife;
não é, pois, de surpreender que com ele se tenha consagrado
nacionalmente. Essa consagração teria bastado. Mas em 1917
o poeta desponta com outro grande livro, Zodíaco. Dois anos depois
sai Pandora. Houve outra longa pausa, até Verônica , de 1927.
Ainda jovem, Da Costa e Silva está no auge de sua forma. A recepção
crítica foi boa, um dos sonetos do livro, "Adeus à vida",
incorporou-se àquele grupo de eleição que se aloja,
misteriosamente, na memória do público. Penso, no entanto,
que somente agora podemos vislumbrar alguns dos aspectos mais significativos
de Verônica, e que apontam para a sua excepcionalidade.
Em Pandora, a epígrafe de Rubén Darío — um poeta de
larga ressonância no Brasil — já fazia supor que se estabelecera
o contato entre Da Costa e Silva e o modernismo espanhol (o qual, não
custa advertir, nada tem a ver com o nosso, bastante posterior). Em Verônica
se revela a síntese formal, o pensamento criador adquire a sua plena
maturidade. O poeta desde muito que havia aprendido o verso livre de Verhaeren
e Maeterlinck. Darío foi a chama que incendiou e renovou a poesia
espanhola. O que em Verônica nos chama hoje particularmente a atenção,
além do impressionante domínio formal, e talvez mais do que
este, são alguns pequenos poemas que nos lembram de imediato (e
daí a referência a Darío) a maneira de Juan Ramón
Jiménez. "Subia a lua, leve", "Vivo como um sonâmbulo", "Na
tarde azul e triste", "Sou como um rio misterioso", "A última ilusão",
"A escada de sonho", são pequeninas obras-primas, como aquelas distribuídas
com aparente negligência (mas obtidas à custa de angustiada
procura) pelo poeta de Eternidades. Exemplar dessa rara maestria é
"A escada de sonho", com seu jogo de assonâncias que parecem fluir
com naturalidade.
As peças recolhidas em Alhambra comprovam que Da Costa e Silva estava
pronto para o "salto modernista", numa linha semelhante à de Felipe
d'Oliveira, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, algo até de Mário
de Andrade. Numa antologia do nosso modernismo, ele já tem o seu
lugar com "O Refrão do trem noturno" e o "Carrossel fantasma". A
página sonora e luminosa que é "O despertar no Amazonas",
de 1928, espelha mais uma vez a paixão telúrica que está
no sangue de toda a poesia de Da Costa e Silva. Importa notar aqui, mais
que a facilidade com que o poeta transitava entre uma e outra estética,
sua admirável sensibilidade à forma como o poema devia revestir-se.
Sua inexaurível riqueza formal pode ofuscar-nos, mas não
impedir-nos de descer mais fundo. Eis que o grande poeta é o nosso
guia, ou captando e transfigurando a paisagem, ou pulsando a angústia
secreta e o frêmito lírico da sofredora alma humana. Se é,
e por que é um poeta perene, a razão está aí. |