Álvaro de Campos
 
Começa a Haver
 
    Começa a haver meia-noite, e a haver sossego, 
    Por toda a parte das coisas sobrepostas, 
    Os andares vários da acumulação da vida... 
    Calaram o piano no terceiro andar... 
    Não oiço já passos no segundo andar... 
    No rés-do-chão o rádio está em silêncio... 

    Vai tudo dormir... 

    Fico sozinho com o universo inteiro. 
    Não quero ir à janela: 
    Se eu olhar, que de estrelas! 
    Que grandes silêncios maiores há no alto! 
    Que céu anticitadino! — 
    Antes, recluso, 
    Num desejo de não ser recluso, 
    Escuto ansiosamente os ruídos da rua... 
    Um automóvel — demasiado rápido! — 
    Os duplos passos em conversa falam-me... 
    O som de um portão que se fecha brusco dóí-me... 

    Vai tudo dormir... 

    Só eu velo, sonolentamente escutando, 
    Esperando 
    Qualquer coisa antes que durma... 
    Qualquer coisa.

 
 
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