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Flávio Carneiro

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Luciano Trigo

Publicado em Prosa e Verso

09.06.2001


 
A escrita como busca na fronteira entre ensaio e ficção
Entre o cristal e a chama, de Flávio Carneiro. Editora Uerj, 184 páginas. R$ 18,75  

             Em “Entre o cristal e a chama”, Flávio Carneiro mapeia e analisa uma seleção de “personagens-leitores”, criados por um heterogêneo leque de ficcionistas, que vai de Machado de Assis a Clarice Lispector e Rubem Fonseca, de Edgar Allan Poe e Italo Calvino e Paul Auster. Ele próprio um ficcionista — é autor de “Da matriz ao beco e depois” — Flávio alia ao rigor acadêmico (trata-se, originalmente, de uma tese de doutorado) a inventividade e a inspiração poética em suas interpretações. O resultado é um ensaio que vale tanto pelo valor teórico de suas teses sobre a leitura quanto pelo puro prazer do texto.

             — Escolhi textos de que eu tinha gostado de ler e que me davam margem para uma reescritura, textos “escrevíveis”, como diria Barthes. Não me guiei por nacionalidades, nem por períodos históricos, mas por um princípio fugidio: o prazer. É um critério pouco acadêmico, de fato, mas isso também fazia parte do jogo — diz ele.

             A leitura é entendida aqui em seu sentido mais abrangente: “Não se lêem apenas palavras”, escreve Flávio. “Pode-se ler um romance ou um poema tanto quanto se pode ler no rosto de alguém um traço de dor, um sorriso, ou uma roupa, o céu, um jardim”. Cita em seguida um personagem de Italo Calvino que se divide entre a leitura de um romance e a leitura do corpo de uma banhista, para concluir com Guimarães Rosa: “A vida também é para ser lida”.
O livro é dividido em duas partes. Na primeira, “Breve passeio pelos bosques da leitura” (título que remete a Umberto Eco, que por sua vez remete a Calvino), o autor traça seus propósitos e estratégia: analisar o diálogo entre leitura e escrita, levando em conta os diferentes métodos de abordagem do tema, que se dividem em duas grandes correntes. Uma formalista, concentrada na letra do texto, e outra marxista, que enfatiza o papel das circunstâncias histórico-sociais. Na segunda parte, o “Caderno de leituras”, Flávio analisa em 30 mini-ensaios diferentes personagens-leitores.
Uma leitura silenciosa, sem estardalhaço 

             — Na verdade, o prefácio entrou como uma espécie de concessão à Academia, já que os ensaios são bastante livres. O plano do livro é fazer um diálogo com “As cidades invisíveis”, do Calvino, já que eu também tentei desenhar os leitores invisíveis, aqueles que salvariam meu império, como as cidades invisíveis salvaram o de Kublai Khan. Quis inventar este ambicioso e ao mesmo tempo mínimo império: o das leituras construídas à sombra, em silêncio. Tentei uma escrita silenciosa, resultado de uma leitura silenciosa, sem estardalhaço. A ordem de aparição dos ensaios, embora pareça aleatória, segue um jogo de exatidão, espelhando o livro de Calvino, num jogo de análise combinatória.

             Seja apontando o ingrediente erótico oculto no conto “Felicidade clandestina”, de Clarice, seja decifrando o enigma cortazariano de “Continuidade dos parques”, Flávio aposta num papel ativo do leitor. Mas não existiriam limites para a autonomia do leitor? Um mínimo denominador comum que daria limites à sua liberdade na interpretação dos textos e ao seu papel de co-criador? Flávio admite que sim:

             — Toda leitura é limitada pelo outro, pelo texto. O mais importante não é o leitor ter toda a liberdade do mundo, mas dar-se conta de que as possibilidades de leitura beiram o infinito. Só assim é possível ler, e escrever.

             Ao escrever “Entre o cristal e a chama”, ele tinha em mente um leitor que tivesse alguma bagagem de leitura:

             — Não gosto de escrever ensaios com sotaque acadêmico. Optei por uma escrita ensaística que tivesse algo de ficcional, algo do imponderável que ronda o texto de ficção.

             Flávio promete que esta interferência entre gêneros voltará em seu próximo livro, mas em sentido inverso. Em “O campeonato”, que será lançado no ano que vem pela Objetiva, será a vez de o ensaio se intrometer no ficcional.

             Um tema recorrente no “Caderno de leituras” é o da ilegibilidade da cidade. A tentativa de leitura da trama urbana como uma narrativa não é nova, mas Flávio sabe explorar novas facetas da idéia de que a realidade é um texto a ser permanentemente relido e reescrito — também presente no último romance de Rubens Figueiredo, “Barco a seco”.

             — Há uma tendência da narrativa contemporânea nesse sentido. Tem a ver com o que Haroldo de Campos chama de tempos pós-utópicos, referindo-se a uma época em que não há mais projetos. Nicolau Sevcenko fala de uma arte que convive amigavelmente com o enigma, sem a pretensão de decifrá-lo. Vejo isso com muitos bons olhos, não sou nada apocalíptico. Vivemos um momento especial, fértil, em que a prepotência de lidar com certezas, a realidade como texto pronto e acabado cede lugar ao jogo das aparências, das verdades possíveis. É a realidade borgeana, texto a ser lido e escrito pelo leitor.

             À consideração de que no fundo toda leitura é imperfeita e parcial, ou seja, uma experiência pessoal e intransferível — e de que toda teoria da leitura é um exercício de especular sobre esta imperfeição — Flávio retruca:

             — Teorizar, escrever ensaios, passa pelo reconhecimento do imperfeito. É o que chamo de encenar o “inacabado” no espaço reservado para o “acabado”, trazer para o palco da teoria o que há de imperfeito na ficção, sabendo que o imperfeito, no caso, é um sinal de mais, não de menos.

             É possível argumentar que, como o conceito de leitura usado no livro é muito amplo, ele é aplicável a praticamente qualquer personagem da literatura. Já que tudo se lê, todo e qualquer personagem é um personagem-leitor. Pergunto se Flávio não teria usado uma ferramenta abrangente demais, como uma peneira com buracos muito grandes.

             — Esse fantasma me acompanhou por todo o processo de pesquisa e de escrita do livro. Afinal, o que é ler? Quis estender o conceito de leitura para além do contato com o texto escrito, mas sei que isso implicou uma abertura talvez demasiada. Mas percebi que tentar resolver a questão me impossibilitaria de escrever o livro que eu desejava, e precisava. Ficar restrito a personagens-leitores de texto escrito ou, então, me embrenhar na tentativa de encontrar um conceito mais preciso de leitura me levaria a uma outra pesquisa, eminentemente teórica, distante daquilo que eu pretendia fazer. O mais importante é a encenação de uma escrita tateante, que se ensaia buscando uma forma que jamais virá. Quero dizer: a tentativa de construir uma escrita que se assume como busca.

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