1
No interior do Nordeste
vivia um homem decente,
honesto e trabalhador,
sempre disposto e valente,
era filho de um doutor
que em uma escrava o gerou,
seu nome: Manoel Vicente.
2
Seu pai era um homem bom,
por isto o reconheceu,
sua mãe alforriou
no dia que ele nasceu,
deu-lhe nome e o batizou
e herança lhe deixou
legada quando morreu.
3
Cresceu ao lado do pai
a quem por prazer servia,
pois este nunca o deixara
padecer na enxovia,
sua mãe também livrara
e isto era coisa rara
que quase nunca se via.
4
Sua mãe alforriada,
trabalhava por prazer,
não morava na senzala,
seu pai mandara fazer
uma casinha para ela
e eles moravam nela
sem ninguém os aborrecer.
5
A senhora da fazenda,
a esposa do doutor,
embora não reclamasse
prá não perder seu amor,
vivia em grande desgosto
trazendo sempre no rosto
a marca da sua dor.
6
Ela lhe dera dois filhos,
Leonora e Deodato,
que eram p’rás leis de então
únicos filhos de fato,
Manoel Vicente, O bastardo,
pesava-lhes como um fardo
e era dos três odiado.
7
Muito embora o doutor fosse
querido na região,
um desafeto político
que perdera uma eleição,
mandara alguém o emboscar
e friamente o matar
a tiros de mosquetão.
8
Quando chegou a notícia
deste vil assassinato,
a viúva do doutor
chamou o filho Deodato
porque achou mais urgente
livrar-se de Manoel Vicente
do que apurar o fato.
9
Manoel Vicente ao saber,
do que ao pai acontecera,
e que também já tramavam
toda a sua desgraceira
de caçarem-lhes o naminão
devolvendo-os a escravidão,
ele e a mãe, esta primeira.
10
A escravidão grassava
por este brasil afora,
e ele embora mulato
desta dor vivia fora,
pois era livre de fato
e por seu desiderato
resolveu-se ir-se embora.
11
Juntou as coisas que tinha,
duas mulas carregou,
arriou a égua mansa
nela sua mãe montou,
juntou armas e munição
e encheu o matulão
com a prata que amealhou.
12
Cavalgaram toda a noite
e ao romper a madrugada
conseguiram alcançar
o começo da chapada
e duas horas depois
estavam chegando os dois
a cabana abandonada.
13
Instalou lá sua mãe
e falou que ia voltar,
e descobrir quem mandara
ao amado pai matar,
pois fora um homem decente
morto tão covardemente,
o haveria de vingar.
14
Voltou por outro caminho
temendo uma emboscada,
sabia que a madrasta
já estava preparada
com instinto de animal
a fazer-lhes qualquer mal
pelos filhos ajudada.
15
E ele tinha razão,
pois mal o dia raiara,
três sujeitos a mando dela,
fazendo o que ordenara,
foram a casa da rival
dispostos a qualquer mal,
da casa nada sobrara.
16
pelo o plano da megera,
eles deveriam achar
a preta e seu bastardo
e aos dois, executar
e a casa com os corpos dentro
sem hesitar um momento
meter fogo e os queimar.
17
Como não os encontraram
queimaram a casa assim mesmo,
tudo transformou-se em cinzas,
mas deram a viajem a esmo,
pois a ordem era encontrar
mãe e filho e os matar
e transforma-los em torresmo.
18
Manoel Vicente passou
direto para a cidade,
foi procurar o juiz
que tinha grande amizade
pelo pai assassinado;
por te grande probidade.
19
em lá chegando, o juiz,
o recebeu muito bem,
falou que estava pensando
em vingar seu pai também,
disse que o ajudaria,
toda informação daria
e ainda iria além.
20
pois a ele entregaria
o que o pai lhe legara,
duas mil libras esterlinas
que em suas mãos confiara,
prá que se acaso morresse
Manoel as recebesse
como herança que deixara.
21
o juiz lhe explicou
que aquela situação
se gerara na fazenda
do coronel Militão,
politico mal sucedido
que acoitava bandido
e apadrinhava ladrão.
22
Manoel Vicente teria
que pegar e espremer,
um jagunço da fazenda
e fazer ele dizer
quem seria o “pau mandado”
que ao pai tinha emboscado,
ir atrás e o prender.
23
depois dele confessar
a culpa do Militão,
que jamais seria preso
que fosse culpado ou não,
Manoel Vicente agiria,
e o coronel pagaria
sua grande traição.
24
o juiz mandou um homem,
bem armado prá chapada,
proteger a sua mãe
na cabana abandonada,
com ordem para matar
quem quer que chegasse lá
procurando a indigitada.
25
Manoel Vicente ficou
tres dias com o juiz,
no quarto dia partiu
em busca do infeliz
que iria capturar
prá depois interrogar,
foi a noite porquê quis.
26
se criara por ali,
conhecia a região,
antes que o dia raiasse
pôs-se em uma elevação,
embaixo de um umbuzeiro
dominando sobranceiro
a fazenda Militão.
27
passou a manhã ali
vendo todo movimento
viu quem entrou e saiu
reparou no armamento
que a jagunçada usava,
viu como ela se portava,
e aguardou o momento.
28
às duas horas da tarde
viu chegar pela estrada
tocada por seis vaqueiros
uma pequena boiada
quando um garrote espirrou,
e em seu encalço galopou
um vaqueiro em disparada.
29
o garrote disparou
no rumo do umbuzeiro
sob o qual Manoel Vicente
esperava o tempo inteiro
e resolveu de repente
usar de unhas e dentes
para agarrar o vaqueiro.
30
o garrote disparado
passou bem à sua frente,
desceu no mesmo galope
na trazeira da vertente
com o vaqueiro colado
certo de o Ter apanhado
pois nisto era competente.
31
mal ele havia passado
Manoel Vicente montou,
Pegou seu laço de couro
E a galope o acompanhou
Na bargada de um serrote
Sem que pegasse o garrote
Manoel Vicente o laçou.
32
o cavalo foi em frente
ele caiu na poeira
Manoel Vicente saltou
Já sacando a lambedeira
E no garguelo encostando
Foi para o cabra falando:
_”Não tente fazer besteira.
33
depois de o Ter amarrado
foi apanhar os cavalos.
Que pararam mais à frente
Pois já eram acostumados
A esperar seus vaqueiros
Nos trabalhos rotineiros
De ferra e pega de gado
34
mandou o cabra montar
e andaram uma légua e meia,
chegou a um morro de pedras
em meio a catinga feia,
e disse-o que se não falasse
na hora que o interrogasse
ia quebrá-lo na peia.
35
o vaqueiro apavorou-se
com sua situação
no meio daquele ermo,
amarrado e sem ação
nas mãos do desconhecido
já se sentia perdido,
não teria salvação.
36
Manoel Vicente falou:
_Me escute bem ó sujeito
pra sair daqui com vida
pra você só tem um jeito;
dizer o que quero ouvir
depois eu o deixo ir
bom de saúde e perfeito.
37
meu nome é Manoel Vicente
filho do Doutor Clemente
homem bom, justo e honesto,
mas morto covardemente
durante uma emboscada
sem chance de fazer nada;
embora fosse inocente.
38
Quem mandou a gente sabe,
Foi teu dono, o Militão,
Mas o que quero saber
É o autor da ação,
O cabra que o emboscou
E por dinheiro o matou
A tiros de mosquetão.
39
o vaqueiro então falou:
_Não me faça nenhum mal,
digo tudo p’ro senhor,
foi o preto Abdoral
escravo de confiança
e bem afeito a matança
ele é como um animal.
40
sua força é descomunal
dizem que alui um cavalo,
derruba touro a mãos nuas,
vai ser difícil enfrentá-lo
pois luta e atira bem
o mais difícil porém
é alguém capturá-lp.
41
Manoel Vicente falou:
_Este aí ei já conheço
já vi as suas façanhas
e vou provar que mereço
de ser filho de quem sou,
do meu pai que ele matou
a mim vai pagar o preço.
42
Depois falou p’ro vaqueiro:
Eu não posso te soltar,
tu vais pra casa correndo
mode me denunciar,
e atrapalha minha jogada,
não vou poder fazer nada
e nem meu pai vou vingar.
43
Mas não quero te matar,
Nunca me fizeste mal,
Quero sim o Militão
E o preto Abdoral,
Mas isso até Deus consente,
Mataram pai inocente,
Isto é vingança carnal.
44
Escute com atenção
O que vou fazer porém,
Vou atar tua vida à minha,
Pois não te quero mal nem bem,
Vou te deixar amarrado
E vou atrás do safado;
Se eu morrer, morres também.
45
Mas caso eu mate os dois
Eu volto pra te soltar,
Deixo a cabaça d’água,
Também vou te alimentar
Deixo comida demais
Se pego os dois animais
Eu volto pra te soltar.
46
Sob um pé de cajarana
Que crescera isolado,
Manoel deitou o vaqueiro
Junto do tronco, emborcado,
Com as pernas o abarcando
Qual se tivesse montando
E atou os pés do outro lado.
47
Tendo-o no pau escanchado
Com a barriga no chão,
Molhou o couro do laço
E fez uma amarração
No pescoço e esticou
Do outro lado amarrou
Depois soltou-lhe uma mão
48
Um nó em laço de couro
Ninguém pode desatar
Os pés atados um no outro
Não tinha como alcaçar
Ficou lá o desgraçado
Na cajarana amarrado
E começou a chorar.
49
Manoel Vicente sabia,
Que Abdoral costumava
Ir sempre à cidade às sextas,
E que lá se embriagava,
Brigava nos lupanares,
Quebrava coisas nos bares
Mas ninguém o molestava.
50
A fazenda Militão
Da cidade era distante
Légua e meia bem medida,
E a estrada serpenteante,
Varava grotas e serras,
Manoel foi naquelas terras
Tocaiar o meliante.
51
Na Sexta pela manhã,
Andou por lá e estudou
Um lugar apropriado,
E finalmente encontrou.
E sobre uma ribanceira
Na sombra da catingueira,
Aboletou-se e esperou.
52
Ficou ali um pedaço,
E uma idéia lhe ocorreu,
Rolando uma grande pedra
Que para a estrada desceu
Levando outras consigo,
Voltou para seu abrigo,
Ficou lá ; e entardeceu.
53
Já seriam cinco horas
Quando ouviu se aproximar
O trotar de dois cavalos
Com homens a conversar,
Era o preto e um amigo
Que ele trouxera consigo
Pra beber e farrear.
54
Viram que pela avalanche
Os animais não passariam
Por isto se apearam
E às pedras se dirigiam,
No intuito de afastá-las,
Pois se pudessem tirá-las
Seu caminho seguiriam.
55
O preto Abdoral
Pegou uma pedra e ergueu,
Como se fosse taboca
E na grota a arremeteu,
Manoel Vicente com zelo
Mirou no seu tornozelo
Atirou e o rompeu.
56
Os estilhaços de ossos
Voaram pra todo lado
Abdoral deu um berro
E caiu desamparado.
Seu amigo quis fugir ,
Mas só o fez pra cair
Mortalmente baleado.
57
Manoel Vicente desceu
A vertente na carreira
Chegou-se ao Abdoral
Que sentado na poeira
‘stava na perna agarrado
vendo o pé dependurado
e a junta uma desgraceira.
58
Manoel Vicente mirou
No joelho a queima roupa
Queimou o papo amarelo
E o negro com a voz rouca
Deu um berro desgraçado
E Manoel descontrolado
Meteu-lhe o cano na boca.
59
Manoel Vicente falou:
_Escuta preto safado,
o homem que tu matou,
era meu pai, desgraçado,
ele era um homem de bem,
por isto morres também
pois tu fostes o pau-mandado.
60
Não penses que me escapa
O teu dono, o Militão
Vou direto à casa dele
Acabar esta questão.
Antes que o dia amanheça,
Talvez até eu pereça,
Mas ele fala com o cão.
61
Tendo isto dito; puxando
O gatilho, o disparou.
A bala quarenta e quatro
No palato penetrou
Rompendo o crânio em pedaços
Que coberto de estilhaços
De ossos o solo ficou.
62
Na montaria do preto
Manoel Vicente encontrou
Um mosquetão Manichelle,
Sua munição pegou,
Mais um revólver arnagão
Que encontrou num matulão
Meteu na cinta e o levou.
63
Seguiu dali pra fazenda
Do coronel Militão,
Que distava légua e meia,
Não forçou seu alazão
Foi num passo moderado
Queria ele descansado
Na hora da precisão.
64
No lugar de onde antes
Saíra atrás do vaqueiro
Manoel Vicente postou-se
Aos pés do mesmo umbuzeiro.
Já era noite fechada
Porém toda jagunçada
‘stava ao redor de um braseiro .
65
Manoel Vicente os contou
Eram oito os que ele via
Porém não tinha certeza
Quantos na casa haveria.
Ficou ali esperando,
As horas foram passando
Porém nada acontecia.
66
Seria umas nove horas
Quando o coronel saiu
Chamou por um dos jagunços
Que depressa lhe acudiu
Deu-lhe uma ordem expressa
O cabra voltou depressa,
Chamou mais quatro e partiu.
67
Manoel Vicente ao ver
Aquele bando partir
Achou que era um sinal
Que Deus dava pra ele agir,
Que sua chance era aquela
E que se perdesse ela
Outra podia não vir.
68
Deixou passar meia hora
Pra que os cabras se afastassem
Para que não conseguissem
Ouvir os tiros e voltassem
Dificultando-lhe a vida
Porque aquela partida
Não queria que ganhassem.
69
Montou no seu alazão
E da colina desceu,
Com o revólver do preto,
E o rifle que era seu,
Tinha um em cada mão
E assim pronto pra ação
A galope arremeteu.
70
Seguiu direto à fogueira
Onde os jagunços ficaram,
E ao ouvir o galope
Os três rápidos levantaram,
Isto foi uma besteira,
Pois no clarão da fogueira
Alvos fáceis se tornaram.
71
Manoel Vicente porém
Vindo da escuridão,
Não era por eles visto,
Com uma arma em cada mão
Abriu um fogo cerrado
Dois caíram baleados
E um se jogou no chão.
72
Manoel passou direto
Sem refrear a carreira
Penetrou na casa grande
Pela porta dianteira
Chovia bala adoidado
E o alazão esporeado
Quebrou a mobília inteira.
73
O primeiro que morreu
Foi o velho militão
Que saiu da camarinha
De bacamarte na mão,
Mas antes que atirasse
Manoel mandou que parasse
Com um tiro de arnagão.
74
A bala quarenta e cinco
Entrou com gosto de gás
Bem no meio do esterno
Arrombou tudo por trás
E o coronel militão
Nesta mesma ocasião
Foi falar com satanás.
75
Manoel ainda matou
Mais um que apareceu,
Saindo para o alpendre
Um tiro o surpreendeu,
O cabra que atirara,
Aquele que se deitara,
Se levantou mas morreu.
76
Dali mesmo ele partiu
Para onde havia deixado
No tronco da cajarana
O pobre homem amarrado
Aquela hora o luar
Começou a levantar
Tava tudo iluminado.
77
Deviam ser uma e meia,
De manhã, quando chegou
Junto do morro de pedras.
Porém não se aproximou,
Só procurou um lugar
E apeou pra descansar,
E assim a noite passou.
78
Só se levantou dali
Quando o dia clareou
Foi ao pé de cajarana
E o vaqueiro encontrou
O cabra estava exaurido,
O laço tinha roído
Porém não o apartou.
79
Manoel Vicente falou:
_O seu dono já matei,
também o Abdoral,
e outro que encontrei,
estavam juntos, isto é fato,
na fazenda matei quatro,
como prometi, voltei.
80
Agora vou lhe soltar,
Mas um conselho lhe dou,
Desapareça daqui,
Nem fale que me encontrou,
E se ainda quiser viver,
É melhor me esquecer,
Nunca diga quem eu sou.
81
Cortando as cordas soltou,
O cafuzo que sumiu
Por dentro da capoeira
Tão feliz que até sorriu,
Daquele dia pra frente
Contava Manoel Vicente,
Nunca mais na vida o viu.
82
Dali seguiu pra cidade,
E a achou em convulsão,
A notícia já chegara
Da morte do militão,
Contava o povo excitado,
Tudo muito exagerado,
Era a maior confusão.
83
Foi à casa do juiz
Contou-lhe tudo o que fez,
O juiz muito orgulhou-se,
De um amigo deste jaez,
Que vingara o pai amado,
E um trabalho complicado
Fizera de uma só vez.
84
Conforme lhe prometera
Sua herança lhe entregou,
Deu-lhe ainda uma lembrança
Que o Manoel adorou
Um punhal “ponta de espada”
Com a bainha dourada
Que do próprio pai herdou.
85
Mandou-o pra Pernambuco
E uma carta escreveu
Aonde o recomendava,
A um grande amigo seu,
Também juiz de direito,
Bom amigo e bom sujeito,
E a Manoel Vicente a deu.
86
A carta
Ferdinando Pontas grossas,
Receba um fraterno abraço,
O portador que te entrega
Esta carta que te faço
É filho de um grande amigo,
Mas corre grande perigo,
Quero salvá-lo do laço.
87
O seu pai, indigitado
Era um bom amigo meu,
Era um grande advogado,
Foi emboscado e morreu,
O portador, que o amava,
É filho de uma escrava,
Mas ele o reconheceu.
88
Sua mãe, que vai com ele,
É uma velha mucama,
Mas morto o patrão, a ama
Resolveu lhe assassinar,
Até já mandou queimar
A casa, da desvalida
Que só não perdeu sua vida,
Por o filho a tirar de La.
89
Manoel Vicente também,
Está com os dias contados,
Se os dois forem encontrados,
Não lograrão salvação,
Te peço como um irmão
Para você recebê-los,
Tentar estabelecê-los,
E dar-lhes orientação
90
Eles não são indigentes,
Pois o Clemente os legou
Uma pequena fortuna,
E a mim a confiou,
Após a morte o chamei
A herança lhe entreguei,
Com ela ele viajou.
91
Duas mil libras esterlinas,
Fora o que amealhou
Pois durante sua vida
Ele muito trabalhou,
Ajude-o a encontrar
Uma boa terra e a comprar,
O ajudando o ajudou.
92
Sem Ter mais para o momento,
Te sou grato antecipado,
Pois sei que farás por ele
O que foi solicitado,
Aceite um abraço fraterno,
Deste teu amigo eterno,
Juventino, teu criado.
93
Após pegar do juiz
As coisas que ele deu
Manoel Vicente montou
E dali se escafedeu,
Direto para a chapada,
Pegou sua mãe amada
E seguiu o destino seu.
94
Depois de um mês na estrada,
Chegaram ao seu destino,
No sertão de Pernambuco
Um lugar bem pequenino,
Chamado Vila das Flores,
Ficaram cheios de amores
E ficaram lá residindo.
95
A primeira providência,
Foi por ali perguntando
Descobrir onde morava
O tal doutor Ferdinando
Todo mundo o conhecia,
E em pouco acontecia
De estar a carta entregando.
96
Assim que o doutor a leu,
Mandou que os dois entrassem
E nas poltronas da sala
Pediu que os dois sentassem,
Pois ele ia se aprontar
E sair para arranjar
Um lugar que os dois ficassem.
97
Em uma casa vazia
Pertencente a um amigo
Não muito longe dali,
O doutor lhes deu abrigo,
Ajudou no que podia,
E disse que no outro dia
Conversaria consigo.
98
No outro dia o doutor,
Veio com eles falar,
Sobre um sítio muito bom
Que poderiam comprar,
Não era muito distante,
E tinha água abundante
Levou os dois para olhar.
99
Levou-os em sua charrete,
Sem demonstrar preconceito,
(o que havia muito então)
por ser um homem direito
os tratava com igualdade
embora toda cidade
os olhasse de mal jeito.
100
O doutor havia lido
A carta de alforria
Manoel Vicente a mostrara
Na hora que os recebia,
E este era reconhecido
Como filho do falecido
Disto o doutor já saia.
101
Se chamava Pitangueira
O sítio que foram ver,
Acharam maravilhoso,
Mandaram o doutor fazer
O papel de compra e venda,
Já sonhando na fazenda
Que aquele sítio ia ser.
102
Custou mil libras esterlinas
Com a porteira fechada,
Sua mãe de tão contente,
Não podia dizer nada,
No mesmo dia pagaram
E no outro se mudaram,
A vida estava arranjada.
103
Ali Manoel prosperou,
E era muito respeitado,
Mas aos vinte e cinco anos
Ainda não tinha casado
E isto não o preocupava,
Só com a mãe se ocupava
Era uma filho dedicado.
104
De repente o destino
Um novo plano teceu,
Veio morar um tropeiro
No terreno junto ao seu,
Tinha uma grande família,
E tinha uma linda filha
A única que Deus lhe deu.
105
Se chamava Dorotéia,
E parecia uma flor,
Seus oito irmãos e os pais
Nutriam-lhe grande amor,
Jamais pensaram em casá-la,
Achavam que separá-la,
Lhes traria grande dor.
106
Mas cupido trama artes,
Que até o diabo duvida,
Nas coisas do coração
Se resume a sua lida,
Uma armadilha tramou,
E Manoel Vicente achou,
O amor da sua vida.
107
Um dia Manoel Vicente
Foi falar com o tropeiro,
Que tinha quarenta mulas,
E andava o sertão inteiro
Vendendo a mercadoria
Que de Recife trazia,
Ganhava muito dinheiro.
108
Manoel Vicente queria
Pedir para ele trazer
Umas coisas do Recife
Que ele queria Ter,
Uma arado de aço, inglês,
Este valia por três,
E era difícil obter.
109
E uma espingarda de caça,
De dois canos, reforçada,
De preferência da Bélgica
Pois era a mais afamada
Dez caixas de munição,
Da marca collins um facão,
E uma sela trabalhada.
110
Quando estavam conversando
Dorotéia na sala entrou,
Manoel quando a viu
Logo tartamudeou,
Não conseguiu mais falar,
Fixou nela o olhar,
Pra ele o resto acabou.
111
Ele nunca havia visto
Uma moça tão formosa,
Os cabelos longos e negros,
Corada como uma rosa,
Um sorriso cativante,
Belo corpo, exuberante,
Era a coisa mais mimosa.
112
Tinha dezessete anos,
E era a coisa mais bela,
Manoel Vicente ficou
Apaixonado por ela,
E tomou a decisão
No fundo do coração
Que casaria com ela.
113
A recíproca foi um fato,
Pois Dorotéia também,
Sentiu que Manoel Vicente,
Seria seu grande bem
E o olhou apaixonada,
E mesmo sem falar nada,
Seu olhar foi muito além.
114
O tropeiro Malaquias,
Notou tudo em um relance,
Decidiu que não devia
Intervir naquele lance,
Porque no fundo sabia
Que barrar ninguém podia
Um verdadeiro romance.
115
Manoel lhe deu o dinheiro
Para a encomenda que fez,
Malaquias lhe avisou
Que só no segundo mês,
Do dia em que partiria
É que ele voltaria,
Traria tudo talvez.
116
Nos meses que se seguiram,
O namoro aconteceu,
Ninguém desmancha uma trama
Que o destino teceu,
Ao Malaquias voltar,
Manoel foi lhe procurar,
Pediu-lhe a mão; e ele deu.
117
Passaram três meses noivos,
E o casamento se fez
Em oitocentos e noventa,
No dia quinze do mês,
De maio, o mês das flores,
Ambos perdidos de amores,
Segundo de Deus as leis.
118
No ano noventa e um,
Em vinte de fevereiro,
Nasceu-lhes a primeira filha,
E Manoel, prazenteiro
Convidando a vizinhança
Fez uma grande festança
E assou um boi inteiro.
119
Bebida tinha à fartura,
Pato, peru e galinha,
Tudo quanto era mulher
Ajudava na cozinha
Trouxeram um sanfoneiro
Que junto com um zabumbeiro
Tocaram a noite inteirinha.
120
Dois cantadores de viola
Tocavam noutro lugar
No martelo agalopado,
E no galope à beira-mar,
Ao Manoel elogiavam
E beleza decantavam
De Dorotéia ao rimar.
121
Veio o juiz Ferdinando
E o padre Clitorino,
Que apesar de sacerdote,
Era mordaz e ferino,
Mas a todos abençoou,
E mal de ninguém falou
Por milagre do Divino.
131
Depois da festa acabada,
A vida continuou,
A criança ficou forte,
Porém logo a mãe notou
Que a filha era diferente,
E apesar de estar contente
Uma dúvida a assaltou.
132
Criou buço e costeleta,
Seu corpo ficou peludo,
Suas mãos eram maiores
Que as de um menino taludo,
Peito largo, fortes ossos,
Os braços longos e grossos,
Bocão e lábios carnudos.
133
Tinha o choro muito grosso,
Desde inda recém-nascida,
Assim mesmo os pais a amavam,
Por ela dariam a vida,
No São João a batizaram,
E o nome que lhe legaram
Foi Maria Aparecida.
134
Manoel e Dorotéia,
Mais quinze filhos tiveram,
Dez homens e cinco mulheres,
Nunca desgostos lhes deram,
E normais todos nasceram,
Foram crianças e cresceram,
E bons filhos todos eram.
135
Deixemos o casal amigo
Nesta sua boa vida
Cercando-os a prosperidade
Certamente merecida,
E a vida vamos contar
Para você vamos contar
Para você apreciar,
Da Maria Aparecida.
A HISTÓRIA
DE
MARIA APARECIDA
FILHA DE “MANÉ VICENTE”
1
Lá no sítio Pitangueiras,
Em noventa e um nasceu,
A personagem da história
Que agora conto eu,
A filha de Manoel Vicente,
Que embora diferente
Nunca desgostos lhe deu.
2
Mesmo quando era criança,
Nunca gostou de bonecas
Ganhava na traquinagem
Dos meninos mais sapecas,
Só gostava de caçar,
Jogar bola e campear,
Lutar e jogar petecas.
3
Cêdo aprendeu a montar
E atirar de mosquetão
Aos dez anos derrubava
Qualquer bezerro na mão,
Ficou forte e se formou,
E aos quinze derrubou
Seu primeiro barbatão.
4
Mas não era truculenta,
Era tranqüila e cordata,
Nunca provocou ninguém,
Mas se contavam bravata,
Por maior que o cabra fosse,
Sua fama liquidou-se,
O quebrava na chibata.
5
Apesar de ser estranha
A família a adorava,
Por sua grande energia,
Ela muito trabalhava,
Assim enfrentava a vida
Nunca fugia da lida,
E o queria o pai dava.
6
Quando tinha doze anos
Do seu pai se aproximou,
Disse-lhe desejar algo
Que a ninguém jamais falou,
O rifle papo amarelo,
Que ela achava tão belo,
Que o pai o presenteou.
7
Este era uma winchester,
Ano oito, sete, meia,
Que tinha o corpo de bronze,
Não era uma arma feia,
Carregava nove balas,
Que quando chamava as falas,
A morte fácil campeia.
8
Manoel nem hesitou,
Pegou a arma e lhe deu,
Aquele rifle pequeno
Tôda vida fôra seu
Seu pai lhe dera, e êle o dava,
Para a filha que amava,
( Jamais se arrependeu ).
9
Maria quando falara
Jamais pensou em o ganhar,
Ficou emocionada
Quando o pai o foi buscar,
Na hora que ele lhe deu,
Maria estremeceu
E começou a chorar.
10
O pai ficou assustado
Com aquela reação,
Maria jamais chorara
Mesmo com motivação
Pois já entrara na pêia,
Sem fazer nem cara feia
Debaixo do cinturão.
11
No outro dia de manhã
Procuraram sem achar,
A Maria Aparecida,
Porque sem nada falar,
Com o rifle e municiada,
Saira de madrugada,
Fora sózinha caçar.
12
Levou a cabaça d’água
E um bornal com munição,
Dentro de um compartimento
Paçoca de carne e pão,
Um quarto de rapadura,
E levava na cintura
A peixeira e um facão.
13
O facão era o collins
Que seu pai encomendara
Ao seu avô, do Recife
Quando sua mãe avistara,
Pela primeira das vêzes,
A dali a cinco meses
Com a mesma se casara.
14
A peixeira tinha doze
Polegadas de tamanho,
Cortava como navalha,
Aos dez anos tinha ganho,
De um beato barbudo
Que escapara de Canudos,
Um homem bom, mas estranho.
15
Aparecida saiu
Antes do sol clarear,
Selou um burro e seguiu
Porque queria ir caçar
Lá no fim da outra chapada,
Pois lá havia onça pintada,
Muito já ouvira falar.
16
Das pequenas onças de bode,
Que chamam sussuaranas,
Ela já matara algumas,
Só faziam três semanas
Que sózinha uma enfrentara
E à espingarda a matara
Na plantação de bananas.
17
Com o rifle quarenta e quatro
Que agora o pai lhe dera,
Queria uma caça grossa,
A sí mesmo ela dissera,
E a noite se preparara,
E ainda escuro arribara
Para ir atrás da fera.
18
Já eram duas da tarde
Quando começou a subir
Pelo meio de dois serrotes,
Para onde queria ir,
( No fim do século passado
quem ia práqueles lados
se arriscava a não sair ).
19
Era um êrmo desgraçado,
Lá não era morava ninguém
Nem pôr lá haviam estradas
Onde houvesse vai e vem,
Mas tinha paca e veado
Caititú e boi montado,
E muita onça também.
20
Ao chegar no tabuleiro
Rumo ao poente seguiu,
Encontrou alguns riachos
Pôr lá muitos rastos viu,
De veado e caititú,
Viu préa, mocó e teiú,
Mas a onça nem pressentiu.
21
As cinco horas chegou
No começo de uma mata,
Aonde de alta rocha
Despejava uma cascata,
Que virada num riacho
Corria cabeça a baixo
Borbulhando em serenata.
22
Aparecida desceu
Acompanhando seu leito,
Em pouco tempo encontrou,
O lugar que tinha o jeito
De ser bom para acampar,
Começou por preparar
Um fogo muito bem feito.
23
Juntou a madeira sêca
Que pôr alí encontrou,
Quando fez um grande monte,
Pegou um pouco e arrumou,
Pegando seu currimboque,
Bateu na pedra de toque,
Meteu fogo e o assoprou.
24
Pegou umas palhas sêcas,
Que já tinha preparado,
E quando a chama subiu,
Pôs nuns gravetos quebrados,
E acendeu a fogueira,
Prá durar a noite inteira,
Tinha tudo preparado.
25
Amarrou bem amarrado,
O burro, prá não fugir,
Com duas horas escutou
Não muito longe dali,
Um esturro desgraçado
Que jamais tinha escutado,
Resolveu-se a não dormir.
26
Foi alimentando o fogo,
Mas o cançasso chegou,
Seus olhos foram pesando,
De repente cochilou,
Acabou adormecendo,
Foi o fogo esmaecendo
Até que enfim apagou.
27
Voltemos a esta manhã,
Na casa de Manoel Vicente,
Onde todos especulavam
Muito apreensivamente
Pôr qual motivo na vida
A Maria Aparecida
Sumira assim de repente.
28
O seu pai logo atinou,
Que a coisa devia estar
Associada ao rifle
Que acabara de lhe dar,
Calculou ali então,
Que levara a munição
E o fora experimentar.
29
As horas foram passando,
Tiro nenhum se ouviu,
Meio dia Manoel Vicente
Finalmente decidiu,
Que ia pegar a trilha
E seguir atrás da filha
Se preparou e partiu.
30
Mandou correndo chamar,
Seu cunhado Deodato,
Que era irmão de Dorotéa,
Bom rastreador de fato,
Passou o bicho ele encontra,
Tenha pata, casco ou ponta
Seja em terra, pedra ou mato.
31
Mandou dizer que viesse
Armado e municiado,
Pois ninguém alí sabia
O que tinha se passado
Pois prá Maria barrar
E a impedir de voltar,
Só algo muito pesado.
32
Em meia hora chegou
Deodato, e não veio só,
Vieram lhe acompanhando,
Seus irmãos Bino e Chicó,
E um seu primo segundo
Que se chamava Edmundo,
Sobrinho da sua vó.
33
Os cinco homens partiram
Após tomar um repasto,
Daí a vinte minutos
Já estavam seguindo o rasto,
Do velho burro Tordilho,
Deodato achara o trilho,
Maria o laçou no pasto
34
Os cinco seguiram a trilha
Até quando escureceu,
E pelo rumo que ia
Todo mundo compreendeu
Que Maria Aparecida
Corria risco de vida,
E qual era o plano seu.
35
Como sabiam o caminho
Resolveram prosseguir,
A vantagem da Maria
Tinham que diminuir,
Até junto a serra iriam,
Só alí pernoitariam,
E mal clareasse, à subir.
36
O cruzeiro estava alto
Quando êles chegaram lá,
Eles peiaram os cavalos
E os deixaram pastar,
Ajeitaram uma fogueira
Que durasse a noite inteira,
E deitaram prá descansar.
37
Foi mais ou menos esta hora,
Que Maria adormeceu,
Caiu num sono profundo
E o fogo esmaeceu,
As chamas se apagaram,
Mas muitas brasas ficaram
Aquecendo o corpo seu.
38
Já era a última virgília
Antes do amanhecer,
Que é a hora mais escura
Antes da barra nascer,
O seu burro se agitou
Fungou muito e até zurrou,
E ela nada pode ver.
39
Pôr ela ser muito nova,
E seu corpo estar cansado,
Estava alí desmaiada,
Num sono muito pesado,
Sem ouvir o alvoroço
Pois fizera um grande esforço
Para ficar acordada.
40
Mas quando a onça esturrou,
Ela acordou de repente
Seu rifle estava ao seu lado,
Pegou-o e ficou de frente,
Para onde o burro estava,
Na mesma hora escutava
Um barulho diferente.
41
Foi quando a onça pulou
Sôbre as costas do coitado
Meteu-lhe as garras ao focinho
Seu pescoço foi puxado,
Mordeu na sua garganta,
Em extertor êle levanta
E caem no mato fechado
42
Aparecida jogou
Palhas sêcas no braseiro,
Subiu uma labareda
Clareando o mato inteiro
E viu a onça amontada
No Tordilho abocanhada,
E deu-lhe um tiro certeiro
43
O tiro pegou em cheio,
Porém não fora mortal,
A onça se levantou
Cheia de instinto animal,
Franziu o couro da testa,
E correu no rumo desta,
Rugindo, o grande animal.
44
A onça correu três passos
E pulou no rumo dela,
Maria inda conseguiu
Acertar dois tiros nela,
A onça era pesada
Caindo sobre a coitada
Fraturou-lhe uma costela.
45
E foi nesta hora exata
Que a palha se acabou,
Tendo o fogo se apagado
A escuridão reinou,
Ela sacou a peixeira,
Pois era muito ligeira,
E na bixana cravou.
46
Deu-lhe mais de dez facadas,
Pelo mêdo que sentia,
Ela furava e furava,
E a onça nem se mexia,
Pois ela a tinha matado
Com os tiros que havia dado,
Caindo sôbre ela fria.
47
Não demorou meia hora
Para o dia amanhecer,
Quando tudo clareou
Foi que ela pode ver
Que matara um animal
Que era descomunal,
Não dava nem pra crer.
48
Sua costela doía,
Nem podia respirar
Pensava que gostaria
De a poder esfolar,
Pois aquele enorme couro
Seria como um tesouro
Que adoraria guardar.
49
Ela estava consciente,
Da sua grande enrascada,
Pois ia voltar a pé
Atravessando a chapada
E se Deus não a ajudasse,
Talvez até acabasse
Pelas feras devorada.
50
Cortou dois palmos do rabo
Tirou o couro e o salgou,
Depois enrolou num pano
E no seu bornal guardou,
Três tiros deu no animal,
Tirou balas do bornal
E o rifle recarregou.
51
Tirou a sua peixeira,
E uma vara cortou,
Para usar na subida,
E ela muito lhe ajudou,
A costela atrapalhava,
Doia se respirava
Mas Maria suportou.
52
Naquela hora seu pai
Iniciara a subida,
Não dormira a noite tôda,
Pensando na sua vida,
Pois não podia entender
Que ali pudesse perder
A sua filha querida.
53
Os sinais tinham provado
Que ela havia subido,
Alí entre os dois serrotes,
E que isto havia sido,
Feito com facilidade
E era cêdo da tarde
Quando ao alto tinha ido.
54
Quando chegaram a chapada
Resolveram galopar
A terra ali era plana
E boa de cavalgar
A viagem apressariam
Porquê os cinco queriam
Aparecida encontrar.
55
Passariam os mesmos riachos
Que Aparecida cruzou,
E em todos viram os rastos
Que o burro dela deixou,
Prosseguiram sem demoras,
Já seriam nove horas
Quando o grupo a avistou.
56
Notaram pelo andar
Que estava machucada,
O seu pai partiu na frente
Numa grande disparada,
E quando a alcançou
Saltou ao chão e ficou
Chorando a ela abraçada.
57
Alí ela lhes contou
Tudo o que aconteceu,
Durante a noite passada,
De como o burro morreu,
Pediu que juntos voltassem
E que a onça esfolassem
Porquê o couro era seu.
58
Seu pai porém ponderou
Que a costela quebrada,
Era coisa perigosa
E tinha que ser tratada
Que voltaria com ela,
Mas iriam os tios dela
Para esfolar a pintada.
59
Manoel Vicente voltou,
Com Deodato e com ela,
Os outros três prosseguiram,
Pois iam buscar a sela
Que ficara no lugar,
E a bichana esfolar
E trazer o couro dela.
60
Maria ia montada
Na garupa do alazão,
Ia apertando seu pai
Encostando ao coração
Agora que já passara,
Foi que ela avaliara
A loucura da sua ação.
61
Por causa do que fizera,
Seus pais haviam sofrido,
Seus parentes preocupados
Sequer haviam dormido,
Fizera uma coisa errada
Ao sair para a caçada
Sem dizer que tinha ido.
62
Eram já nove da noite,
Quando em casa chegaram,
Sua mãe e seus irmãos
De alegria choraram,
Quando a história contou,
Sôbre a onça que matou
Todos se admiraram.
63
Os tios que voltaram
Encontram o burro caido
Com a garganta rasgada
E o pescoço partido,
E o couro da pá rasgado,
Com grande naco arrancado,
Onde ela tinha morrido.
64
Os tios Chicó e Bino
E seu primo Edmundo,
Chegaram-se a onça morta
Com um respeito profundo,
Seu tamanho aparentava
Que dôze arrobas pesava
Em qualquer lugar do mundo.
65
E decidiram levar
A cabeçorra da fera,
Esfolando só o corpo,
Levando o couro que era,
Coisa bem grande e pesada
Deixando nele pregadas
Todas as garras da fera.
66
Enquanto dois trabalhavam
Outro tirou os arreios
Do velho burro Tordilho,
Rabichola, sela e freios,
Deu um trabalho danado,
Pois o burro era pesado,
Mas êle inventou os meios.
67
Era mais de onze horas,
Quando foram terminar,
Avivaram a fogueira
Para a boia preparar,
E após comerem, uma hora,
É que de lá foram embora,
Com vontade de chegar.
68
As seis horas eles chegaram
Ao lugar onde dormiram,
Não quizeram pernoitar,
Seu caminho prosseguiram,
Só as dez horas da noite
Pararam para o pernoite,
Mas a cinco prosseguiram.
69
Já passava de meio dia
Quando em casa encostaram,
Mas pôr todo vizinhança
As notícias se espalharam,
Para ver Aparecida
E a grande fera abatida
Muitas vizitas chegaram.
70
Maria teve enfaixada
A costela que quebrou,
Como era jovem e forte,
Velozmente se curou,
Sentiu-se realizada
Tendo a arma batizada
Pela fera que matou,
71
Fizeram-na os pais jurar,
Que nunca mais sairia,
Sem antes comunicar
O lugar para onde iria,
Logo ela concordou
E prontamente jurou,
Que jamais isto faria.
72
Após fazer quinze anos,
Seu bigode escureceu,
Mas ela nunca o raspou
Nem isto a entristeceu,
Ela sabia aceitar,
Nunca a viram se queixar
Daquilo que Deus lhe deu.
73
Houve uma ferra de gado
Na fazenda do Romão,
Todos foram convidados
Prá fazer apartação,
E como sempre se dava
Aquilo se transformava
Numa festa de peão.
74
Seu pai sempre a levava,
As vaquejadas que haviam
Pôr aquela região,
E aquela eles já iriam,
A vários anos seguidos
E eram bem recebidos
Pois alí todos os queriam,
75
Maria desde menina
Já bezerros derrubava,
E de ano para ano
A sua fama aumentava,
E agora duplicara
Pois da onça que matara,
A três anos se falava.
76
A cinco anos fugira
Da fazenda do Romão,
Um garrote bem formado
Que virara um Barbatão,
Terrível touro montado
Pois havia se criado
Nas caatingas do sertão,
77
Iam as dezenas os vaqueiros,
Tentarem captura-lo,
Os que tiveram mais sorte,
Não puderam acompanha-lo,
Um dia um o encurralou
Ele do mato espirrou
E matou o seu cavalo.
78
Neste ano o Coronel,
Pedro Menezes Romão,
Mandou correr a notícia
Que tinha premiação,
De quatro contos em dinheiro,
Para o primeiro vaqueiro
Que pegasse o barbatão.
79
Nos seis meses anteriores
Foi o boato espalhado
No dia da festa veio
De tudo quanto era estado
Muito vaqueiro raçudo
Prá pegar o orelhudo
E deixa-lo assinalado.
80
Veio lá de Sergipe,
Mané de Néco, o inglês,
Da Bahia Zé das Brotas,
Da Alagoas Fernandez,
Que era filho de espanhol,
Com êle veio Zé do Anzol,
Do Ceará vieram três.
81
Eram irmãos estes três,
Todos homens de ação
Criados desde meninos
Na lida de barbatão,
Dominavam tais assuntos,
E os três estavam juntos
Derrubavam até o cão.
82
Veio da zona da mata,
Um cafuzo façanhudo
Chamado Tapuia Preto,
Desordeiro além de tudo,
Chegado numa cachaça
Fazedor de arruaça,
Afilhado do rabudo.
83
Tapuia Preto era dono
De força descomunal
Derrubar touro no braço
Para ele era normal,
Nos dois chifres segurava,
Sua cabeça entortava
E jogava o animal.
84
Lá do sul do Piauí
Vieram cinco vaqueiros
Todos eles afamados,
Pedro Dantas e Zé Vergueiros,
Zé Viúvo e Malaquêta,
Antonio Perna Zambeta
E também dois violeiros.
85
Estes o acompanham
De Araripina prá frente,
A companhia dos cinco,
Deixou-os muito contentes,
E a noite quando acampavam,
Eles aos outros alegravam
Improvisando repentes.
86
Na madrugada do dia
Da festa de apartar,
Coronel Pedro Romão
Mandou pegar e matar,
Dois bois gordos e seis varrascos,
Só para fazer churrascos
Para o povo se fartar.
87
E de tôda região
Não havia um só vaqueiro,
Que não se encontrasse lá
Só pensando no dinheiro,
Prá muitos o sonho era vão,
Pois pegar o barbatão
Só Deus querendo primeiro.
88
Cinqüenta e sete vaqueiros,
O Coronel conferiu,
Que formassem cinco bandos
O Coronel sugeriu,
De onze foram formando
Mas dois findaram sobrando,
Mala-Torta e João Chibiu.
89
Só então Aparecida
Resolveu se inscrever,
Porque deu muito trabalho
Para ao seu pai convencer,
Mais pôr fim ele deixou
E ela então se preparou
E veio pra concorrer.
90
Maria então sugeriu
Que cinco bandos formassem,
Com dez homens cada um,
E que aqueles que sobrassem,
Formassem de oito um bando,
Isto com ela contando,
E se os outros aceitassem.
91
Todo mundo concordou,
E ficaram prazenteiros,
A Aparecida tocou
De ficar pôr companheiros
João Chibiu e Mala – Torta
Azulão e Pedro Horta
Pedro Dantas e Zé Vergueiros.
92
Pôr um azar desgraçado
Tapuia Preto ficou
No bando de aparecida,
Foi o diabo que ajeitou,
E o cafuzo desordeiro
A tampa do tabaqueiro
Naquele dia encontrou.
93
Os seis bandos se espalharam
Querendo ao touro encontrar,
Não tinha como saber,
Onde poderia estar
Na caatinga o barbatão,
Varava todo o sertão
O jeito era procurar.
94
Aparecida e seus homens
Resolveram-se a partirem
Para um lugar diferente,
Dos que viram os outros irem,
No rumo da serra azul
Que se avistava ao sul,
Lugar bem longe, seguirem.
95
Galoparam duas horas
Chegaram em um tabuleiro,
O solo era pedregoso
Com muito mato rasteiro,
Pouca caatinga fechada,
Com quatro duplas formadas
Seguiram atrás do matreiro.
96
Três duplas eram formadas
Pôr antigos companheiros
Azulão com Pedro Horta,
Pedro Dantas e Zé Vergueiros
Mala – Torta e João Chibiu,
Aparecida se viu
Com o pior dos vaqueiros
97
O que sobrou para ela
Foi o cafuzo encrequeiro
Chamado Tapuia Preto
Cabra mal e desordeiro,
Que cheio de ambição,
Mataria até o cão
Pôr quatro contos em dinheiro.
98
Aparecida só tinha
Quinze anos afinal,
Mas era muito crescida,
Forte como um animal,
E cheia de ousadia
Certamente poderia
Se livrar de qualquer mal.
99
Ela não simpatizara,
Com o cafuzo desde que o vira,
Mas sem ter nenhum receio
Ao lado dele seguira
Nem pensava no dinheiro
Pôr espirito aventureiro
Na empreitada partira.
100
Seguindo sempre para o sul
Maria e seu companheiro
Galoparam até as onze
No centro do tabuleiro
Chegaram a um bebedouro
E viram os rastos de touro
Naquele local inteiro.
101
O rasto do bicho dava
Quase um palmo de tamanho,
E também eram profundos,
O que não seria estranho,
Para um touro bem criado,
Que mal fora desmamado
E o mato havia ganho.
102
Maria e Tapuia Preto
Começaram a rastrea-lo,
Era já quase uma hora
Quando lograram avista-lo,
E se convenceram ao vê-lo
Que era uma coisa querê-lo,
E outra coisa pega-lo.
103
Tinha o pêlo luzidio
O magnífico animal,
Teria um metro entre pontas,
E o corpo descomunal
Nove palmos na cernelha
E prá fazer-lhe parelha
Não achariam outro igual.
104
Seu corpo era malhado,
Mas a cara toda escura
Era ágil e musculoso,
Parecia força pura,
Seus chifres de acerados
Pareciam até limados;
A luta seria dura.
105
Sugeriu Tapuia Preto
Que os dois se separassem,
E fazendo um semicírculo,
Pelos dois lados o cercassem,
E para o vale o forçando,
Terminassem o encurralando,
E em o fazendo, o laçassem.
106
Mais o seu plano era outro,
Sua ambição incontida,
Tramava tanger o touro
No rumo de Aparecida,
Que tentaria barra-lo,
Mas perderia cavalo
E também a sua vida.
107
É que ele não sabia,
Com quem se estava metendo,
E que a moça de bigodes
Que alí estava vendo,
Até o diabo temia
Porque êle pressentia
Que acabaria perdendo.
108
Tal como planejou fez,
E o touro numa descida
Arremeteu de uma vez
Com uma fúria incontida,
Com os cascos trovejando,
Cabeça baixa e fungando
No rumo de Aparecida.
109
Aparecida saltou fora,
Ele pegou o cavalo
Cravou-lhes os chifres no flanco,
Quase chega a atravessa-lo,
Com força descomunal
Jogou longe o animal
Chegando a eviscera-lo
110
Aparecida rolara
Sobre o chão da capoeira,
O touro parou adiante
Numa nuvem de poeira,
Voltando-se para ataca-la
Sequioso de envia-la
À morada derradeira.
11
Tapuia Preto parara,
E de longe observava,
Na certeza que o touro
A Aparecida matava,
Só então se apressaria
E o capturaria
E a recompensa ganhava.
112
Aparecida porém
Não planejava morrer,
Em direção a clareira
Ela tratou de correr,
E parando de repente
Encarou êle de frente,
Pronta para o receber.
113
O touro escavou o chão,
Soltando um mugido rouco,
E partiu em disparada,
Pois de raiva estava louco,
Maria negaceou,
Ele raspando passou,
E ela escapou pôr pouco.
114
Fez a curva com dez metros,
E fez a nova investida,
Mas agora iria ver
Que Maria Aparecida
Não viera alí pra prosa,
E que era mais perigosa
Se lutava pela vida.
115
Novamente ela esquivou-se
Só que desta vez pulou
Agarrando no pescoço,
Com o braço esquerdo o enlaçou,
E o touro a foi levando
E ela o braço esticando
Pelo focinho o pegou.
116
Enfiou-lhe pelas ventas
O médio e o indicador,
Com o polegar na direita,
Sua enorme mão fechou,
Como uma torquez de aço,
Com a força do seu braço,
Sua cabeça entortou.
117
O enorme barbatão
Sai tombando de lado,
Caindo para a esquerda
Com um estrondo danado,
Quando o cafuzo isto viu
De repente pressentiu
Que seu plano dera errado.
118
Então mudando de tática
Resolveu ir ajudar
A Maria Aparecida,
Ao barbatão dominar,
E depois de domina-lo
Amarra-lo e encareta-lo
Ele mesmo a ia matar
119
Mal pensou, e assim fez,
E o bicho subjugaram,
Peiaram os pés bem peiados,
Depois o encaretaram ,
Furaram as ventas do touro
E com um relho de couro
Pôr alí o amarram.
120
Fizeram como uma argola
Nas ventas do barbatão
Passaram um laço nos chifres,
E pôr dentro dela, e então,
Soltaram as peias dêle
E permitiram que êle
Se levantasse do chão.
121
Tapuia Preto ao ver
O touro já preparado,
Chegou-se a Aparecida
De um modo dissimulado,
E após ficar atras dela
Passou a gravata nela
E segurou apertado.
122
Com a direita sacou
A sua faca amolada,
Pensando em Aparecida,
Vê-la logo mergulhada,
Pois que pêga de surpresa,
Com sua garganta presa
Ela estava sufocada.
123
Nesta hora ele meteu
A faca para cravar
Mas Aparecida pode,
Sua munheca pegar
Deu-lhe um aperto tremendo
Que o cafuzo ficou gemendo
Mas não chegou a gritar.
124
Aparecida meteu
A mão direita pôr trás,
Pegou os bagos do cabra
Num aperto de tenaz,
Do berro que ele soltou
O touro se espantou
Que quase um estrago faz.
125
É que apesar de amarrado
No tronco de uma aroeira,
O touro da arrancada
Quase arranca a focinheira,
Porém o couro agüentou
E a dor que provocou
Segurou sua carreira.
126
Porém Aparecida
Deu um aperto colosso,
Na munheca do cafuzo
Que ouviu estalar o osso,
O cabra a faca largou
E o outro braço afroxou
O aperto do pescoço
127
Os testículos do cafuzo
A Maria esmigalhou,
E sem largar o seu braço
A Maria os liberou
E então virando de frente
Deu-lhe um tapa tão potente
Que o infeliz desmaiou.
128
Quando ele se acordou
Estava todo amarrado
Onde a Maria pegara
O seu braço estava inchado,
E pela dor que sentia
O cafuzo pressentia
Que o osso estava quebrado.
129
Os seus bagos de inchados
Chegavam a incomodar
As pernas do miserável
Não podiam nem fechar,
E para mais desgraça-los
Pôr não haver dois cavalos
Ele teria que andar.
130
Aparecida a cavalo
Levava o touro e o bandido,
Que a esta altura achava,
Que devia Ter morrido,
Pois alí sendo arrastado
Andando a passo forçado
Se sentia um desvalido.
131
As quatro e meia da tarde
Encontrou dois companheiros,
Que ouviram sua estória,
E ajudaram prazenteiros,
Um ficando para ajudar
E outro indo chamar
O restante dos vaqueiros
132
Eram dez horas da noite
Quando a fazenda chegaram
Como a lua estava cheia
No caminho não pararam,
Estavam todos cançados
Porém estavam animados
E a festa se integraram.
33
Colocaram o barbatão
Em um curral reforçado
Tiraram o laço dos chifres
O deixando encaretado
A multidão o cercava
E pôr isto êle se achava
Furioso e agitado.
134
A Maria Aparecida
Era o centro da atenção
Ela fora a heroína
Da grande competição
Entre homens decididos
Ela havia conseguido
Derrubar o barbatão.
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E além de fazer isto
Ela havia escapado
Do plano ruim que o Tapuia
Para ela tinha armado,
Se não fosse tão valente
O cafuzo certamente
A teria assassinado.
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O velho Manoel Vicente
Era só felicidade
Porque a filha querida
Escapara da maldade
Do criminoso malvado
Que esperara amarrado
Ser levado pra cidade
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A noite passou depressa
Com forró e cantoria
Muita comida e bebida
Dançará e alegria
E a festa só acabou
Quando o sol se levantou
Clareando o novo dia.
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Depois que o dia nasceu,
Todo mundo se chegou
Arrodeando o curral,
E o touro mais se agitou,
Com a cabeça abaixada
Ele fez uma arrancada
Deu no curral e o quebrou
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Quando o touro se soltou
Foi a maior correria
O povo desesperado
Prá todo lado corria
E o touro foi de repente
Rumo ao Manoel Vicente
Que se achava com Maria.
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Ele estava de carêta,
Só enxergava pros lados,
Mas com a força que seguia
Infelizes dos coitados
Que ficassem em sua frente
Porque estes fatalmente
Morreriam atropelados
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Vendo o pai ameaçado
Sem ter como se livrar
De uma morte terrível
Só pensando em o salvar
Nem um momento hesitou
E frente a fera ficou
Para outra vez lutar.
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Numa fração de segundo
Toda cena se passou
O touro com violência
Aparecida atacou
Com um brusco movimento
Naquele mesmo momento
O seu chifre ela agarrou,
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A sua manopla esquerda
No chifre do boi cerrou
Fechou sua mão direita,
E um sôco desfechou,
No meio da testa do boi
E tão violento foi
Que o bicho se arriou.
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Abriu as pernas e caiu
Com sua lingua arriada
Da boca escorrendo espuma
Inda deu uma cagada
Seus olhos se reviraram
Suas canelas esticaram
E deu uma estrebuchada.
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Quando ela soltou-lhe o chifre,
Êle já era finado,
É que nas mãos de Maria
Nem chegara a dar um caldo,
Quem matou um touro assim
Segundo contou prá mim
Foi o Olindo Toaldo.
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Com todas as testemunhas
Que viram o fato se dar,
A estória se espalhou
Pôr todo aquêle lugar
E a sua fama cresceu
Mas que ela mereceu
Nós não podemos negar
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Pegou um conto e seiscentos
Repartiu com os companheiros
Seiscentos ela repartiu
Com Pedro Dantas e Vergueiros
Pois estes muito ajudaram
Pois foram os dois que chegaram
Antes dos outros vaqueiros.
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O outro conto de réis
Ela em quatro repartiu
Dando um quarto a Azulão,
Outro quarto a João Chibiu,
Outro tanto a Mala-Torta
E o mesmo prá Pedro Horta,
Depois alegre sorriu.
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Caros leitores e ouvintes
Hoje contei com alegria
Isto tudo feito em versos
Conforme achei que devia,
Os percalços e aventuras
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As alegrias e venturas
Rimando como sabia
Infelizmente parei
Garanto inda escreverei
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