Soares Feitosa

Convite à Saudade  

 

Eu pedi, compadre Chico,   
ao grande besouro,  
Besouro Preto do alto dos coqueiros,  
ele passeava de uma árvore a outra,  
e me disse que de lá de cima, do alto,  
avistava tudo,   
distantes horizontes,  
longas planícies...  

Perguntei se lá do alto do coqueiro mais alto,  
ele avistava uma serra distante,  
depois destas vastidões de areia,  
de nome “das Matas”, a serra;  
um sabiazal  
- de árvores e de passarinhos, sabiás -  
tem uma grota abrejada, de nome “da Palha”,  
perto da casa do seu Zedonana...!  

E então compadre Chico,  
mestre Besouro Preto olhou e olhou,  
avoou de uma árvore a outra,  
fez um cocuruto de vôo, mais alto,  
voltou num rasante e disse:  

Compadre Moleque, não vi  nada,  
e se tivesse visto, lugar tão bonito,  
como você sempre fala,  
onde corre a Grota da Palha,  
onde têm sabiás - árvores cheirosas -  
onde têm sabiás - pássaros amigos -  
que não comem besouros pretos,  
eu também, compadre Moleque,  
teria voado para lá...  

E, tão amigos que temos sido,  
nestas praias de areia fina - Paracuru -  
levaria você comigo,  
você cavalgaria às minhas asas,  
me mostraria essa tal grota da Palha,  
esses sabiás,  
paus de flor e pássaros de canto,  
me apontaria também  
a amada do nosso patrão,  
nosso amo,   
o seu compadre,  
o compadre Chico...  

E eu, besouro insosso que nunca tive voz,  
sequer um estrídulo de repetição   
igual ao da comadre Cigarra,  
ao do compadre Grilo,  
mesmo assim,  
sem voz nenhuma,  
faria uma música para ela,            
à sombra  do pé de  benjamim,  
do alpendre da casa dela,  
e cantaria em esplendor:  

      Dona moça, dona moça,  
      bote seu melhor vestido,  
      o ruge, o pó-de-arroz,   
      um perfume bem cheiroso,  
      nosso Compadre vem aí...  
      'tá de volta...  'tá de volta...    
      'tá de vooooolta! 
Compadre Besouro Preto,  
pois tenho de lhe explicar,  
ao jugo da amizade,  
foi determinado pelo meu senhor,  
o compadre Chico,  
coronel das ordenanças,  
homem valente, de muitos amores,  
que este compadre dele,   
eu,  
o jumento Moleque,  
irmão-de-leite do meu compadre,  
ele bebeu do leite de minha mãe!  

Uma amizade da juventude,   
ao desembesto das quebradas da serra,  
aos alegres caminhos dos passarinhos,  
aos alegres caminhos do sabiazal,   
onde eu e meu compadre,  
não éramos só montaria e cavaleiro,  
éramos dois pareceiros em igual...  

                        Tenho direitos dele,   
                        em testamento: 

Cartório de dona Arlinda, em Santa Quitéria,  folhas [...] 
“Saibam todos: 
Ninguém jamais se lhe amonte 
ou lhe bote  cangalha, 
peia-de-pé ou cabresto curto. 
Este jumento de nome Moleque,
meu irmão-de-leite e meu amigo,
mandei buscar em  minhas origens,
Serra das Matas,
viva solto, liberto à solta,
nestas soltas de praia
enquanto lhe for permitido...
    — Não cai uma ave nem um cabelo  —
Pois enquanto não lhe chegar a hora,
que lhe sejam em regozijo e gozo
todos os matos, todos os capins,
todas as sombras, todas as águas,
todos os pássaros
que lhe cantarão os cânticos,
que lhe pousarão à "sarnelha",
leve carícia,
e que ele,
o  jumento Moleque,
em longos cochilos,
recuerdos
daquelas campinas,
daquelas luas,
daqueles alpendres,
e Flor!”
 
 

Nem sei direito, compadre Besouro Preto,  
se vale a pena voltar lá,  
todos que a gente conhecia viajaram  
ou se mudaram para a cidade grande;  
dos meus colegas,    
Meia-Noite viajou antes de vir,  
cavalim Bacalhau também;  
todos os outros bichos foram vendidos...  
  

Acho que Ela,   
a amada de meu compadre,  
ela também foi embora...  
assim, compadre Besouro Preto,  
acho melhor você não ter avistado nada,  
estou aprendendo a sentir a brisa da praia,  
o cheiro do mar,  
o rangir da areia nos cascos;  
o barulho das palhas destes coqueiros,  
o canto destes outros pássaros:  
já estou-me acostumando...  

Tenho muito medo  
medo de chegar lá,  
os jumentos mais novos  
arrebitarem o beiço  
e se indagarem:  

        ¿Quem é mesmo esse tal de Moleque?  

Pois foi assim mesmo:  
vendidas as terras,  
vendidas as tralhas,  
não se fizeram  as  contas dos gastos,  
em resgate e em regozijo  de uma amizade:  
o caminhão foi fretado,  
o frete compraria um cavalo de sela  
ou uma égua ruça  
dessas que se anunciam nos haras de luxo.  

        Porém,  
        portador dos mesmos silêncios do seu dono,  
        titular dos mesmos amores do seu amo,  
        alpendres e benjamins,    
        um prosaico jumento,   
        de nome Moleque,  
        viagem de luxo - pelo valor -  
        viagem de tristeza - pelo barulho -  
        baloiçando em cima do caminhão do Dionísio,  
        chegou nesta Babilônia, terra de cativeiro,  
        numa manhã de sol,  
        para o todo e sempre:  

o convite à saudade!   

                ¿Quem:  

    o jumento?  
          
o dono?  
  
  

Paracuru, Ce, manhã, 17.09.1994
 
 

Notas para Convite à Saudade:

1. - Besouro Preto: Rhynchophorus palmarum, besouro de grande porte, com uns 8cm de tamanho, terror dos produtores de coco da Bahia, ataca o olho do coqueiro. É de um preto aveludado. Não tem ferrão, mas mete medo pelo porte, (in Fruticultura Brasileira, Pimentel Gomes, Nobel.) 

2. - Das Matas, Serra das Matas, região centro-oeste do Ceará, cidade de Monsenhor Tabosa, infância do poeta.  

3. - Irmão-de-leite: Era costume, na região, alimentar as crianças com leite de jumenta. Os filhos da mãe-de-leite, ou ama-de-leite, são considerados irmãos de leite e, naturalmente, compadres.  

4. - Grota da Palha, a 2 km de Monsenhor Tabosa. No período das chuvas, essa pequena grota abrejava e corria por alguns meses para grande alegria dos banhos da meninada.  

5. - Sarnelha: regionalismo, corruptela de cernelha, o espinhaço do animal, nos jumentos marcado por uma linha mais escura que vai crinas ao rabo, com uma ramificação de lado a lado à altura das paletas. Diz a lenda que essa marca teria sido feita pelo menino Jesus, em boa mijada, na fuga para o Egito. Verdade ou mentira, todo jumento tem sua cruz... 

6. - Paracuru, CE, praias belíssimas, sítio Praia das Bicas, para onde, fato real, o jumento Moleque foi transportado e, em aposentadoria de boa mordomia, passou seus últimos dias, livre de cargas, cangalhas e cabrestos. 

7 .- Saibam todos: variante de um tema de Gerardo Mello Mourão, in O País dos Mourões, Testamento da Burra Graviola. 

8. - Não cai uma ave nem um cabelo: Mateus, 10:29/30 

9. - Meia-Noite e Bacalhau: personagens do poema Format Cê Dois Pontos. 

10. - Todos viajaram, todos se mudaram: fenômeno da migração do campo para as cidades pequenas e destas para a cidade grande. O perfil rural do Brasil inverteu-se completamente: capitais inchadas e o sertão em declínio e despovoamento. Favelização dos grandes centros. 

11. - Frete: Monsenhor Tabosa a Paracuru, aproximadamente 300 km.

 

Colofão:  

Este poema foi escrito em Paracuru, Ce, litoral norte, manhã de 17.07.94, Sítio Praia das Bicas, quando o vaqueiro Chico Florindo mostrou o local, em meio aos coqueiros - morada dos besouros-pretos - onde enterrou o jumento Moleque.

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter