Soares
Feitosa
A
visão das formiguinhas
A
palavra da Natureza,
oráculo
de Apolo Pítico,
foi-me
dirigida nos seguintes termos:
——
O que vês, Francisco?
Eu
disse:
vejo
um exército de pequenas formigas
que
são, parece,
as
formigas da cozinha daqui de casa,
aquelas
que freqüentam os açucareiros,
as
coisas doces, a minha rapadura.
——
Sim, somos as tuas formigas!
Disse
uma delas,
“e
aqui estamos para levantar uma queixa,
um
grande queixa” —,
(oráculo
de Apolo Pítico,
foi
assim a minha visão):
Era
uma tarde fumegante,
de
sol-mormaço, o convite à sesta,
de
rede vasta, quando
em
sonhos, tive a visão, quando,
(oráculo
de Apolo, foi assim que eu vi):
Disseram
as formigas:
——
Vê, Francisco,
na
casa de tua mãe nunca foi assim,
esqueceste?
Lá,
os “eletros” eram dois pilões,
e
um moinho marca Alexanderwick.
Um
pilão preto, de aroeira, cavado a fogo,
preto
como a noite escura,
(e
assustei-me – “Não temas”! — disseram),
que
era o pilão do café que se torrava
em
muito aroma...
fumegavam...
olores,
quando...
"E
nele, o pilão preto, pelo sabor penetrante,
calda
grossa da doce rapadura,
preto
mel que se lhe rejuntava à madeira,
era
ele, quando,
o
pilão preto, imolado à deusa da noite,
de
negrume pleno, e daquele pilão,
nem
da respectiva mão-de-pilão,
se
fazia qualquer uso
que
não fosse
o
café, quando,
ao
bule fumegante, que saía à sala
embrulhado
no abafador de grosso pano,
bule,
plantonista assíduo
em
cima da chapa quente,
do
fogão de lenha, olorosa lenha de sabiá...
xícara
ligeira a quem chegasse,
refúgio
de calor em torno
e
boa conversa, quando,
macio
e vasto, corria,
talvez
nem corresse tanto,
o
tempo sem pressa, quando.
"Nunca
chegamos perto daquele pilão preto,
nem
do fogão, nem do bule quente;
nem
nunca perturbamos",
(disseram
as formiguinhas)
"o
sono e a modorra do teu gato
que
na beira menos quente,
do
fogão, quase queimando os bigodes
cochilava..."
"Tínhamos
o nosso, teu também, que era
o
nosso pilão:
aquele
outro, de clara cor,
angico
de algum alburno,
amarelado
aos mucunzás da tarde-janta,
às
farinhas de pipoca
e
às paçocas da merenda farta;
era
ele,
teu
também, Francisco, o nosso pilão;
pois
era nele, quando não se pilavam coisas outras,
que
colocavas dentro dele uma rapadura,
e
em cima da boca do pilão,
como
a espada vigilante,
um
rabo-de-galo, FM,
(Frota
Mello) o facão —
e
das sobras e das raspas da rapadura —
a
nós, era a nossa Festa!
"Davas
um volta,
aos
canários, aos passarinhos, ao gato Mimoso,
aos
carrinhos que fazias e às gaiolas,
e,
trec,
golpe
rápido e mui certeiro,
mais
outra voltinha, trec, outro pedaço, trec,
não
sabemos quantos, no correr do dia".
Então
perguntei a elas,
(oráculo
de Apolo, foi assim que eu vi):
Aqui
também, nesta casa vossa,
só
aparentemente minha,
as
rapaduras continuam,
não
tendes o velho pilão,
por
certo o síndico não deixaria;
rapadura,
coisas doces, sim, tendes;
afinal,
de que se queixam as formiguinhas,
qual
é mesmo o problema?
"É
teu vaqueiro, Francisco,
um
tal de mestre Antônio,
homem
metido a sabido,
comprador
de imburanas
e
de ceras-de-abelhas, cheiro,
vê,
Francisco, o que o “miserável” nos aprontou:
"A
nossa rapadura agora é guardada,
recipiente
triplo,
câmara
injusta de três-pratos,
como
se fossem círculos distintos,
Inferno,
Purgatório e Paraíso...
Paraíso
inacessível, é bom esclarecer...
"Com
que direitos ele faz isso?"
(Indagaram
as formiguinhas,
oráculo
de Apolo, foi assim que eu vi):
Então,
sob um vento ligeiro,
o
sopro de Antônio (vaqueiro)
fez-se
presente, que indagado disse:
"Chefe,
assim é que se guarda rapadura:
um
primeiro prato, água até o meio,
que
quero ver as formigas passarem;
cairão
no fosso;
"O
segundo prato
onde
se coloca a rapadura já cortadinha
para
quando o senhor for à cozinha
(parece
que está indo até demais)
tomar
seu copo d’água...
"Um
terceiro prato para cobrir tudo por cima,
que
das formigas mais afoitas algumas criam asas,
e
mesmo que desçam voando
dos
céus,
se
esborracharão contidas...
à
vidraça intransponível:
quem
insistir se afogará!"
"Tá
vendo, Francisco, a diferença desse tal Antônio
com
a nossa madrinha Ana?
Veja
o que ele faz, com o 'nosso pilão',
com
o teu “facão...” com as tuas formigas!?
Deste
mesmo esta ordem?
"Exiges,
Francisco, com a iniquidade, que nos mudemos de ti?
Ah,
nosso santinho do Canindé,
o
que será de vossas formiguinhas?"
Lamentaram-se
em
coro e tribulação.
Aí
eu disse:
(oráculo
de Apolo, foi assim que eu vi):
Mestre
Antônio,
por
seu favor, vá la na cozinha, lá dentro,
me
coloque em canto limpo,
um
prato, apenas um, e dentro dele
o
melhor, o maior
pedaço;
o
mais doce; deixe lá,
é
delas.
—
Por favor, preciso repousar. — Disse a elas.
Elas
então disseram:
"Os
tempos mudam, mudam sempre,
mesmo
assim, gostaríamos de continuar comendo
contigo,
no
mesmo prato (pilão)
onde
sempre comemos...
que
sempre nos orgulhamos de quando,
por
distração, alguma de nós
desceu
às tuas fauces...
e
sem nenhuma soberba comungaste do sacrifício
da
nossa carne...!
"Nunca
te engasgamos
e
te temos dado
vista
larga",
disseram.
(Oráculo
de Apolo, foi assim que eu vi):
Aí
eu disse:
Mestre
Antônio, por seu favor,
vá
lá dentro,
me
destampe,
me
desnaufrague a rapadura, todo o estoque doce,
deixe
lá,
é
"nosso".
Veja,
por favor, mestre Antônio,
nestas
terras jamais comprei capa-de-chuva;
os
guarda-chuvas que de presente ganhei,
sempre
os perdi;
produtos
que não uso:
pois
chuva, mesmo que torrente e fosso,
é
quando me lavo,
banho-me
inteiro.
Tem mais, mestre Antônio:
água,
aqui, é coisa
mui santa e graciosa;
jamais para naufragar,
jamais para matar;
só para benzer,
só para glorificar.
Por falar nisso, as flores,
o senhor as entregou?
"Sim, seu Francisco",
disse mestre Antônio, Vaqueiro:
"acabei de chegar e entreguei
as flores que o senhor
mandou.
Eram bonitas,
mas pelo o que o senhor
sabe contar,
aquelas, dos roçados,
eram mais..."
E a visão, Oráculo
de Apolo,
esmaecendo,
foi assim que eu vi:
Era
de tua mão verde, verde aurora,
as
cajás amarelas, maio e ouro:
alastrava-se
o chão de farto e flor —
de
orvalho e flor —
[...]
pastava
—
e
era às tuas mãos
o
cheiro da manhã,
um
bogari em teus cabelos.
Salvadorr, barra da manhã,
27.05.95
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