De que lado mora a luz
e onde residem as trevas?
(Jó, 38:19)
Venho
de outras terras, meu capitão,
não sou da beira do mar, eu venho
desd’onde uma bola de fogo,
volúpia de luz, volúpia de cor,
cavalgava o horizonte e desabava,
queda brusca por detrás da serrania,
era quase todas as tardes,
lá,
que raramente chovia.
os jatobás queriam se
apossar do ouro do crepúsculo,
pediam a mestre Vento para
lhes açoitar as copas,
ajuda para agarrarem o Sol,
com medo de se perder na
mata,
corria ligeiro,mais
ligeiro ainda,
o medo de se rasgar nos
galhos dos paus,
ficava maior na hora de se
esconder,
"sou muito maior do
que o maior dos oitis",
e desabava lá de cima,
soberano:
Bem
ligeiro,
talvez até fosse mesmo — muito maior —
bem ligeiro,
rápido, rápido despencava lá detrás,
e a penumbra deslizava sobre a planície,
desciam as trevas no lá-de-cá da serra,
[faltam quatro dedos
para o Sol s'esconder na pedra grande,
dizíamos, no jogo de bola,
vamoss'embora]
que em
porta e ferrolho:
noite!
Depois
me mudei:
fui para além dos cabeços da Serra Branca,
para além do lado de lá,
atravessei o crepúsculo,
debandei para onde o sol aparecia,
acheguei-me às faldas da aurora,
Macacos, rio Macacos e Volta-do-Rio,
fazenda Macacos,
Macaco-da-dona-Anísia, diziam os moleques
para insultar, macaco de minha mãe;
era de lá mesmo, Macaco-de-minha-mãe,
do outro lado da serra,
a vez de espiar o mesmo Sol,
albor das alboradas.
Ali,
no lad’e lá do crepúsculo,
rompia desta vez,
o sol, a uma maré cinzenta,
brigava contra aqueles mesmos paus,
aqueles mesmo morros
que eram da tarde quand’era de tarde,
agora, matina, o Sol digladiava os mesmos inimigos;
os mesmos paus,
os mesmos morros eram engabelados,
o mesmo engodo:
crescer na hora de passar por cima deles, bola de
fogo,
apenas um fogo mais brando,
talvez fosse o frio do vento frio da serra fria,
daquela manhã quase fria, soprando,
que logo depois esquentava,
soprando.
Para não
rasgar nas pedras, pontiagudas, agudas,
para não derramar o oiro aos jatobás:
quem já abriu um jatobá,
bem amarelinho por dentro, sabe,
é puro ouro,
das asas,
borboletas —
pó, amarelas elas também.
Os
jatobás passavam o dia inteiro dourando Sol,
mesmo assim, queriam mais,
sempre mais ouro do Sol,
mas o bicho-sol crescia,
alargava o passo, andava ligeiro.
Depois,
mal se livrava dos jatobás e do mais alto dos
oitis,
diminuía o passo, ganhava altura
até o pingo,
pingo-do-meio-dia:
e pingávamos,
afrouxávamos o barbicacho dos chapéus,
cabeças abaixadas,
reverentes,
pois ninguém jamais olhou o rei Sol a pingo:
Só enquanto ele nasce,
só enquanto ele some;
quanto menor o Sol,
mais brilho de sol;
quanto mais alto o Sol,
mais fogo de Sol!
A
pino, diziam os mais velhos:
nunca olhe,
pode cair em cima da gente.
Mestre Sol,
quando estava a pino
chamava por mestre Vento e ordenava:
Compadre
Vento, não vente,
vamos mormacear,
botar os bichos pra sombra,
é hora de encostar.
Encostava
rápido e não ventava,
e mal descambava da linha do pingo,
mestre Sol afrouxava as correias de mestre Vento:
rápido era o redemoinho,
rápida era a poeira,
rápida secava a infanta baginha do feijoeiro,
rápidas contorciam-se as pontas dos dedos dos matos
verdes,
rápidas murchavam as cabeças louras das filhas do
milharal,
rápida e aflita a sede geral de todos os bichos.
Longo o fim da tarde,
longo o pio do cupido,
despedia-se o corrupião;
gemiam as oiticicas,
os paus-d’arco, as aroeiras,
quase recolhimento,
Vésper.
O Sol
também com sede
corria espavorido lá pras bandas do Piauí, também
de sede,
relava a barriga desta vez
espremido dentro do boqueirão por onde também
passava
tonitruante o Poti,
um rio velho, cobarde e mentiroso,
camarão que lhe é do nome,
camarão não tem nenhum.
Era
de medo da seca,
fugindo do Ceará,
troava o Poti, dentro dos abismos da serra,
para dizer que não estava com medo,
mas estava,
igual ao esmorecido
dentro do túnel,
buzina de medo,
nem olha para os lados, de medo, do túnel;
tanto estava,
desabalava inteiro pro Piauí.
Cobarde !
Esticava
o pescoço,
cansado e fumarento,
quase também fugindo,
de medo passava
um trem de poeira e ferro,
de cimento e tralhas,
um velho trem de cinzas,
anunciava-se num apito rouco.
aboio rasgado no chifre do marruá,
despedia-se, tristonho;
arranhava o bico das pedras...
carícia ligeira,
de quase.
chiando como um ferro de
ferrar boi,
para bater a poeira, as
fagulhas do dia,
abanar-se um pouquinho da
tarde quente,
se esfregava nos penachos
da palmeira mais alta,
cumeeira da Serra Grande,
onde
até bem pouco um abismo,
uma
ravina, um boqueirão, a escuridão,
plenificava agora um rasgo de fogo,
um rio de fogo,
em vermelho,
em laranja, ocres,
opalas,
fugidias,
as cores.
Em multi.
E as palmeiras
(de quase-opala, de verde-loiro)
da serra rascante,
cambiavam as brisas entre as copas e os ninhos,
aproveitavam para se dourar às custas do sol,
tentavam agarrá-lo como tinham tentado
um pouco mais cedo,
os jatobás da Serra das Matas,
os oitis da Serra das Matas,
mas, mestre Sol tinha pressa,
muita pressa de muito calor...
E não me venha, capitão, dizer que o Rei fugia,
percorria, porém,
Rei,
ligeiro,
pra lá de chãos.
Suava.
Suava muito.
Eu vi, capitão!
As
palmeiras apenas conseguiam tostar os coquilhos,
grandes manadas de lágrimas de sol,
os coquilhos,
miniaturas em amarelo-ouro,
ouro roubado de mestre Sol,
que já ia lá longe,
garganta ardendo de tanta fagulha,
mestre Sol ia beber a água da sede,
também uma colher de mel-de-abelha-jandaíra,
quem sabe, um trago de boa tiquira,
lá no Maranhão,
para quando no Amazonas chegasse,
bem de muitão,
refrescar um pouquinho,
talvez um banho na várzea do crepúsculo,
lá do lado de lá...
que é lá, poente,
poente que lá se põe.
Até
de manhã bem cedo...
Pontualmente!
Pontualmente,
de manhã bem cedo, pontualmente:
o Sol,
o galo,
a aurora,
a lufada do vento,
a manhãzinha,
o café forte,
a porta aberta.
É hora!
É hora, meu capitão,
me anote aí, por favor:
Sou do
crepúsculo,
da aurora também sou,
testemunhei ora em favor do sol,
ora em favor dos paus,
também em favor da brisa eu fui chamado,
outras vezes, em favor das pedras.
Vi a luta, capitão,
briga braba, de muita luz,
luz luminosa contra o verde-escuro,
de quando chovia;
contra o verde-cinza,
de quando ventava;
contra o cinza cinza,
de quando, Seca, secava!
Testemunhei
também em favor da serra,
das franjas do vento;
falei em favor do ocaso,
testifiquei o levante,
se preciso for,
testemunho outra vez.
Nem que o galo cante!
Porque era
assim mesmo, meu capitão,
lá no saco,
chamávamos saco,
pois era mesmo um grande saco,
buraco de muitas valas, serras, serranias,
imenso o saco-da-serra,
um vale de paredões,
que era por cima deles se abria o Sol,
um Sol-menino,
espreitando à beiradinha,
tomando chegada por cima da montanha,
só as mãozinhas agarrando o parapeito,
simples vagido daquele Sol-criança...
Mesmo assim, de logo era lançado, arremessado
extremo,
até se perder do outro lado do vale,
o lingüeirão de um vasto espanador,
cauda luminescente de um pavão real
e era azul...
Azul-real, o céu da manhã; e a luz,
ora refletida no vermelho-vermelho da fruta,
fruta do mandacaru em flor;
ora brincando de prata
no espinhaço de prata de um peixe de prata,
que as escamas,
trêmulos de luz,
fúlgidos...
Ora brincando de rei,
eis que era o próprio Rei em Rei,
o sol brilhava direto,
sem intermediários, no remanso do rio,
refulgência da malacacheta
em cada brecha do caminho.
Eu vi, capitão,
foi assim mesmo que eu vi!
Brilhavam,
que eram das mesmas alboradas,
da mesma manhã, quand’eu vi,
espelhando na cacimba clara
a menina dos teus olhos,
os molhados,
o teu vestido,
a miragem da cuia,
pois o apanhar da água, uma quase-música,
e os joelhos,
sob o rastro dos céus passantes:
os céus,
n’água,
os olhos...
d'ela
Enchias o cântaro,
depois,
o caminho,
quando subitamente iam ficando,
no caminho,
os orvalhados de teus pés iam ficando,
na areia respingada eram os desenhos,
em ritmo e sedução, joelhos —
e aquele cântaro era
o cântaro geral de minha sede toda,
tu,
sol geral de todas as manhãs,
pois eram duas,
pois eram dois:
Ela, o Sol;
o cântaro, a sede.
O que mais quer o
senhor que eu cante,
de que bicho o senhor quer que eu fale
de quantos pés, o bicho
em quantos pés, o canto ?
Se cantar é preciso,
escute lá, meu capitão:
Cant‘um canto de amor,
posso armar um quadrão,
um galope à beira-mar,
afino viola e bordão
qualquer mote sei cantar
nestas bandas do sertão
preferença de dois pé,
muié-feme, coração.
Sei cantar
o arco-íris,
só nun canto muié feia,
canto tudo qu’é estrela,
canto o céu quando clareia
pode ser de vagalume,
dozóios dela, lua cheia.
meu camim é muito claro,
ela que me alumeia.
Cant’inté no escuro
de tarde e de mei’dia
rasgo cerca, pulo muro,
nunca abro da folia,
é rojão pra lá de duro
pá dançar co’a Luzia,
coração de muito fogo,
muito bom na pontaria.
Nun abra
desta parada,
venha de lá, seu capitão:
tou espaiando as urtiga
arrancando os cansanção
dô nó e fac’intriga,
neste lado do sertão,
quando tô nun a briga,
bringu’inté cum o Cão.
Alimpe logo o camim,
desarréde, meu capitão!