Soares Feitosa  
 
Viagem a  Mirian
   
 
 
 

 A canja de galinha do padre cheirava deliciosa, 
 Dulce, também delícia, comprara o pão 
 e criava rolinhas e juritis 
 que andavam em cima da mesa. 
 São mansinhas, disse. 
 
 

O senhor deve ser o poeta, 
ele fala muito no senhor 
disse que está vindo 
de muito longe, longe mesmo, 
procurar uma noviça... 
Dizem que ela ainda usa cachos?!  
[...] 
Acho que o senhor é doido... 
Ela também ! 
Ah, espere, ele chegou.  
São as histórias do frei Damião, 
só pode ser, o fim do mundo, 
pedre, o seu amigo, ele chegou. 
 

E foi festão: 
Osvaldo Carneiro Chaves, 
poeta e padre: 
grego, latim, hebraico, aramaico, 
os clássicos - todos - 
sabe tudo, 
apenas tudo, o padre-poeta! 
 

Conversamos e conversamos: 
 
E a Mirian, poeta, você veio procurar? 
Umas paroquianas com esse nome, 
vou pesquisar, é bom botar uns panfletos... 
Beatriz também foi assim... 
 
 

Conversamos e conversamos: 

Estética,  
Retórica, as nove Musas, 
a Poesia, a Poética, 
o Brennand, o quadro, 
o Domador... 
 
 

E Mirian,  
indagou outra vez o padre-poeta, 
deve ter sido o acidente, 
você está bem, tem certeza de que não se machucou? 
Você,  
parece,  
vacila... 
 

Conversamos e conversamos: 

O vinho do Porto regava as palavras, 
as palavras se regalavam ao porto, 
os amigos, em Poesia, eram porto 
e os corações das mulheres eram porto 
à nau errante 
do coração do filho dos Feitosas... 
 
As castanhas do Ceará, em pouco sal, 
(Dulce as torrara)  
avoavam em tiragosto ao Porto... 
 
Quando ela então, 
lá de dentro, gritou: 

      A sopa está esfriando, padre! 
      chame seu amigo. 
 
Deix’esfriar! — ele disse. 
 
 
Este Porto tem mais de 30 anos, 
disse o padre-poeta. 
 
 
Bote outra, padre! 
Lá no Brennand, também, 
umas garrafas, lá, do Porto, 
ele abriu uma para o Jorge Amado, 
o resto eu bebi, padre, 
no poema do Cachorro! 
  
Conversamos e conversamos:  
teorias, 
muitas teorias... 
 

Teoria da Intimidade: 
 
——  Lendo? 
 
Não, padre-poeta,  
o autor,  
os personagens são companhia. 
 
 
——  Meditando? 
 
Não, os santos,  
os sentimentos são companhia. 
 

——  Trabalhando? 
 
Também não, os afazeres,  
o compromisso, são companhia. 
 

——  Onde, poeta, perguntava. 
 
É naqueles instantes fugazes, padre: 

        sem livros, 
        sem pessoas, 
        sem músicas, 
        sem interesses, 
        nem Mirian pode... 
        ao banho, talvez, 
        caçoando os cabelos, 
        entregue à água... 
        É um dos Elementos... 
        e outros pensamentos 
        que não são bem pensamentos 
        imagens talvez,  
        os posicionais da vida... 
        borbulham, padre, levemente, 
        aí você percebe 
        o Eu, a  Intimidade! 

——  Está insossa esta canja, 
poeta, bote limão. 
 
——  Prefiro pimenta, Dulce, por favor. 

——  Não tem, não tem molho aqui,  
o padre faz regime. 
 
——  Tem, Dulce,  
à minha janela tem um pé, 
malaguetas, vermelhas, lindas. 
 
——  Vá não Dulce, é perigoso, eu disse,  
de noite,  
tem cobra. 
 
Mal cisquei o olho,  
voltava a Dulce: 
cinco pimentas vermelhas 
foram esmagadas ao caldo... 
 
 

E então lembrei outras pimentas: 

      Ela, compadre, 
      que seguia viagem 
      Ibiapina, Serra Grande, 
      fizera mais outro bicho, 
      mais outro e mais outro; 
      as crianças do ônibus eram alegria, 
      todos do ônibus eram alegria, 
      meu caderno acabou-se em tantos bichos... 
 
E aí pedi: 
escreva meu nome. 
 
 
E uma rápida tabuletinha, cheia de furos, 
um rapidíssimo estilete, 
sovela de corações: 
crec, crec, croc:  
está pronto...  ela disse. 
 
Aí eu disse: é um autógrafo; 
 
ela disse:  
se eu soubessse, tinha feito o meu. 
 
Pois faça. 
 
Crec, crec, croc... 
está pronto, disse: 
Ana Lúcia! 
 

Apalpei o papel e não “vi” nada, compadre; 
então olhei 
e perguntei: 
 

——  O “A” é feito com dois pontinhos? 
 
——  Não, não,  
o “A” é outra coisa, 
esses dois pontinhos é para dizer 
que a letra do nome,  
do seu nome, Francisco, 
e do meu 
é maiúscula. 

Leia:  
e apontou: 
Francisco José,  
Ana Lúcia. 
 
Guardei  o autógrafo. 
 
Ando com ele, 
pra cima e pra baixo, 
veja, compadre: 
 

o     o   o     o        o        o   o     o   o        o        o     o   o     o  
           o          o   o                  o                o         o                          o  
    o                 o                  o                                o                    o  
  
  

    o        o     o              o     o   o  
         o   o         o     o          o   o  
    o               o         o          o   o  
  
   

    o     o          o   o     o                 o     o        o        o   o        o   o  
           o                               o                               o  
    o                 o                             o     o        o   o  
 

  
E os bichinhos dobrados, 
dobraduras,  
diabruras, 
saltavam de suas mãos. 
 
——   Faço qualquer coisa, ela dizia. 
 
——   Pois  faça-eu,  insultei. 
 
——   Ainda não dá:  
você, por enquanto, 
é apenas,  
apenas uma voz, 
figuras de voz também sei fazer...  
apenas, 
apenas  no coração... 
Para fazer o seu rosto,  
terei  de apalpar... —  ela disse. 
 
      [Apalpa, meu amor, meu  rosto  apalpa  
      Falou o poeta, o Mourão].   
        
       [Passe a mão, Compadre”  
       Disse a Raposa, a Comadre]. 
Que tenho certeza - ela disse -  
ficaria muito bonito... 
a voz, 
a voz já é... 
gravei... 
a voz... 
gravei... 
bonita!  
 
Percebi, compadre, 
naquele instante, 
as luzes do crepúsculo de minha terra 
já eram quase vermelhas... 
 
 
Vermelhas também  
foram as pimentas da sopa do padre, 
colhidas pela Dulce à janela... 
que vermelhas se faziam 
naquele instante,  
as faces da jovem; 
vermelhos também, 
os seus olhos, 
brilhantes, 
ali, 
tenho certeza, compadre, 
enxergavam! 
 
Vermelhas também, meu  compadre, 
quando senti o rubor,  
como se fora às caieiras,  
baixios do Rio do Governo, 
(lá, naquele tempo) 
tijolo e telha, na noite, queimando, polmando fumaça, 
as nuvens rubras, de céu cinzento,  
fumeiro, cinza, cachaça; 
pois assim foram 
as minhas faces, 
assim. 
 
Também  vermelhos, meu compadre, 
foram meus olhos, 
naquele instante, 
tenho certeza, 
ficaram 
cegos, 
totalmente cegos, 
irremediavelmente cegos.  
 
Ficaram.  
 

      Fortaleza/Recife, tarde de 11/06/94

Colofão 
Este poema  foi composto entre um pavoroso acidente, fato real, sem nenhum ferimento, km 110, BR 222, a meio caminho de Sobral, CE.,  dia 10.06.94, e o  embarque, de retorno para o Recife, Aeroporto Pinto Martins, Fortaleza, CE., dia 11.06.94. Foi passado direto para o computador e o papel, na manhã de12.06.94, em Recife, PE.  

Notas: 
1. Compadre-primo - Luiz Souto Teixeira, primo e compadre do poeta. Personagem do poema Compadre-primo, e também  também do poema Poltrona F-6.  

2. Ado - personagem do anúncio popular publicado no Diário de Pernambuco em busca da moça  da  Poltrona F-6.  

3. cavalo-de-pau - poema Ajunt-Hotel, deste autor.  

4. jumento Meia-Noite - poema Format Cê Dois Pontos, do autor.  

5. carro-santo - bromeliácea,  rasteira, botões vermelhos, produz umas bolotas com as  quais os meninos faziam rodas-de-carro, muito abundante às ruas de Monsenhor  Tabosa. 

6. Schiller: Ode à Alegria, coral da Nona Sinfonia, Beethoven.  

7. Irauçuba: município à margem da rodovia Fortaleza-Sobral; calor escaldante, grandes paredões de granito, paisagem desolada.  

8.apalpa, meu amor - Gerardo Mello Mourão: País dos Mourões, Primeiro Poema, “Iam caindo à esquerda e à direita”.  
  
9.passe a mão, compadre: Psi, a Penúltima, deste autor.  

10 só os cegos enxergam: O Domador, deste autor. 


Índige Geral do Autor | Página Principal
 
.