Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

Forjas
 Soares Feitosa

 

      "quebrei a imagem dos meus próprios sonhos". 
      Augusto dos Anjos, in Vandalismo 

 

Dizem que a cobra coral tem olho miúdo, 
que sabe bordar uma paisagem 
e encantar 
uma visagem. 
 

Dizem que os olhos da mulher 
amada brilham profundamente 
naquela lágrima, 
 

insustida lágrima — quem lhe há-de fugir? — 
que sempre me esforcei 
para conter...  
                     ... 
                       ...e também colher. 
 
 

Inesperado, um gesto: era-lhe a lágrima!

                    [Inútil, até que me esforcei para segurar] 
um lenço, 
meu reino por um lenço de seda: 
foram os meus dedos ensaiados de ternura e unha, 
um estranho cavalo, Ricardo e lenço, 
quando os lenços eram inocentes pedaços de pano, 
e os cavalos;  
ah, os cavalos, como eram úteis, a chicoteá-los 
numa fuga rápida na planície-pranto. 
 
 
Nesta outra guerra, brutalíssima guerra, 
guerra-de-dois,  
e de muitos mais,  
pois os fantasmas,  

         [por que você me fala    
         o tempo todo dos fantasmas?]
Você também não pára  
de falar dos seus, as "suas" — ela disse. 
 

Disse-lhe que era um ensaio de placidez, uma ternura. 
 
 

        Como assim?  
        Impossível! 
        Se as espadas são chispas  
        de egos e eros em cada-qual-de-si, 
        e lágrima  
        e armadura 
        e fechadura; 
        punhais, 
        umbrais?!
 
E me arrebatou o crânio, 
e enfiou de espelho a dentro. 
  
        Afogava-me em espelhuras, 
        era uma voz de sinais, 
        qu'eu podia ouvir à beira do lago, 
        mãos de pluma porém me afogavam; 
        um murmúrio de sílfide,  
        bravia sílfide, 
        megeramente indomada 
        e as ardências.
  

Este seu olhinho perverso, 

        [e supliciava-se ela a meio-pranto,   
        lindíssima a meio-pranto,   
        belo também é o pranto!]
é de criança, por certo é de criança o olhar,  
(ela disse) 
olho felino, porém, 
de gato-leão, de cobra-serpente, de mil 
demônios também. 
  

Emergi dos espelhos, 
não foi fácil, isto nunca é fácil! 

        [Ah, os espelhos, 
        como são terríveis os seus olhos,   
        terrivelmente doces, os seus, qu'eu nunca havia   
        reparado: — os espelhos?!]
Eu disse: 
    Deixe, amor, qu'eu mesmo lhe enxugue  
    essa lágrima vã.


E lhe fazia um gesto 
angelical e de fogo, 
e as minhas mãos foram 
bruscas em direção ao infinito; 
que também suaves pareciam descer 
aos abismos — as mãos —, 
(ah, as mãos, elas dizem muito mais  
que os olhos 
sempre dizem, crispadas ou não, dizem tudo!) 
cavei chão.

Ela então me arrebatou também as mãos.
 

          E disse:

          ¡Bandido! 

Eu disse: 

¡Bandida! 

         

        E nos engalfinhamos  
        e nos sangramos 
        no gradil do Templo, 
        venerando projeto de ressurreições.
         

Post-scriptum: 
    Um mensageiro? 
    De quem?  
    Quem o mandou?
  
Vou rasgar..., antes que o mensageiro fale..., 
isto talvez fosse e é  
um projeto vândalo.   
 
    Ah, poeta, porque estas coisas todas:
    serpentes, espelhos, lagos irrefletidos,
    os olhos d'Ela, os punhais, as sepulturas,
    tudo isto, mais as crinas de uma égua árdega
    na tarde cresta e os caminhos — perdidos! —
    só servem estes, os perdidos!,
    (— vou chamá-la, sim; Friar Lawrence, por favor!)
    pois os lenços, as lágrimas, os reinos,
    tudo, Juliet, e esta carta:

     
    Ricardo, my king, agora os cavalos —

     
    — Onde a planície?

 

 

Fortaleza, noite alta, 09.10.97

 

 

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