Soares Feitosa  

— H E L E N A —
                                                                                   
 
No cômodo onde Menelau vivera  
Bateram. Nada. Helena estava morta.  
A última aia a entrar fechou a porta,  
Levaram linho, ungüento, âmbar e cera.  
   
Noventa e sete anos. Suas pernas  
Eram dois secos galhos recurvados.  
Seus seios até o umbigo desdobrados  
Cobriam-lhe três hérnias bem externas..  

Na boca sem um dente os lábios frouxos  
Murchavam, ralo pêlo lhe cobria  
O sexo que de perto parecia  
Um pergaminho antigo de tons roxos.

Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,  
Compuseram seus ossos quebradiços,  
Deram-lhe à boca uns rubores postiços,  
Envolveram-na em faixas perfumadas.  

Então chamas onívoras tragaram  
A carne que cindiu tantas vontades.  
Quando sua sombra idosa entrou no Hades  
As sombras dos heróis todas choraram.  
  
  
  

Alexei Bueno
 
 
       Quem escreveu (ou até psicografou!, há quem acredite) o poema acima nos merece todo o respeito. Não o conheço pessoalmente, não tenho relações de amizade com ele, e, por isto mesmo,  mais fácil a mim a análise do poema. 
       Marcelo Coelho, ensaísta, acaba de escrever uma resenha (Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 26/1/1998) sobre o último livro desse autor (Alexei Bueno, Entusiasmo, Topbooks, Rio de Janeiro, 1997) e, na dita resenha, só não chama Alexei de arroz-doce. Do resto chama. E o pior é que Marcelo está coberto de razão. 
       Marcelo Coelho, talvez sem saber, botou um foco de luz no grande problema da crítica literária: há escolas (alguns dizem máfias). Impossível o poema acima ser gostado e degustado pelos concretistas. Impossível aos concretistas fazerem um poema como o acima que não seja um monte de garranchos magros, puro coiro, um chocalho sem badalo, uma égua Severina, coisa assim, que eu também não saberei. 
       Em suma, Marcelo Coelho diz: "Seria fácil fazer crítica literária se tivéssemos critérios imediatos de 'certo' e de 'errado'. Se acharmos, com ótimas razões teóricas, aliás, que o certo é ser breve, conciso, rigoroso e lógico, então Alexei Bueno está errado, erradíssimo, é ridículo, é de mau gosto e — para usar o termo — apupá-lo-emos". 
       Noutro trabalho meu, quando "criticava" um crítico cearense, senhor Rodrigo de Almeida, do jornal O Povo, para quem os poetas são os armoriais (os ruins) e os concretistas (os únicos com direito ao Olimpo), disse-lhe que seria muito honesto que o crítico colocasse uma tabuleta em sua oficina de trabalho: "trabalhos nos moldes do concretismo", ou "trabalhos à Augusto dos Anjos", ou "trabalhos à moda Ariano Suassuna" (o "fundador" dos armoriais), etc., etc., de modo que o leitor pudesse saber uma coisa fundamental: qual o cânone pelo qual a obra literária está sendo julgada. 
       Continua sendo muito perverso exigir dos lobos um laudo do sabor do capim, eis a essência da tragicomédia Os Três Porquinhos, de Walt Disney. Há cânones e cânones, porquinhos e lobos. Já li muito malho em cima d'O Cânone Ocidental do Mr. Bloom... 
       Faz-se literatura, faz-se crítica literária e faz-se moda. É tudo igual. Vestidos longos, cobrindo os joelhos, ah! os joelhos de Mary Lucy in illo tempore!..., e meus pecados adolescentes, mas isto é outra história. Depois, as saias estão lá em cima, ou nem estão, e tudo isso é muito bonito! 
       Quando diz que está a julgar o trabalho de Alexei pela "brevidade, concisão, rigor e lógica", Marcelo Coelho está fazendo um voto de isenção: tudo que Alexei fizer fora desses padrões (é bom não esquecer, os padrões são os de Marcelo Coelho, dele, Marcelo), malho e pedra no lombo de Alexei. Nunca vi ninguém apanhar tanto! 
       O problema é que não sabemos quem legou esse cânone de Marcelo a Marcelo, cabendo indagar, desde já, por que a poesia longa, sem concisão, sem nenhum rigor e sem nenhuma lógica, tudo oposto, não pode ser uma excelente Poesia. Por que motivos a Ode Triunfal ou a Marítima não seriam belíssimos poemas, doutor Marcelo? Elas são longas, com todos os defeitos que o senhor aponta. Por que Cloaca (nem sei se o autor bebe Coca-cola) seria um poemaço?
 
 
Cloaca 

beba coca              cola 
babe                      cola 
beba                      coca 
babe                      cola                  caco 
               caco 
               cola 

    c   l   o   a   c   a
 
 Décio Pignatary
 
 
       Cabeça de cada qual. Sob o cânone dos concretos, a Cloaca de Décio é olimpicamente linda. Na ótica dos modernos, Castro Alves, suprema blasfêmia, é lixo. Lixo, eles! 
       Em suma: variáveis. Variações de foco. Encastelam-se os sabidos e passam a ditar, ditatorialmente, as regras. O moço do Ceará, Rodrigo de Almeida, fechou a literatura universal em duas únicas categorias, os concretos e os armoriais. Donde, os bobalhões, dos poemas longos, e os ungidos, do espremido. 
       Cada vez mais admiro esse Marcelo. Primeiro, porque Marcelo foi o primeiro crítico que colocou uma tabuleta honesta na porta do estabelecimento: Aqui, (só os que escrevem) breve, conciso, rigoroso e lógico. Quem não escrever assim, apupá-lo-ei ! Segundo, pela coragem da surra em Alexei. Nunca se bateu tanto num escritor de nomeada. Nem em galinha para largar o choco, com direito a um banho gelado (pros meninos da cidade grande: galinha detesta banho!), depois amarram a bichinha num jirau bem alto (galinha detesta alturas), pois bem, Marcelo deu-lhe e deu-lhe e disse que continuará a apupá-lo. Nada de pessoal, claro. 
       Tudo em nome de um cânone que está (o próprio Marcelo, um cara honestíssimo, teve a coragem de reconhecer) nos estertores: "E os apupos de hoje serão o aplauso das gerações futuras." Ainda bem que Marcelo Coelho reconhece que o cânone dele está sob sereníssima marcha fúnebre. Crítico e profeta! 
       Até um dia desses, pegava muito bem falar mal de Castro Alves. Um poeta extraordinário como Murilo Mendes teve o desplante de fazer uma paródia com um dos hinos nacionais do País (os outros são Asa Branca e o Hino propriamente dito), Minha Terra Tem Palmeiras (escrevo o nome do maranhense e me levanto da cadeira). Hoje, mangamos dos iconoclastas. E eles mangavam de Castro Alves e de Gonçalves Dias. 
       Há que perguntar: quando o futuro? Faz tempo e eles não vêem: quem, eis a outra pergunta que responde a primeira, ainda se diz concretista? Perguntem a Ferreira Gullar. 
       Porque uma coisa é real: a Poesia! ELA — onde enlevo e o sublime! — a Poesia, em maiúsculo, permanecerá independentemente de quais cânones, modas, joelhos, críticos, lobos e porquinhos. Jamais se dirá que o Livro de Jó não é um super-poema. Nem o Alcorão. Nem os grandes bíblicos. Nem os quilômetros de Pessoa, nem essa suprema glória da lusa língua, um certo navio..., Uma Tragédia no Mar ! Nem Vandalismo, do paraibano. Poemas!, e morte cruel aos que lhes sejam contra. 
       Vai em frente, Alexei! Marcelo Coelho te surrou para o bem da Poesia! Os outros,  à cloaca. Quando tua sombra idosa entrar no Hades, as sombras dos heróis todas chorarão.

 

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