Ferreira


Carta

Fez força ao meu intento a doce e branda Musa tua, Bernardes, que a meu peito Dá novo espírito, novo fogo manda. Como um juízo queres que sujeito Viva a tantos juízos, se não guarda De tanto riso o rosto contrafeito? Quanto em mi mais das musas o fogo arde, Tanto trabalho mais para apagá-lo: Quanto o silêncio val sabe-se tarde. A medo vivo, a medo escrevo e falo; Hei medo do que falo só comigo; Mais inda a medo cuido, a medo calo. Encontro a cada passo com um inimigo De todo bom espírito: este me faz Temer-me de mi mesmo, e do amigo. Tais novidades este tempo traz, Que é necessário fingir pouco siso, Se queres vida ter, se queres paz. Vida em tanta cautela, tanto aviso, Quando me deixarás? quando verei Um verdadeiro rosto, um simples riso? Quando a mi me creram, todos crerei Sem dúvida, sem cores, sem enganos, E eu, que de mi mesmo seja reis Ali tantos dias tristes, tantos anos Levados pelos ares em desejos De falsos bens, e nossos tristes danos! A quem os deixa e foge, quão sobejos Lhe parecem mais bens que os que só bastam, Desviar da virtude os cegos pejos. Quantos as vidas, quantos almas gastam Em buscar seu perigo, e sua morte, E trás ela seus jugos cruéis arrastam Aqueles vivem só, a que coube em sorte Ao som da flauta, que dos ombros pende, O mundo desprezar com espírito forte. Toda minh'alma em desejar se estende A doce vida, que tão doce cantas, Que quase a força quebra, que me prende. Mas ajunta a estas forças outras tantas, Todas quebraria eu, se asas tivesse Com que chegasse onde me tu levantas. Se eu pudesse, Bernardes, se eu pudesse Ser senhor só de mi, eu voaria Onde do vulgo mais longe estivesse. Ali quão livremente me riria De quanto agora choro! ali meu canto Livre por ares livres soltaria. Enquanto me vês preso, amigo, enquanto Sem espírito, sem forças, não me chames Com teus versos, que a ti só honram tanto. Por mais que me desejes, mais que me ames, Não empregues em mi tão cegamente Teu canto com que é bem que heróis afames. Mas tratarei contigo amigamente Do conselho que pedes, juízo e lima Tem em si todo humilde e diligente. Quem tanto a si mesmo ama, tanto amima, Que a si se favorece, e se perdoa, Que espírito mostrará em prosa ou rima? Tais são alguns a que triste a hera coroa Roubada do vão povo ao claro espírito Que esconder-se trabalha, e então mais soa. Aquele dá de si público grito: Este cala e se esconde: o tempo enfim Uma apaga; imortal faz doutro o escrito. A primeira lei minha é, que de mim Primeiro me guarde eu, e a mim não creia, Nem os que levemente se me rim. Conheça-me a mi mesmo: siga a veia Natural, não forçada: o juízo quero De quem com juízo, e sem paixão me leia. Na boa imitação e uso, que o fero Engenho abranda, ao inculto dá arte, No conselho do amigo douto espero. Muito, ó poeta! o engenho pode dar-te; Mas muito mais que o engenho, o tempo e o estudo; Não queiras de ti logo contentar-te. É necessário ser um tempo mudo: Ouvir e ler somente: que aproveita Sem armas, com fervor, cometer tudo? Caminha por aqui. Esta é a direita Estrada dos que sobem ó alto monte Ao brando Apolo, às nove irmãs aceita. Do bom escrever, saber primeiro é fonte: Enriquece a memória de doutrina De que um cante, outro ensine, outro se conte. Isto me disse sempre uma divina Voz à orelha; isto entendo e creio; Isto ora me castiga, ora me ensina. Cada um para seu fim, busca um meio: Quem não sabe do ofício, não o trata; Dos que sem saber escrevem o mundo é cheio. Se ornares de fino ouro e branca prata Quanto mais e melhor já resplandece, Tanto mais val o engenho, sua arte se ata. Não prende logo a planta, não florece Sem ser da destra mão limpa e regada, Co tempo e arte flor fruto parece. Questão já foi de muitos disputada Se obra em verso arte mais, se a natureza? Uma sem outra val ou pouco ou nada. Mas eu tomaria antes a dureza Daquele que o trabalho e arte abrandou, Que destoutro a corrente e vã presteza. Vence o trabalho tudo; o que cansou Seu espírito e seus olhos, alguma hora Mostrará parte alguma do que achou. A palavra que sai uma vez fora, Mal se sabe tornar: é mais seguro Não tê-la, que escusar a culpa agora. Vejo teu verso brando, estilo puro, Engenho, arte, doutrina: só queria Tempo e lima de inveja forte muro. Ensina muito, e muda um ano e um dia: Como em pintura os erros vai mostrando Depois o tempo, que o olho antes não via. Corta o sobejo, vai acrescentando O que falta, o baixo ergue, o alto modera, Tudo a uma igual regra conformando. Sirva própria palavra ao bom intento; Haja juízo e regra e diferença Da prática comum ó pensamento. Dana ó estilo às vezes a sentença; Tão igual venha tudo, e tão conforme, Que em dúvida este ver qual deles vença. Mas deligente assim a lima reforme Teu verso, que não entre pelo são, Tornando-o, em vez de orná-lo, então disforme. O vício que se dá ó pintor, que a mão Não sabe erguer da tábua, fuge: a graça Tiram, quando alguns cuidam que a mais dão. Roendo o triste verso, como traça Sem sangue o deixam, sem espírito e vida: Outro o parto sem forma traz à praça. Há nas coisas um fim, há tal medida, Que quanto passa, ou falta dela, é vício: É necessária a emenda bem regida. Necessário é, confesso, o artifício, Não afeitado: empece a tenra planta O muito mimo, o muito benefício. Às vezes o que vem primeiro, tanta Natural graça traz, que uma das nove Deusas parece que o inspira e canta. Qual é a língua cruel, que inda ouse e prove Em vão ali seus fios? deixe inteiro O bem-nascido verso, o mau renove? Não mude, ou tire, ou ponha, sem primeiro Vir os ouvidos do prudente esperto Amigo, não invejoso ou lisonjeiro. Engana-se o amor-próprio, falso e incerto Também se engana o medo de aprazer-se; Em ambos erro há quase igual e certo. Para isto é bom remédio às vezes ler-se A dois ou três amigos; o bom pejo Honesto ajuda então melhor a ver-se. Ali como juiz então me vejo: Sinto quando igual vou, quando descaio, Quando doutra maneira me desejo. Quando eu meus versos lia ao meu Sampaio, "Muda (dizia) e tira". Ia, e tornava: "Inda (diz) na sentença bem não caio". O que mais suavemente me soava, O que me enchia o espírito, por mau tinha; O que me desprazia me louvava. Então conheci eu a dita minha Em tal amigo, tão desenganado juízo e certo, em que eu confiado vinha. Quem dos olhos tantos lido, quem julgado De tanto inimigo às vezes há de ser, Convém tempo esperar, e ir bem armado. Isto me faz, Bernardes meu, temer No teu, como no meu: não val escusa; Dói muito ver meu erro, e arrepender. Quem louva o bom? quem bom e mau não escusa? Mas tu não tens razão de temer muito, Assim te alça, e te leva a branda musa. Deixa só madurar o doce fruto Um pouco: deixa a lima contentar-se: Inventa e escolhe então o melhor do muito, Eu vejo cada dia acrescentar-se Em ti fogo mais claro, e o engenho teu Cada dia mais vivo levantar-se. Então darás, com glória tua, o seu Grão prêmio às musas, que te tal criaram, Vida a teu nome, qual a fama deu A muitos que da morte triunfaram.


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