Flávio Sátiro Fernandes

Ofício da escrita

Sento-me à máquina e tento vencer, numa hora imprópria para menore, o desafio da folha em branco. Se as letras não saltam, não adianta fazê-las pular da esfera. Penso que o defeito é da máquina e não da mente que emperra. Forço novamente a escrita e as palavras se espalham cheias de bolor. Armo-me com uma chave de fenda e desparafuso as teclas e a barra com que preencherei os espaços da memória. O carro já não anda. a não ser quando eu engato a marcha-retrocesso de volta à vida. A esta altura, a máquina não é mais que um montão de letras delirantes em ordem (an)alfabética. Como recompor o que a vida mecânica teima em manter sob o jugo do espírito? Jogo para o alto os tipos enferrujados e eles caem de papo pro ar. No caos maquinário e digital, restam, apenas, o til, o circunflexo, o grave e o agudo acento e mais a crase limpa, de uso racional, entre parênteses que se derramam tristes, prendendo o que resta de mim na folha branca, desafiadoramente branca.


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *