Fernando J. B. Martinho
Fronteira Azul
					Esta manhã vai subir
					como um lírio estrangulado
					lentamente na garganta.
					Esta manhã vai ter nas mimosas
					e no ar a alta vibração
					de um caminho para a Morte
					decidido firme e incorrupto.
					Vai passar o silêncio
					a fronteira azul onde os gerânios estremecem
					a mais pura gota de água
					a que nega o gosto a gravidade
					a que cai no céu e o embacia.
					Dizer do vento a primeira sílaba
					a primeira semente
					quando a terra ainda
					se não tinha desprendido
					do caos
					referir da lembrança
					o que mais dói
					nos seus recessos
					como custa suportar
					a luz crua
					das salinas
					que eleva nas margens
					do nosso desespero.
					Quando a morte
					se não podia ainda
					olhar de frente
					e os morcegos nos feriam
					com o latejar de um sangue
					mais fulminante que qualquer luz
					acontecia na terra
					o que nunca mais ousou repetir-se
					um lírio dava cor e dava forma
					à simplicidade
					bravia
					entre o silêncio
					e o que prometia ser a noite derradeira.
					Uma montanha
					ao alcance das veias
					um dia
					deu mais força aos membros
					mais volume
					à voz
					e quando já no rio
					toda uma vontade
					de nela ser um cardo
					crescia
					se me recusou
					abruptamente.
					Onde foi
					que um dia
					a limpidez
					teve o sangue do ultraje
					no rosto
					e não houve ninguém
					um lenço sequer
					para lho limpar?
					(in Antologia de Poetas Alentejanos)
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