Alberto Caeiro
 
XLVI - Deste Modo ou Daquele Modo
 
 
     Deste modo ou daquele modo.
     Conforme calha ou não calha.
     Podendo às vezes dizer o que penso,
     E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
     Vou escrevendo os meus versos sem querer,
     Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
     Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
     Como dar-me o sol de fora.

     Procuro dizer o que sinto
     Sem pensar em que o sinto.
     Procuro encostar as palavras à idéia
     E não precisar dum corredor
     Do pensamento para as palavras

     Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
     O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
     Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

     Procuro despir-me do que aprendi,
     Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
     E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
     Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
     Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
     Mas um animal humano que a Natureza produziu.

     E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
     Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
     E assim escrevo, ora bem ora mal,
     Ora acertando com o que quero dizer ora errando,
     Caindo aqui, levantando-me acolá,
     Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

     Ainda assim, sou alguém.
     Sou o Descobridor da Natureza.
     Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
     Trago ao Universo um novo Universo
     Porque trago ao Universo ele-próprio.

     Isto sinto e isto escrevo
     Perfeitamente sabedor e sem que não veja
     Que são cinco horas do amanhecer
     E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
     Por cima do muro do horizonte,
     Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
     Agarrando o cimo do muro
     Do horizonte cheio de montes baixos.

 
 
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