Fernando Pessoa
 
I - Primeira Parte: Brasão
               Bellum sine bello.

          I. OS CAMPOS 

          PRIMEIRO / O DOS CASTELOS 

          A Europa jaz, posta nos cotovelos:
          De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
          E toldam-lhe românticos cabelos
          Olhos gregos, lembrando.

          O cotovelo esquerdo é recuado;
          O direito é em ângulo disposto.
          Aquele diz Itália onde é pousado;
          Este diz Inglaterra onde, afastado,

          A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
          Fita, com olhar sphyngico e fatal,
          O Ocidente, futuro do passado.

          O rosto com que fita é Portugal.
 

          SEGUNDO / O DAS QUINAS
 

          Os Deuses vendem quando dão.
          Comprase a glória com desgraça.
          Ai dos felizes, porque são
          Só o que passa!

          Baste a quem baste o que Ihe basta
          O bastante de Ihe bastar!
          A vida é breve, a alma é vasta:
          Ter é tardar.

          Foi com desgraça e com vileza
          Que Deus ao Cristo definiu:
          Assim o opôs à Natureza
          E Filho o ungiu.
 

          II. OS CASTELOS 
 

          PRIMEIRO / ULISSES 

          O mytho é o nada que é tudo.
          O mesmo sol que abre os céus
          É um mytho brilhante e mudo —-
          O corpo morto de Deus,
          Vivo e desnudo.

          Este, que aqui aportou,
          Foi por não ser existindo.
          Sem existir nos bastou.
          Por não ter vindo foi vindo
          E nos criou.

          Assim a lenda se escorre
          A entrar na realidade,
          E a fecundá-la decorre.
          Em baixo, a vida, metade
          De nada, morre.
 

          SEGUNDO / VIRIATO 

          Se a alma que sente e faz conhece
          Só porque lembra o que esqueceu,
          Vivemos, raça, porque houvesse
          Memória em nós do instinto teu.

          Nação porque reencarnaste,
          Povo porque ressuscitou
          Ou tu, ou o de que eras a haste —
          Assim se Portugal formou.

          Teu ser é como aquela fria
          Luz que precede a madrugada,
          E é ja o ir a haver o dia
          Na antemanhã, confuso nada.
 

          TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE

          Todo começo é involuntáario.
          Deus é o agente.
          O herói a si assiste, vário
          E inconsciente.

          À espada em tuas mãos achada
          Teu olhar desce.
          «Que farei eu com esta espada?»
          Ergueste-a, e fez-se.
 

          QUARTO / D. TAREJA

          As naçôes todas são mystérios.
          Cada uma é todo o mundo a sós.
          Ó mãe de reis e avó de impérios,
          Vela por nós!

          Teu seio augusto amamentou
          Com bruta e natural certeza
          O que, imprevisto, Deus fadou.
          Por ele reza!

          Dê tua prece outro destino
          A quem fadou o instinto teu!
          O homem que foi o teu menino
          Envelheceu.

          Mas todo vivo é eterno infante
          Onde estás e não há o dia.
          No antigo seio, vigilante,
          De novo o cria!
 

          QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES

          Pai, foste cavaleiro.
          Hoje a vigília é nossa.
          Dá-nos o exemplo inteiro
          E a tua inteira força!

          Dá, contra a hora em que, errada,
          Novos infiéis vençam,
          A bênção como espada,
          A espada como benção!
 

          SEXTO / D. DINIS

          Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
          O plantador de naus a haver,
          E ouve um silêncio múrmuro consigo:
          É o rumor dos pinhais que, como um trigo
          De Império, ondulam sem se poder ver.

          Arroio, esse cantar, jovem e puro,
          Busca o oceano por achar;
          E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
          É o som presente desse mar futuro,
          É a voz da terra ansiando pelo mar.
 

          SÉTIMO (I) / D. JOÃO O PRIMEIRO

          O homem e a hora são um só
          Quando Deus faz e a história é feita.
          O mais é carne, cujo pó
          A terra espreita.

          Mestre, sem o saber, do Templo
          Que Portugal foi feito ser,
          Que houveste a glória e deste o exemplo
          De o defender.

          Teu nome, eleito em sua fama,
          É, na ara da nossa alma interna,
          A que repele, eterna chama,
          A sombra eterna.
 

          SÉTIMO (II) / D. FILIPA DE LENCASTRE

          Que enigma havia em teu seio
          Que só gênios concebia?
          Que arcanjo teus sonhos veio
          Velar, maternos, um dia?

          Volve a nós teu rosto sério,
          Princesa do Santo Graal,
          Humano ventre do Império,
          Madrinha de Portugal!
 

          III. AS QUINAS 

          PRIMEIRA / D. DUARTE, REI DE PORTUGAL

          Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
          A regra de ser Rei almou meu ser,
          Em dia e letra escrupuloso e fundo.

          Firme em minha tristeza, tal vivi.
          Cumpri contra o Destino o meu dever.
          Inutilmente? Não, porque o cumpri.
 

SEGUNDA / D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL

          Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
          A sua santa guerra.
          Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
          Às horas em que um frio vento passa
          Por sobre a fria terra.

          Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
          A fronte com o olhar;
          E esta febre de Além, que me consome,
          E este querer grandeza são seu nome
          Dentro em mim a vibrar.

          E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
          Em minha face calma.
          Cheio de Deus, não temo o que virá,
          Pois venha o que vier, nunca será
          Maior do que a minha alma.
 

          TERCEIRA / D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL

          Claro em pensar, e claro no sentir,
          É claro no querer;
          Indiferente ao que há em conseguir
          Que seja só obter;
          Dúplice dono, sem me dividir,
          De dever e de ser —

          Não me podia a Sorte dar guarida
          Por não ser eu dos seus.
          Assim vivi, assim morri, a vida,
          Calmo sob mudos céus,
          Fiel à palavra dada e à idéia tida.
          Tudo o mais é com Deus!
 

          QUARTA / D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL

          Não fui alguém. Minha alma estava estreita
          Entre tão grandes almas minhas pares,
          Inutilmente eleita,
          Virgemmente parada;

          Porque é do português, pai de amplos mares,
          Querer, poder só isto:
          O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
          O todo, ou o seu nada.
 

          QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL

          Louco, sim, louco, porque quis grandeza
          Qual a Sorte a não dá.
          Não coube em mim minha certeza;
          Por isso onde o areal está
          Ficou meu ser que houve, não o que há.

          Minha loucura, outros que me a tomem
          Com o que nela ia.
          Sem a loucura que é o homem
          Mais que a besta sadia,
          Cadáver adiado que procria?

          IV. A COROA

          NUN'ÁLVARES PEREIRA

          Que auréola te cerca?
          É a espada que, volteando.
          Faz que o ar alto perca
          Seu azul negro e brando.

          Mas que espada é que, erguida,
          Faz esse halo no céu?
          É Excalibur, a ungida,
          Que o Rei Artur te deu.

          'Sperança consumada,
          S. Portugal em ser,
          Ergue a luz da tua espada
          Para a estrada se ver!
 

          V. O TIMBRE

          A CABEÇA DO GRIFO / O INFANTE D. HENRIOUE

          Em seu trono entre o brilho das esferas,
          Com seu manto de noite e solidão,
          Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —
          O único imperador que tem, deveras,
          O globo mundo em sua mão.
 

          UMA ASA DO GRIFO / D. JOÃO O SEGUNDO 

          Braços cruzados, fita além do mar.
          Parece em promontório uma alta serra —
          O limite da terra a dominar
          O mar que possa haver além da terra. 

          Seu formidavel vulto solitário
          Enche de estar presente o mar e o céu
          E parece temer o mundo vário
          Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.

          A OUTRA ASA DO GRIFO / AFONSO DE ALBUQUEROUE

          De pé, sobre os países conquistados
          Desce os olhos cansados
          De ver o mundo e a injustiça e a sorte.
          Não pensa em vida ou morte
          Tão poderoso que não quer o quanto
          Pode, que o querer tanto
          Calcara mais do que o submisso mundo
          Sob o seu passo fundo.
          Três impérios do chão lhe a Sorte apanha. 
          Criou-os como quem desdenha.

 
 
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