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I
 Beber a vida num trago, e nesse trago 
 Todas as sensações que a vida dá 
 Em todas as suas formas [...] 
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 Dantes eu queria 
 Embeber-me nas árvores, nas flores, 
 Sonhar nas rochas, mares, solidões. 
 Hoje não, fujo dessa idéia louca: 
 Tudo o que me aproxima do mistério 
 Confrange-me de horror.  Quero hoje apenas 
 Sensações, muitas, muitas sensações, 
 De tudo, de todos neste mundo  humanas, 
 Não outras de delírios panteístas 
 Mas sim perpétuos choques de prazer  
 Mudando sempre, 
 Guardando forte a personalidade  
 Para sintetizá-las num sentir. 
             
Quero 
 Afogar em bulício, em luz, em vozes,  
  Tumultuárias [cousas] usuais  
 o sentimento da desolação 
 Que me enche e me avassala. 
              
Folgaria 
 De encher num dia, [...] num trago, 
 A medida dos vícios, inda mesmo 
 Que fosse condenado eternamente  
 Loucura!  ao tal inferno, 
 A um inferno real. 
  
 II
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas, 
 Como me amarga n'alma essa alegria! 
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 Nem em criança, ser predestinado, 
 Alegre eu era assim; no meu brincar, 
 Nas minhas ilusões da infância, eu punha  
 O mal da minha predestinação. 
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 Acabemos com esta vida assim! 
 Acabemos! o modo pouco importa! 
 Sofrer mais já não posso.  Pois verei  
 Eu, Fausto  aqueles que não sentem bem 
 Toda a extensão da felicidade, 
 Gozá-la? 
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Ferve a revolta em mim 
 Contra a causa da vida que me fez 
 Qual sou.  E morrerei e deixarei 
 Neste inundo isto apenas: uma vida 
 Só prazer e só gozo, só amor, 
 Só inconsciência em estéril pensamento 
 E desprezo [...] 
 Mas eu como entrarei naquela vida? 
 Eu não nasci para ela. 
  
 III
Melodia vaga 
 Para ti se eleva 
 E, chorando, leva 
 O teu coração, 
 Já de dor exausto, 
 E sonhando o afaga. 
 Os teus olhos, Fausto, 
 Não mais chorarão. 
  
 IV
Já não tenho alma.  Dei-a à luz e ao ruído, 
 Só sinto um vácuo imenso onde alma tive... 
 Sou qualquer cousa de exterior apenas, 
 Consciente apenas de já nada ser... 
 Pertenço à estúrdia e à crápula
da noite 
 Sou só delas, encontro-me disperso 
 Por cada grito bêbedo, por cada 
 Tom da luz no amplo bojo das botelhas. 
 Participo da névoa luminosa 
 Da orgia e da mentira do prazer. 
 E uma febre e um vácuo que há em mim 
 Confessa-me já morto... Palpo, em torno 
 Da minha alma, os fragmentos do meu ser 
 Com o hábito imortal de perscrutar-me. 
  
 V
Perdido 
 No labirinto de mim mesmo, já 
 Não sei qual o caminho que me leva 
 Dele à realidade humana e clara 
 Cheia de luz [...] alegremente  
 Mas com profunda pesadez em mim  
 Esta alegria, esta felicidade, 
 Que odeio e que me fere [...] 
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 Sinto como um insulto esta alegria 
  Toda a alegria.  Quase que sinto 
 Que rir, é rir  não de mim, mas, talvez, 
 Do meu ser. 
  
 VI
Toda a alegria me gela, me faz ódio.   
 Toda a tristeza alheia me aborrece,  
 Absorto eu na minha, maior muito Que outras  
 [...] 
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 Sinto em mim que a minha alma não tolera  
 Que seja alguém do que ela mais feliz; 
 O riso insulta-me, por existir; 
 Que eu sinto que não quero que alguém ria 
 Enquanto eu não puder.  Se acaso tento 
 Sentir, querer, só quero incoerências 
 De indefinida aspiração imensa, 
 Que mesmo no seu sonho é desmedida ... 
  
 VII
tua inconsciência alegre é uma ofensa 
 para    mim.  O seu riso esbofeteia-me! 
 Tua alegria cospe-me na cara! 
 Oh, com que ódio carnal e espiritual 
  escarro sobre o que na alma humana  
 Fria festas e danças e cantigas... 
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 Com que alegria minha, cairia 
 Um raio entre eles!  Com que pronto 
 Criaria torturas para eles 
 Só por rirem a vida em minha cara 
 E atirarem à minha face pálida 
 O seu gozo em viver, a poeira  que arda  
 Em meus olhos  dos seus momentos ocos 
 De infância adulta e tudo na alegria! 
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 Ó ódio, alegra-me tu sequer! 
 Faze-me ver a Morte. roendo a todos,  
 Põe-me ria vista os vermes trabalhando 
 Aqueles corpos! [...] 
  
 VIII
Triste horror d'alma, não evoco já 
 Com grata saudade, tristemente, 
 Estas recordações da juventude! 
 Já não sinto saudades, como há pouco 
 Inda as sentia.  Vai-se-me embotando, 
 Co'a força de pensar, contínuo e árido, 
 Toda a verdura e flor do pensamento. 
 Ao recordar agora, apenas sinto, 
 Como um cansaço só de ter vivido, 
 Desconsolado e mudo sentimento 
 De ter deixado atrás parte de mim, 
 E saudade de não ter saudade, 
 Saudades dos tempos em que as tinha. 
 Se a minha infância agora evoco, vejo 
  Estranho!  como uma outra criatura 
 Que me era amiga, numa vaga 
 Objetivada subjetividade. 
 Ora a infância me lembra, como um sonho, 
 Ora a uma distância sem medida 
 No tempo, desfazendo-me em espanto; 
 E a sensação que sinto, ao perceber 
 Que vou passando, já tem mais de horror 
 Que tristeza [...] 
 E nada evoca, a não ser o mistério 
 Que o tempo tem fechado em sua mão. 
 Mas a dor é maior! 
  
 IX
Ó vestidas razões!  Dor que é vergonha 
 E por vergonha de si-própria cala 
 A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa 
 Porca animalidade do animal, 
 Que se diz metafísica por medo 
 A saber-se só baixa ... 
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 Ó horror metafísico de ti! 
 Sentido pelo instinto, não na mente! 
 Vil metafísica do horror da carne, 
 Medo do amor... 
 Entre o teu corpo e o meu desejo dele 
 'Stá o abismo de seres consciente; 
 Pudesse-te eu amar sem que existisses 
 E possuir-te sem que ali estivesses! 
 Ah, que hábito recluso de pensar 
 Tão desterra o animal que ousar não ouso 
 O que a [besta mais vil] do mundo vil  
 Obra por maquinismo. 
 Tanto fechei à chave, aos olhos de outros, 
 Quanto em mim é instinto, que não sei 
 Com que gestos ou modos revelar 
 Um só instinto meu a olhos que olhem ... 
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 Deus pessoal, deus gente, dos que crêem, 
 Existe, para que eu te possa odiar! 
 Quero alguém a quem possa a maldição 
 Lançar da minha vida que morri, 
 E não o vácuo só da noite muda 
 Que me não ouve. 
  
 X
O horror metafísico de Outrem! 
 O pavor de uma consciência alheia  
 Como um deus a espreitar-me! 
         Quem me dera 
 Ser a única [cousa ou] animal  
 Para não ter olhares sobre mim! 
  
 XI
Um corpo humano! 
 Às vezes eu, olhando o próprio corpo,  
 Estremecia de terror ao vê-lo  
 Assim na realidade, tão carnal. 
  
 XII
................................................. Sinto horror  
 À significação que olhos humanos 
 Contém... 
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Sinto preciso 
 Ocultar o meu íntimo aos olhares 
 E aos perscrutamentos que olhares mostram; 
 Não quero que ninguém saiba o que sinto, 
 Além de que o não posso a alguém dizer... 
  
 XIII
Com que gesto de alma 
 Dou o passo de mim até à posse 
 Do corpo de outros, horrorosamente 
 Vivo, consciente, atento a mim, tão ele 
 Como eu sou eu. 
  
 XIV
Não me concebo amando, nem dizendo 
 A alguém "eu te amo"  sem que me conceba 
 Com uma outra alma que não é a minha 
 Toda a expansão e transfusão de vida 
 Me horroriza, como a avaro a idéia 
 De gastar e gastar inutilmente  
 Inda que no gastar se [extraia] gozo. 
  
 XV
Quando se adoram, vividos, 
 Dois seres juvenis e naturais 
 Parece que harmonias se derramam  
 Como perfumes pela terra em flor. 
 Mas eu, ao conceber-me amando, sinto 
 Como que um gargalhar hórrido e fundo 
 Da existência em mim, como ridículo 
 E desusado no que é natural. 
 Nunca, senão pensando no amor, 
 Me sinto tão longínquo e deslocado, 
 Tão cheio de ódios contra o meu destino.  
 De raivas contra a essência do viver. 
  
 XVI
Vendo passar amantes 
 Nem propriamente inveja ou ódio sinto, 
 Mas um rancor e uma aversão imensos 
 Ao universo inteiro, por cobri-los. 
  
 XVII
O amor causa-me horror; é abandono,  
 Intimidade... 
 ... Não sei ser inconsciente  
 E tenho para tudo [...] 
 A consciência, o pensamento aberto  
 Tornando-o impossível. 
 E eu tenho do alto orgulho a timidez 
 E sinto horror a abrir o ser a alguém, 
 A confiar nalguém.  Horror eu sinto 
 A que perscrute alguém, ou levemente 
 Ou não, quaisquer recantos do meu ser. 
 Abandonar-me em braços nus e belos  
 (Inda que deles o amor viesse)  
 No conceber do todo me horroriza; 
 Seria violar meu ser profundo, 
 Aproximar-me muito de outros homens. 
 Uma nudez qualquer  espírito ou corpo  
 Horroriza-me: acostumei-me cedo 
 Nos despimentos do meu ser 
 A fixar olhos pudicos, conscientes. 
 Do mais. Pensar em dizer "amo-te" 
 E "amo-te" só  só isto, me angustia... 
  
 XVIII
[...] eu mesmo 
 Sinto esse frio coração em mim  
 Admirado de ser um coração 
 Tão frio está. 
  
 XIX
Seria doce amar, cingir a mim  
 Um corpo de mulher, mais frio e grave 
 e feito em tudo, transcendentalmente 
 O pensamento agrada-me, e confrange-me 
 Do terror de perto, e [junto] 
 Em sensação ao meu, um outro corpo. 
 Gelada mão misteriosa cai  
 Sobre a imaginação [...] 
  
 XX
É isto o amor?  Só isto? [...] 
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 Sinto ânsias, desejos, 
 Mas não com meu ser todo.  Alguma cousa 
 No íntimo meu, alguma cousa ali 
  Fria, pesada, muda  permanece. 
 [P'ra] isto deixei eu a vida antiga  
 Que já bem não concebo, parecendo 
 Vaga já. 
 Já não sinto a agonia muda e funda  
 Mas uma, menos funda e dolorosa, 
 [Bem] mais terrível raiva [...]  
 De movimentos íntimos, desejos  
 Que são como rancores. 
 Um cansaço violento e desmedido 
 De existir e sentir-me aqui, e um ódio 
 Nascido disto, vago e horroroso, 
 A tudo e todos... 
  
 XXI
 Amo como o amor ama. 
 Não sei razão pra amar-te mais que amar-te. 
 Que queres que te diga mais que te amo, 
 Se o que quero dizer-te é que te amo? 
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 Quando te falo, dói-me que respondas 
 Ao que te digo e não ao meu amor. 
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 Ah! não perguntes nada; antes me fala 
 De tal maneira, que, se eu fora surda, 
 Te ouvisse todo com o coração. 
 Se te vejo não sei quem sou: eu amo. 
 Se me faltas [...] 
 ... Mas tu fazes, amor, por me faltares 
 Mesmo estando comigo, pois perguntas  
 Quando é amar que deves.  Se não amas, 
 Mostra-te indiferente, ou não me queiras, 
 Mas tu és como nunca ninguém foi, 
 Pois procuras o amor pra não amar, 
 E, se me buscas, é como se eu só fosse 
 Alguém pra te falar de quem tu amas. 
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 Quando te vi amei-te já muito antes: 
 Tornei a achar-te quando te encontrei. 
 Nasci pra ti antes de haver o mundo. 
 Não há cousa feliz ou hora alegre 
 Que eu tenha tido pela vida fora, 
 Que o não fosse porque te previa, 
 Porque dormias nela tu futuro. 
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 E eu soube-o só depois, quando te vi, 
 E tive para mim melhor sentido, 
 E o meu passado foi como uma 'strada 
 Iluminada pela frente, quando 
 O carro com lanternas vira a curva 
 Do caminho e já a noite é toda humana. 
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 Quando eu era pequena, sinto que eu 
 Amava-te já longe, mas de longe... 
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 Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta! 
  Compreendo-te tanto que não sinto, 
 Oh coração exterior ao meu! 
 Fatalidade, filha do destino 
 E das leis que há no fundo deste mundo! 
 Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto 
 De o sentir...? 
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 XXII
Pra que te falar?  Ninguém me irmana 
 Os pensamentos na compreensão. 
 Sou só por ser supremo, e tudo em mim 
 É maior. 
  
 XXIII
Reza por mim!  A mais não me enterneço. 
 Só por mim mesmo sei enternecer-me, 
 Soba a ilusão de amar e de sentir em que forçadamente
me detive. 
 Reza por mim, por mim! Eis a que chega 
 A minha tentativa [em] querer amar. 
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