Fernando Pessoa
 
A Falência do Prazer e do Amor
Terceiro Tema
 
I

Beber a vida num trago, e nesse trago 
Todas as sensações que a vida dá 
Em todas as suas formas [...] 
..................................................................... 
Dantes eu queria 
Embeber-me nas árvores, nas flores, 
Sonhar nas rochas, mares, solidões. 
Hoje não, fujo dessa idéia louca: 
Tudo o que me aproxima do mistério 
Confrange-me de horror.  Quero hoje apenas 
Sensações, muitas, muitas sensações, 
De tudo, de todos neste mundo — humanas, 
Não outras de delírios panteístas 
Mas sim perpétuos choques de prazer  
Mudando sempre, 
Guardando forte a personalidade  
Para sintetizá-las num sentir. 
             Quero 
Afogar em bulício, em luz, em vozes,  
— Tumultuárias [cousas] usuais — 
o sentimento da desolação 
Que me enche e me avassala. 
              Folgaria 
De encher num dia, [...] num trago, 
A medida dos vícios, inda mesmo 
Que fosse condenado eternamente — 
Loucura! — ao tal inferno, 
A um inferno real. 
 

II

Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas, 
Como me amarga n'alma essa alegria! 
..................................................................... 
Nem em criança, ser predestinado, 
Alegre eu era assim; no meu brincar, 
Nas minhas ilusões da infância, eu punha  
O mal da minha predestinação. 
..................................................................... 
Acabemos com esta vida assim! 
Acabemos! o modo pouco importa! 
Sofrer mais já não posso.  Pois verei — 
Eu, Fausto — aqueles que não sentem bem 
Toda a extensão da felicidade, 
Gozá-la? 
..................................................................... 
                Ferve a revolta em mim 
Contra a causa da vida que me fez 
Qual sou.  E morrerei e deixarei 
Neste inundo isto apenas: uma vida 
Só prazer e só gozo, só amor, 
Só inconsciência em estéril pensamento 
E desprezo [...] 

Mas eu como entrarei naquela vida? 
Eu não nasci para ela. 
 

III

Melodia vaga 
Para ti se eleva 
E, chorando, leva 
O teu coração, 
Já de dor exausto, 
E sonhando o afaga. 
Os teus olhos, Fausto, 
Não mais chorarão. 
 

IV

Já não tenho alma.  Dei-a à luz e ao ruído, 
Só sinto um vácuo imenso onde alma tive... 
Sou qualquer cousa de exterior apenas, 
Consciente apenas de já nada ser... 
Pertenço à estúrdia e à crápula da noite 
Sou só delas, encontro-me disperso 
Por cada grito bêbedo, por cada 
Tom da luz no amplo bojo das botelhas. 
Participo da névoa luminosa 
Da orgia e da mentira do prazer. 
E uma febre e um vácuo que há em mim 
Confessa-me já morto... Palpo, em torno 
Da minha alma, os fragmentos do meu ser 
Com o hábito imortal de perscrutar-me. 
 

V

Perdido 
No labirinto de mim mesmo, já 
Não sei qual o caminho que me leva 
Dele à realidade humana e clara 
Cheia de luz [...] alegremente  
Mas com profunda pesadez em mim  
Esta alegria, esta felicidade, 
Que odeio e que me fere [...] 
..................................................................... 
Sinto como um insulto esta alegria 
— Toda a alegria.  Quase que sinto 
Que rir, é rir — não de mim, mas, talvez, 
Do meu ser. 
 

VI

Toda a alegria me gela, me faz ódio.   
Toda a tristeza alheia me aborrece,  
Absorto eu na minha, maior muito Que outras  
[...] 
..................................................................... 
Sinto em mim que a minha alma não tolera  
Que seja alguém do que ela mais feliz; 
O riso insulta-me, por existir; 
Que eu sinto que não quero que alguém ria 
Enquanto eu não puder.  Se acaso tento 
Sentir, querer, só quero incoerências 
De indefinida aspiração imensa, 
Que mesmo no seu sonho é desmedida ... 
 

VII

tua inconsciência alegre é uma ofensa 
para    mim.  O seu riso esbofeteia-me! 
Tua alegria cospe-me na cara! 
Oh, com que ódio carnal e espiritual 
 escarro sobre o que na alma humana  
Fria festas e danças e cantigas... 
.................................................................... 
Com que alegria minha, cairia 
Um raio entre eles!  Com que pronto 
Criaria torturas para eles 
Só por rirem a vida em minha cara 
E atirarem à minha face pálida 
O seu gozo em viver, a poeira — que arda  
Em meus olhos — dos seus momentos ocos 
De infância adulta e tudo na alegria! 
..................................................................... 
Ó ódio, alegra-me tu sequer! 
Faze-me ver a Morte. roendo a todos,  
Põe-me ria vista os vermes trabalhando 
Aqueles corpos! [...] 
 

VIII

Triste horror d'alma, não evoco já 
Com grata saudade, tristemente, 
Estas recordações da juventude! 
Já não sinto saudades, como há pouco 
Inda as sentia.  Vai-se-me embotando, 
Co'a força de pensar, contínuo e árido, 
Toda a verdura e flor do pensamento. 
Ao recordar agora, apenas sinto, 
Como um cansaço só de ter vivido, 
Desconsolado e mudo sentimento 
De ter deixado atrás parte de mim, 
E saudade de não ter saudade, 
Saudades dos tempos em que as tinha. 
Se a minha infância agora evoco, vejo 
— Estranho! — como uma outra criatura 
Que me era amiga, numa vaga 
Objetivada subjetividade. 
Ora a infância me lembra, como um sonho, 
Ora a uma distância sem medida 
No tempo, desfazendo-me em espanto; 
E a sensação que sinto, ao perceber 
Que vou passando, já tem mais de horror 
Que tristeza [...] 
E nada evoca, a não ser o mistério 
Que o tempo tem fechado em sua mão. 
Mas a dor é maior! 
 

IX

Ó vestidas razões!  Dor que é vergonha 
E por vergonha de si-própria cala 
A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa 
Porca animalidade do animal, 
Que se diz metafísica por medo 
A saber-se só baixa ... 
..................................................................... 
Ó horror metafísico de ti! 
Sentido pelo instinto, não na mente! 
Vil metafísica do horror da carne, 
Medo do amor... 

Entre o teu corpo e o meu desejo dele 
'Stá o abismo de seres consciente; 
Pudesse-te eu amar sem que existisses 
E possuir-te sem que ali estivesses! 

Ah, que hábito recluso de pensar 
Tão desterra o animal que ousar não ouso 
O que a [besta mais vil] do mundo vil  
Obra por maquinismo. 

Tanto fechei à chave, aos olhos de outros, 
Quanto em mim é instinto, que não sei 
Com que gestos ou modos revelar 
Um só instinto meu a olhos que olhem ... 
..................................................................... 
Deus pessoal, deus gente, dos que crêem, 
Existe, para que eu te possa odiar! 
Quero alguém a quem possa a maldição 
Lançar da minha vida que morri, 
E não o vácuo só da noite muda 
Que me não ouve. 
 

X

O horror metafísico de Outrem! 
O pavor de uma consciência alheia  
Como um deus a espreitar-me! 
        Quem me dera 
Ser a única [cousa ou] animal  
Para não ter olhares sobre mim! 
 

XI

Um corpo humano! 
Às vezes eu, olhando o próprio corpo,  
Estremecia de terror ao vê-lo  
Assim na realidade, tão carnal. 
 

XII

................................................. Sinto horror  
À significação que olhos humanos 
Contém... 
..................................................................... 
                        Sinto preciso 
Ocultar o meu íntimo aos olhares 
E aos perscrutamentos que olhares mostram; 
Não quero que ninguém saiba o que sinto, 
Além de que o não posso a alguém dizer... 
 

XIII

Com que gesto de alma 
Dou o passo de mim até à posse 
Do corpo de outros, horrorosamente 
Vivo, consciente, atento a mim, tão ele 
Como eu sou eu. 
 

XIV

Não me concebo amando, nem dizendo 
A alguém "eu te amo" — sem que me conceba 
Com uma outra alma que não é a minha 
Toda a expansão e transfusão de vida 
Me horroriza, como a avaro a idéia 
De gastar e gastar inutilmente — 
Inda que no gastar se [extraia] gozo. 
 

XV

Quando se adoram, vividos, 
Dois seres juvenis e naturais 
Parece que harmonias se derramam  
Como perfumes pela terra em flor. 

Mas eu, ao conceber-me amando, sinto 
Como que um gargalhar hórrido e fundo 
Da existência em mim, como ridículo 
E desusado no que é natural. 

Nunca, senão pensando no amor, 
Me sinto tão longínquo e deslocado, 
Tão cheio de ódios contra o meu destino. — 
De raivas contra a essência do viver. 
 

XVI

Vendo passar amantes 
Nem propriamente inveja ou ódio sinto, 
Mas um rancor e uma aversão imensos 
Ao universo inteiro, por cobri-los. 
 

XVII

O amor causa-me horror; é abandono,  
Intimidade... 
... Não sei ser inconsciente  
E tenho para tudo [...] 
A consciência, o pensamento aberto  
Tornando-o impossível. 

E eu tenho do alto orgulho a timidez 
E sinto horror a abrir o ser a alguém, 
A confiar n’alguém.  Horror eu sinto 
A que perscrute alguém, ou levemente 
Ou não, quaisquer recantos do meu ser. 

Abandonar-me em braços nus e belos  
(Inda que deles o amor viesse)  
No conceber do todo me horroriza; 
Seria violar meu ser profundo, 
Aproximar-me muito de outros homens. 

Uma nudez qualquer — espírito ou corpo — 
Horroriza-me: acostumei-me cedo 
Nos despimentos do meu ser 
A fixar olhos pudicos, conscientes. 
Do mais. Pensar em dizer "amo-te" 
E "amo-te" só — só isto, me angustia... 
 

XVIII

[...] eu mesmo 
Sinto esse frio coração em mim  
Admirado de ser um coração 
Tão frio está. 
 

XIX

Seria doce amar, cingir a mim  
Um corpo de mulher, mais frio e grave 
e feito em tudo, transcendentalmente 
O pensamento agrada-me, e confrange-me 
Do terror de perto, e [junto] 
Em sensação ao meu, um outro corpo. 
Gelada mão misteriosa cai  
Sobre a imaginação [...] 
 

XX

É isto o amor?  Só isto? [...] 
..................................................................... 
Sinto ânsias, desejos, 
Mas não com meu ser todo.  Alguma cousa 
No íntimo meu, alguma cousa ali 
— Fria, pesada, muda — permanece. 

[P'ra] isto deixei eu a vida antiga  
Que já bem não concebo, parecendo 
Vaga já. 
Já não sinto a agonia muda e funda  
Mas uma, menos funda e dolorosa, 
[Bem] mais terrível raiva [...]  
De movimentos íntimos, desejos  
Que são como rancores. 

Um cansaço violento e desmedido 
De existir e sentir-me aqui, e um ódio 
Nascido disto, vago e horroroso, 
A tudo e todos... 
 

XXI

— Amo como o amor ama. 
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te. 
Que queres que te diga mais que te amo, 
Se o que quero dizer-te é que te amo? 
..................................................................... 
Quando te falo, dói-me que respondas 
Ao que te digo e não ao meu amor. 
..................................................................... 
Ah! não perguntes nada; antes me fala 
De tal maneira, que, se eu fora surda, 
Te ouvisse todo com o coração. 

Se te vejo não sei quem sou: eu amo. 
Se me faltas [...] 
... Mas tu fazes, amor, por me faltares 
Mesmo estando comigo, pois perguntas — 
Quando é amar que deves.  Se não amas, 
Mostra-te indiferente, ou não me queiras, 
Mas tu és como nunca ninguém foi, 
Pois procuras o amor pra não amar, 
E, se me buscas, é como se eu só fosse 
Alguém pra te falar de quem tu amas. 
..................................................................... 
Quando te vi amei-te já muito antes: 
Tornei a achar-te quando te encontrei. 
Nasci pra ti antes de haver o mundo. 
Não há cousa feliz ou hora alegre 
Que eu tenha tido pela vida fora, 
Que o não fosse porque te previa, 
Porque dormias nela tu futuro. 
..................................................................... 
E eu soube-o só depois, quando te vi, 
E tive para mim melhor sentido, 
E o meu passado foi como uma 'strada 
Iluminada pela frente, quando 
O carro com lanternas vira a curva 
Do caminho e já a noite é toda humana. 
..................................................................... 
Quando eu era pequena, sinto que eu 
Amava-te já longe, mas de longe... 
..................................................................... 
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta! 
— Compreendo-te tanto que não sinto, 
Oh coração exterior ao meu! 
Fatalidade, filha do destino 
E das leis que há no fundo deste mundo! 
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto 
De o sentir...? 
..................................................................... 
 

XXII

Pra que te falar?  Ninguém me irmana 
Os pensamentos na compreensão. 
Sou só por ser supremo, e tudo em mim 
É maior. 
 

XXIII

Reza por mim!  A mais não me enterneço. 
Só por mim mesmo sei enternecer-me, 
Soba a ilusão de amar e de sentir em que forçadamente me detive. 
Reza por mim, por mim! Eis a que chega 
A minha tentativa [em] querer amar. 
 

 
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