Frederico Barbosa

Frederico Barbosa - fred@s1.cb.gaepsp.br

Severina

Morte e Vida Severina

(1956)

Análise da Obra:

Frederico Barbosa

Literatura para a Fuvest 97 - Editora do Anglo Vestibulares

São Paulo, 1996

O Autor

Os poetas não têm biografia. Sua biografia é sua obra. Essas palavras do diplomata, poeta e crítico mexicano Octavio Paz ecoam no depoimento pessoal do poeta e diplomata brasileiro João Cabral de Melo Neto: Eu não tenho biografia. Minha biografia é: em tanto de tanto foi para tal lugar. Em tanto de tanto foi para tal lugar, essa é a biografia que tenho.

Nascido no dia 9 de janeiro de 1920 em Recife, Pernambuco, de tradicional família de senhores de engenho, João Cabral de Melo Neto passou a primeira infância em engenhos de cana-de-açúcar, entre "curumbas", indivíduos que descem do sertão à procura de trabalho nos engenhos, usinas e estradas, e "romances de barbante", os folhetos de cordel, que tanto o influenciariam, décadas depois, na composição de sua obra mais conhecida, Morte e Vida Severina. No poema "Descoberta da Literatura", integrante do livro A Escola das Facas (1980), João Cabral retoma o ambiente da sua infância:

"João Cabral de Melo Neto". Revista 34 Letras; Rio de Janeiro; março de 1989. p. 34

No dia-a-dia do engenho, toda a semana, durante, cochichavam-me em segredo: saiu um novo romance. E da feira do domingo me traziam conspirantes para que os lesse e explicasse um romance de barbante. Sentados na roda morta de um carro de boi, sem jante, ouviam o folheto guenzo , a seu leitor semelhante, com as peripécias de espanto preditas pelos feirantes. Embora as coisas contadas e todo o mirabolante, em nada ou pouco variassem nos crimes, no amor, nos lances, e soassem como sabidas de outros folhetos migrantes, a tensão era tão densa, subia tão alarmante, que o leitor que lia aquilo como puro alto-falante, e, sem querer, imantara todos ali, circunstantes, receava que confundissem o de perto com o distante, o ali com o espaço mágico, seu franzino com o gigante, e que o acabassem tomando pelo autor imaginante ou tivesse que afrontar as brabezas do brigante. (E acabaria, não fossem contar tudo à Casa-grande: na moita morta do engenho, um filho-engenho, perante cassacos do eito e de tudo, se estava dando ao desplante de ler letra analfabeta de curumba, no caçanje próprio dos cegos de feira, muitas vezes meliantes. )

Muito magro; adoentado; fraco; inseguro.

Trabalhador de engenhos de açúcar.

Trabalho com enxadas em plantação, roça.

Português mal falado ou mal escrito.

O menino "semelhante" (embora superior, por ser alfabetizado) aos trabalhadores analfabetos do eito, que é repreendido pela família aristocrática por ler com (e para) os cassacos os folhetos de cordel, transfere-se aos 10 anos de idade para Recife, onde joga futebol no Santa Cruz Futebol Clube, torna-se um dos poucos fanáticos torcedores do América de Recife, e cursa o primário no Colégio Marista. No livro Agrestes (1985), o poeta ateu - que afirmara em "Antiode" (1947): Poesia, te escrevo / agora: fezes, as / fezes vivas que és. - recorda com acidez o atraso moralista da educação religiosa marista, associando-o à falta de higiene nos banheiros do colégio, no poema "As Latrinas do Colégio Marista do Recife":

Nos Colégios Marista (Recife), se a ciência parou na Escolástica, a malvada estrutura da carne era ensinada em todas as aulas, com os vários creosotos morais com que lavar gestos, olhos, língua; à alma davam a água sanitária que nunca usavam nas latrinas. Lavar, na teologia marista, é coisa da alma, o corpo é do diabo; a castidade dispensa a higiene do corpo, e de onde ir defecá-lo.

A partir dos dezessete anos, João Cabral de Melo Neto emprega-se no serviço público. Ocupa, entre 1937 e 1945, diversos cargos burocráticos em órgãos públicos, inicialmente em Recife e, a partir de 1943, no Rio de Janeiro, então Capital Federal. Data deste período a sua iniciação literária. Conhece, no Recife, Willy Lewin, intelectual que, segundo Cabral, teria tanta importância na sua formação intelectual quanto um curso universitário. Publica, em 1942, seu primeiro livro de poemas, Pedra do Sono, de nítida influência surrealista, mas que já apresentava, como o percebeu o crítico Antonio Candido em resenha da época, um rigor construtivo herdado do cubismo. Conhece, a partir de 1940, no Rio de Janeiro, alguns dos mais importantes poetas brasileiros da geração de 30, como Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, a quem já dedicara o seu primeiro livro e dedicaria o seu livro seguinte, O Engenheiro (1945). Em carta a Drummond, datada de 29 de setembro de 1943, João Cabral expõe seus sentimentos em relação ao serviço burocrático. Este poema, que não trazia título, ficou inédito por 53 anos, até ser publicado recentemente:

João Cabral de Melo Neto: Cadernos de Literatura Brasileira, Número 1; São Paulo; Instituto

Moreira Salles; Março de 1996. pp. 60 e 61.

Difícil ser funcionário Nesta segunda-feira. Eu te telefono, Carlos, Pedindo conselho. Não é lá fora o dia Que me deixa assim, Cinemas, avenidas E outros não-fazeres. É a dor das coisas, O luto desta mesa; É o regimento proibindo Assovios, versos, flores. Eu nunca suspeitara Tanta roupa preta; Tão pouco essas palavras Funcionárias, sem amor. Carlos, há uma máquina Que nunca escreve cartas; Há uma garrafa de tinta Que nunca bebeu álcool. E os arquivos, Carlos, As caixas de papéis: Túmulos para todos Os tamanhos de meu corpo. Não me sinto correto De gravata de cor, E na cabeça uma moça Em forma de lembrança. Não encontro a palavra Que diga a esses móveis, Se os pudesse encarar... Fazer seu nojo meu... Carlos, dessa náusea Como colher a flor? Eu te telefono, Carlos, Pedindo conselho.

Manuscrito em papel timbrado do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), órgão da Presidência da República em que trabalhava o poeta pernambucano, o poema deixa clara a influência de Drummond, autor de "A Flor e a Náusea" e também funcionário público, sobre o jovem João Cabral. Além de ter-lhe dedicado seus dois primeiros livros, João Cabral de Melo Neto também publicou, na Revista do Brasil, em 1943, a peça em prosa poética Os Três Mal-Amados, até hoje não encenada, que toma como mote o conhecido poema "Quadrilha", de Drummond.

O anos de 1945-46 serão decisivos para o poeta e para o homem. Em 1945, sob grande influência do poeta e engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo, publica O Engenheiro, livro em que apresenta os princípios da poesia do rigor, da clareza e da objetividade que marcariam toda a sua obra. Passaria, então, a ser conhecido como o "poeta-engenheiro", embora estivesse longe de abraçar tal profissão. Influenciado pelas idéias do arquiteto Le Corbusier, cujas palavras relacionadas à arquitetura, "...machine à émouvoir..." ("máquina de comover"), estampa como epígrafe do livro, e que, como bem o lembrou João Alexandre Barbosa , são correlatas à definição de poesia dada por Paul Valéry como "machine du language" ("máquina da linguagem"), João Cabral de Melo Neto busca, a partir de então, uma poesia que não deixa de emocionar ou revelar o sonho, mas o faz com o equilíbrio e o rigor matemático e construtivo da engenharia:

A luz, o sol, o ar livre envolvem o sonho do engenheiro. O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água. O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número: o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre.

É uma poesia que nenhum véu encobre, uma poesia das coisas concretas, do substantivo, que o poeta vai perseguir a partir de agora, tornando-se, assim, o mais rigoroso e exigente dos poetas da nossa literatura.

No final de 1945, João Cabral é aprovado em concurso para a carreira diplomática. Trabalha no Itamarati durante o ano de 1946, quando se casa com Stella Maria Barbosa de Oliveira e tem o primeiro dos seus cinco filhos, Rodrigo. Começa, a partir de 1947, a perambular pelo mundo, ocupando diversos postos na carreira diplomática.

De início, serve em Barcelona, onde conhece o pintor Miró, sobre o qual escreve um dos seus raros ensaios críticos e onde monta uma tipografia artesanal, O Livro Inconsútil, através da qual publica, além de vários livros de poetas brasileiros - como Manuel Bandeira - e espanhóis, seus livros Psicologia da composição (1947) e O Cão sem Plumas (1950). O primeiro, segundo João Cabral, um "livro teórico", volta-se inteiramente para a metalinguagem; enquanto o segundo já prenuncia o olhar do poeta que se volta para sua Recife natal, em especial o rio Capibaribe que a corta.

Em 1950 é removido para Londres, onde fica até 1952, quando é afastado da diplomacia, acusado de subversão e comunismo. Retorna ao Brasil para responder ao processo. Absolvido, permanece no país até 1956. Durante estes anos de "exílio interno", Cabral acrescenta à sua poética um componente novo: a preocupação social. Em poemas mais "comunicativos", mais "fáceis", como O Rio, escrito em 1953 e vencedor do Prêmio do IV Centenário de São Paulo (1954) e Morte e Vida Severina, escrito em 1954/55 e publicado na coletânea Duas Águas, de 1956, João Cabral de Melo Neto apresenta uma poesia mais narrativa, popular e voltada para os problemas sociais do Nordeste, mais especificamente de seu estado natal, Pernambuco.

Voltando à ativa no exterior a partir de 1956, tem uma carreira diplomática brilhante, servindo como cônsul-geral ou embaixador do Brasil em diversos locais, como Marselha, Genebra, Berna, Dacar, Quito, Honduras, Porto, etc. Aposenta-se em 1990 como embaixador, mesmo ano em que recebe o maior prêmio literário da língua portuguesa, o Prêmio Luís de Camões.

De todos os países em que João Cabral trabalhou, certamente aquele que deixou influências mais profundas na sua poesia foi a Espanha. Servindo diversas vezes em Barcelona, apaixonou-se pela poesia espanhola e catalã. Mas seria a cidade de Sevilha, na Andaluzia, onde também morou mais de uma vez, que deixaria marcas profundas no poeta recifense. No poema "Autocrítica", de A Escola das Facas (1980), o poeta revela seu débito à cidade espanhola, apontando-a como co-responsável, juntamente com Pernambuco, por sua "inspiração" poética:

Só duas coisas conseguiram (des)feri-lo até a poesia: o Pernambuco de onde veio e o aonde foi, a Andaluzia. Um, o vacinou do falar rico e deu-lhe a outra, fêmea e viva, desafio demente: em verso dar a ver Sertão e Sevilha.

Em livros como Dois Parlamentos (1960), Quaderna (1960), Serial (1961), A Educação pela pedra (1966), Museu de Tudo (1975), A Escola das Facas (1980), Auto do frade (1984), Agrestes (1985), Crime na Calle Relator (1987), Sevilha Andando (1990) e Andando Sevilha (1994), o poeta foi abordando os temas mais diversos, como a própria poesia, a pintura, o futebol, suas memórias, a morte, a memória do Recife na morte de Frei Caneca, suas viagens, a sensualidade das sevilhanas, o sertão, etc. Sempre tendo a feminina e gentil Espanha - Sevilha à frente - e o masculino e árido Pernambuco para dar o tom na poesia rigorosa, consistente e ímpar que o "poeta-engenheiro" vem construindo da década de 60 até hoje.

O Rigor das Coisas

A metalinguagem é um dos elementos mais importantes na poética de João Cabral de Melo Neto. Poucos poetas na literatura brasileira preocuparam-se tanto em expor uma teoria da poesia através de sua obra. João Cabral insiste em dizer, em inúmeras entrevistas, que originalmente queria ser crítico literário, mas, julgando-se despreparado para tanto, começou a escrever poesia.

Já vimos que, a partir de O Engenheiro (1945), Cabral opta por enveredar por um fazer poético estruturado por um rigor quase matemático. Para evitar uma poesia vaga, cuja ambigüidade se possa confundir com falta de clareza, o poeta opta por uma poesia feita primordialmente através da articulação de termos concretos, substantivos ou mesmo adjetivos e verbos "concretos". Sim, porque adjetivos e verbos admitem essa categoria. Por exemplo: o adjetivo sublime é abstrato, como tristeza. Maçã é tão concreto quanto o adjetivo torto. A literatura espanhola usa preponderantemente o concreto, e por isso me interessou. As literaturas primitivas me interessam. Parece que a linguagem começou pelas palavras concretas. O poeta apresenta essa sua teoria da poesia no poema "Falar com coisas", de Agrestes (1985):

As coisas, por detrás de nós, exigem: falemos com elas, mesmo quando nosso discurso não consiga ser falar delas. Dizem: falar sem coisas é comprar o que seja sem moeda: é sem fundos, falar com cheques, em líquida, informe diarréia.

Essa preocupação em evitar a "diarréia" poética aparece também no poema "O Ferrageiro de Carmona" do livro Crime na Calle Relator (1987). Através do relato de uma conversa com um ferrageiro da cidade espanhola de Carmona, João Cabral expõe algumas das principais preocupações de seu fazer poético: a contenção e, acima de tudo, o esforço que a poesia requer:

Um ferrageiro de Carmona que me informava de um balcão: "Aquilo? É ferro fundido, foi a fôrma que fez, não a mão. Só trabalho com ferro forjado que é quando se trabalha ferro; então, corpo a corpo com ele, domo-o, dobro-o, até o onde quero. O ferro fundido é sem luta, é só derramá-lo na fôrma. Não há nele a queda-de-braço e o cara-a-cara de uma forja. Existe grande diferença do ferro forjado ao fundido; é uma distância tão enorme que não pode medir-se a gritos. Conhece a Giralda em Sevilha? De certo subiu lá em cima. Reparou nas flores de ferro dos quatro jarros das esquinas? Pois aquilo é ferro forjado. Flores criadas em outra língua. Nada têm das flores de fôrma moldadas pelas das campinas. Dou-lhe aqui humilde receita, ao senhor que dizem ser poeta: o ferro não deve fundir-se nem deve a voz ter diarréia. Forjar: domar o ferro à força, não até uma flor já sabida, mas ao que parece ser flor se flor parece a quem o diga."

Podemos ler o conselho dado pelo ferrageiro ao poeta como uma profissão de fé do próprio João Cabral de Melo Neto. Trabalhar com o ferro forjado é criar e enfrentar dificuldades no fazer artístico. Para João Cabral, o poema deve ser sempre trabalhado com esforço e suor, deve surgir como fruto do trabalho intenso e não de uma inspiração fugaz e enganadora, da facilidade.

Neste sentido é que o autor de Morte e Vida Severina procura utilizar sempre tanto da métrica -- com maior freqüência o verso octossílabo -- e da rima -- principalmente a rima toante, apenas entre vogais -- para impor a si próprio uma disciplina rigorosa através da dificuldade. Deixemos que o poeta explique esse processo:

Eu acho que o verso livre já foi longe demais, há uma necessidade de se voltar a uma certa disciplina. (...) Em primeiro lugar, eu procuro escrever com o máximo de consciência, de cerebralismo, o nome que vocês quiserem dar. Muito bem, então eu procuro me criar dificuldades. Você metrificar, sobretudo para um sujeito que não tem ouvido como eu, é uma tarefa bastante difícil. Você, no Brasil, preponderantemente, ou escreve no verso de sete sílabas, que é o verso popular tradicional ibérico, ou então escreve em decassílabos, que é o negócio de Camões. Repare Manuel Bandeira ou Carlos Drummond, todos eles caíam no decassílabo. Vinícius foi um dos poucos que fez a ficção dele de intimidade que não é em decassílabo. De forma que você vê que a partir de Cão sem Plumas, que é um livro que eu escrevi aos trinta anos, praticamente eu não escrevi mais verso livre. O Rio, que aparentemente é verso livre, eu mostro a vocês aqui qual é a metrificação dele. Toda a minha poesia é metrificada. É o negócio que Frost diz: escrever em verso livre é como jogar tênis sem rede. De forma que eu procuro me criar dificuldades. Eu tenho alguns poemas em sete sílabas. Esse é o verso que é fácil para nós. De forma que eu vou usar o verso de oito sílabas, tenho a impressão de que a maioria dos meus versos é escrito em oito sílabas. No Brasil, em geral, quando se usa o verso de oito sílabas, se usa sempre com a cesura na mesma sílaba, de forma que a coisa fica cantante. Se você usar o verso de oito sílabas sem uma obrigação de uma cesura interna, você então dá uma aparência de que está escrevendo em verso livre e ao mesmo tempo você se cria uma dificuldade a vencer, que é uma coisa de que eu preciso. Agora a rima. Eu sou um sujeito estragado pelo que me davam no colégio para ler. Eu acho a rima o troço mais chato do mundo, e o decassílabo um negócio sinistro. De forma que eu procuro escrever um tipo de verso que pareça verso livre, mas que me dá uma grande dificuldade para escrever. Claro, um verso metrificado pelo meu ouvido. Talvez pelo fato de eu não ter ouvido, eu pense que estou escrevendo rigorosamente metrificado e na verdade estou escrevendo em verso livre sem saber. Muitas vezes eu uso a rima toante, e o espanhol, por exemplo, sente imediatamente a rima toante. Eu uso essas duas coisas porque o verso de oito sílabas que eu uso com uma acentuação irregular interna dá a impressão de prosa. E a rima toante, como eu sei que ela não soa no ouvido do brasileiro, dá a impressão de que o poema não é rimado.

João Cabral se refere, no trecho acima, ao fato de não ter ouvido, ou seja, de apresentar uma inaptidão para a música. Chegou mesmo a afirmar diversas vezes que não gosta de música ou mesmo de ouvir palestras ou leituras de poemas. O fragmento mostra, no entanto, como, através do esforço consciente, procura conferir uma musicalidade sutil e refinada à sua poesia. Essa musicalidade ímpar, tão presente em Morte e Vida Severina, rendeu-lhe de um dos maiores compositores de nossa música popular, Caetano Veloso, na canção Outro Retrato, do disco Estrangeiro (1989), a seguinte homenagem: Minha música vem da música da poesia de um poeta João / que não gosta de música.

As Duas Águas

Outra faceta importante da poética de João Cabral de Melo Neto é a divisão que fez para sua obra quando da publicação da coletânea Duas Águas - Poemas Reunidos, em 1956. Este volume reunia todos os poemas de João Cabral até aquele momento. Aos livros Pedra do Sono, O Engenheiro, Psicologia da Composição e O Cão sem Plumas foram adicionados os inéditos Paisagens com Figuras e Uma Faca Só Lâmina para formar a "Primeira Água" do livro. À peça Os Três Mal-Amados e ao monólogo O Rio, foi acrescentado o inédito Morte e Vida Severina, formando, assim a "Segunda Água" do livro.

O termo "água" se refere às superfícies planas que constituem um telhado; água de telhado: telhado de uma água. E aponta para uma divisão na obra de João Cabral entre uma forma de poesia mais rigorosa, mais cerebral e de público mais intelectualizado e restrito -- a da Primeira Água; e outra forma poética voltada para um auditório mais amplo, uma poesia mais relaxada, mais popular, mais oral e dramática -- a da Segunda Água.

Dois anos antes, em 1954, João Cabral de Melo Neto havia exposto uma tese no Congresso Internacional de Escritores, em São Paulo, intitulada Da Função Moderna da Poesia, em que aborda exatamente a questão da incomunicabilidade reinante na poesia contemporânea, a dificuldade dos poetas modernos em atingir um público mais amplo para seus textos. Vejamos:

A poesia moderna - captação da realidade objetiva moderna e dos estados de espírito do homem moderno - continuou a ser servida em invólucros perfeitamente anacrônicos e, em geral imprestáveis, nas novas condições que se impuseram.

Mas todo esse progresso realizado limitou-se aos materiais do poema: essas pesquisas limitaram-se a multiplicar os recursos de que se pode valer um poeta para registrar sua expressão pessoal; limitaram-se àquela primeira metade do ato de escrever, no decorrer da qual o poeta luta por dizer com precisão o que deseja; isto é, tiveram apenas em conta consumar a expressão, sem cuidar da sua contraparte orgânica - a comunicação. (...)

O caso do rádio é típico. O poeta moderno ficou inteiramente indiferente a esse poderoso meio de difusão. À exceção de um ou outro exemplo de poema escrito para ser irradiado, levando em conta as limitações e explorando as potencialidades do novo meio de comunicação, as relações da poesia moderna com o rádio se limitam à leitura episódica de obras escritas originariamente para serem lidas em livro, com absoluto insucesso, sempre, pelo muito que diverge a palavra transmitida pela audição da palavra transmitida pela visão. (O que acontece com o rádio, ocorre também com o cinema e a televisão e as audiências em geral).

Mas os poetas não desprezaram apenas os novos meios de comunicação postos a seu dispor pela técnica moderna. Também não souberam adaptar às condições da vida moderna os gêneros capazes de serem aproveitados. Deixaram-nos cair em desuso (a poesia narrativa, por exemplo, ou as aucas catalãs, antepassadas das histórias de quadrinhos), ou deixaram que se degradassem em gêneros não poéticos, a exemplo da anedota moderna, herdeira da fábula. Ou expulsaram-nos da categoria de boa literatura, como aconteceu com as letras das canções populares ou com a poesia satírica.

No plano dos tipos problemáticos, tudo o que os poetas contemporâneos obtiveram, foi o chamado "poema" moderno, esse híbrido de monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para qualquer espécie de mensagem que o seu autor pretenda enviar. Mas esse tipo de poema não foi obtido através de nenhuma consideração acerca de sua possível função social de comunicação. O poeta contemporâneo chegou a ele passivamente, por inércia, simplesmente por não ter cogitado do assunto. Esse tipo de poema é a própria ausência de construção e organização, é o simples acúmulo de material poético, rico, é verdade, em seu tratamento do verso, da imagem e da palavra, mas atirado desordenadamente numa caixa de depósito.

Duas são, portanto, as saídas para o poeta: fazer um poema moderno que não seja apenas a própria ausência de construção e organização, o simples acúmulo de material poético, e buscar novas formas de comunicação com o público leitor. Buscar, portanto, a comunicação da Segunda Água sem, no entanto, abandonar o rigor construtivo da Primeira. Foi o crítico Benedito Nunes quem melhor sintetizou as relações das Duas Águas cabralinas com sua preocupação com a comunicação:

É precisamente sob o aspecto de comunicação, problema que tanto preocupa João Cabral, (...), que a diferença entre as "duas águas" pode ser estabelecida. Não é a quantidade de informação nem as qualidades formativas da poesia que estão em jogo na "segunda água", mas o aumento do volume e da área de sua comunicabilidade. Temos assim, em vez de duas espécies de poesias, dois tipos de dicção que se distinguem em função do destinatário e da modalidade de consumo do texto.

Quanto mais construída for a poesia, mais dependente se torna, como na "primeira água", do mecanismo da linguagem escrita, e a sua comunicação, tendo por base a realidade factual do texto, solicita a leitura silenciosa e múltipla de um receptor individual.

Quanto menor for o grau de construção, maior será a altura da dicção poética, que se sobrepõe à linguagem escrita, recebendo o texto, nesse caso, que é o da "segunda água", um suprimento de oralidade, que avoluma o seu poder de comunicação e facilita a sua difusão, de modo a alcançar um receptor coletivo e a ser consumido coletivamente.

Em 1966, João Cabral de Melo Neto haveria de reunir os poemas da sua "Segunda Água", acrescidos de outros, na coletânea Morte e Vida Severina e Outros Poemas em Voz Alta, reforçando as palavras de Benedito Nunes. Posteriormente, esta coletânea seria acrescida pelo Auto do Frade, poema dramático publicado em 1984.

A "água" da comunicabilidade com o público deságua no "poema em voz alta" que tende irreversivelmente para a poesia dramática.

Curioso, e não coincidente, é o fato de que alguns dos maiores poetas do século XX, como T. S. Eliot - em 1935 com a peça Murder in the Cathedral -, Gertrude Stein - em 1934 com a peça/ópera Four Saints in Three Acts -, Federico Garcia Lorca - em 1933 com a peça Bodas de Sangre -, Samuel Beckett - em 1953 com a peça Esperando Godot -, encontraram exatamente na "poesia em voz alta" do teatro o veículo para estabelecer uma maior comunicação com o público, alcançando um sucesso que suas obras poéticas por si só - por melhor que fossem, e eram - jamais conseguiram ou poderiam sonhar obter.

O mesmo se deu com João Cabral de Melo Neto. Assim como Eliot, Stein, Beckett, Lorca, Genet e tantos outros, João Cabral encontrou no teatro uma ponte através da qual sua poesia pôde estabelecer contato com o público que, sem o suporte da ação dramática, permaneceria distante, intocado. Foi exatamente através de Morte e Vida Severina que o poeta pernambucano encontrou um veículo capaz de superar o abismo que, segundo ele, separa hoje em dia o poeta de seu leitor.

Gênese e Influências

Ninguém melhor do que o próprio autor para nos relatar o processo de criação de uma obra. Deixemos, então, que João Cabral de Melo Neto nos explique a gênese de sua peça:

Meu primeiro poema foi publicado em 1942 no Recife, mas não tinha nada a ver com a cidade. Era de influência surrealista. Tenho 180 poemas escritos sobre Pernambuco - a maioria deles sobre o Recife e seu Rio Capibaribe. E escreveria outros tantos se pudesse. A veia inspiradora do Recife não morre, porque a cidade continua a existir. Persiste a atmosfera de miséria que inspirou, por exemplo, O Cão Sem Plumas, de 1950, ou Morte e Vida Severina, de 1954. Sempre escrevi poemas sobre o Recife longe da cidade. Eu não precisava estar lá para recriar o universo sobre o qual falo em meus poemas. Não acabaram as favelas nem as populações ribeirinhas do Capibaribe, que conheci na minha adolescência andando pelos mangues perto de casa, na Jaqueira. Algumas pessoas chegaram a me perguntar se eu tinha me inspirado em Josué de Castro e sua Geografia da Fome na hora de escrever esses dois poemas. Conheci, admiro e respeito Josué de Castro, que foi meu chefe em Genebra. Mas não me inspirei nele. Fiz poesia e emoção sobre aquela realidade miserável do Recife. Ele fez ciência. Essa é a diferença entre nós.

A história desses dois poemas é bem simples. Eu era cônsul-geral do Brasil em Barcelona quando li numa revista que a média de vida na Índia era de 29 anos. Isso significava um ano a mais que os 28 anos de perspectiva de vida do recifense. Fiquei absolutamente estupefato com esse dado estatístico. Comecei a lembrar do Recife de minha infância. Durante certo tempo morei numa casa da Praça do Carmo, em Olinda. Morava lá e estudava no Colégio Marista do Recife. Ia e voltava do colégio num bonde. Esse bonde saía do centro da cidade, passava pelo Mercado de Santo Amaro, pelo Cemitério dos Ingleses, e tomava a Estrada de Luiz do Rego, onde hoje é o Complexo de Salgadinho e a Escola Naval. Pois bem, tudo aquilo era favela e mangue. O bonde passava por dentro da favela e eu assistia à miséria. Fui lembrando disso, revendo essas imagens na memória e cheguei à conclusão que a beleza do Recife contrastava com a sua pobreza comparável à de Bangladesh. E fui recriando a atmosfera miserável para escrever O Cão Sem Plumas. Eu brincava com aqueles miseráveis que só viveriam em média 28 anos! E as senhoras da sociedade pernambucana faziam crochê para doar aos mortos de fome da Índia, sem olhar para o quintal delas. Foi isso que me chocou e que me levou a escrever esse poema, o primeiro sobre o Recife. Tinha escrito três anos antes Psicologia da Composição, um livro teórico, e achava que minha produção literária estava encerrada. Na verdade, apenas começava.

Fui então para Londres e trabalhei como nunca. Não dava tempo para escrever. Em 1952 alguns idiotas denunciaram a mim e a outros diplomatas como militantes comunistas. Fomos afastados do Serviço diplomático e eu voltei ao Recife por quase dois anos. Fui trabalhar no escritório do meu pai e tentar sustentar a família enquanto processava o governo. Aí cruzei com Maria Clara Machado, filha do meu bom amigo mineiro Aníbal Machado. Ela me encomendou um Auto de Natal para encenar. Escrevi Morte e Vida Severina. Ela leu e devolveu. Disse que não servia. Como o poema era grande e José Olympio queria lançar minha primeira antologia, cortei as marcações para o teatro e incluí Morte e Vida Severina no livro, para dar volume. Foi uma surpresa quando encontrei com Vinicius de Moraes no Rio e ele me disse: "Joãozinho, estou maravilhado com Morte e Vida Severina". Aí eu não entendi nada. "Vinicius, eu não escrevi Morte e Vida Severina para intelectuais como você, respondi. "Escrevi para os sujeitos analfabetos que ouvem cordel na feira de Santo Amaro, no Recife." O poema é simples, retrata a típica realidade do pernambucano que foge da seca em busca do Recife e termina morando numa favela ribeirinha. Foi um sucesso mundial. Isso me orgulha, mas também me surpreende porque Morte e Vida Severina passou a ser coisa de eruditos.

O que me chateou muito também a respeito do sucesso mundial de Morte e Vida Severina foi que a burrice nacional brasileira começou a fazer inferências políticas sobre o poema. Muita gente queria que depois de cada espetáculo eu subisse ao palco e gritasse "Viva a Reforma Agrária". Recusei-me a fazer isto. Não faço teorias para consertar o Brasil, mas não me abstenho de retratar em poesia o que vejo e sinto. Eu mostrei a miséria que havia no Nordeste. Cabia aos políticos cumprirem seu papel. Essas exigências de engajamento político me irritaram muito. Ainda bem que logo depois fui para Sevilha, Genebra, Assunção e fiquei muito tempo longe do Brasil. Foi o tempo necessário para que parassem de achar que eu deveria fazer arte engajada em vez de poesia pura.

Morte e Vida Severina foi, portanto, escrito em 1954/55, por encomenda de Maria Clara Machado, então diretora do grupo O Tablado, que já havia levado ao palco, no ano de 1953, em tradução de João Cabral de Melo Neto, a peça A Sapateira Prodigiosa do poeta espanhol Federico Garcia Lorca. O escritor mineiro Aníbal Machado, escrevendo o texto de apresentação no programa da montagem brasileira da peça de Lorca, disse que ninguém melhor do que João Cabral de Melo Neto estaria indicado para a versão brasileira da Sapateira Prodigiosa. Não pela circunstância de ter ele vivido longos anos na Espanha; mas pelo fato de haver penetrado como poeta, e como poeta sentido a Espanha na intimidade de suas raízes e na surpreendente riqueza humana de seu povo.(...) Essa "farsa violenta", como lhe chamou o próprio Lorca, não podia encontrar quem melhor lhe assegurasse, na tradução, o timbre colorido, a naturalidade e o ritmo do original. Trata-se da obra de um grande poeta, conduzida pela mão de outro à surpresa e emoções de uma platéia de língua portuguesa.

Se pensarmos na importância que teve para a composição de Morte e Vida Severina o conhecimento de João Cabral da literatura espanhola, as palavras de Aníbal Machado soam proféticas.

É ainda o próprio autor quem nos explica o material poético utilizado por ele na construção de Morte e Vida Severina:

Esse texto não poderia ser mais denso. Era obra para teatro, encomendada por Maria Clara Machado. Foi a coisa mais relaxada que escrevi. Pesquisei num livro sobre o folclore pernambucano, publicado no início do século, de autoria de Pereira da Costa. Eu era consciente de que não tinha tendência para o teatro, não sabia criar diálogos no sentido da polêmica. Meus diálogos vão sempre na mesma direção, são paralelos. Observe o episódio das pessoas defronte do cadáver: todos trazem uma imagem para a mesma coisa. A cena do nascimento, com outras palavras, está em Pereira da Costa. "Compadre, que na relva está deitado" é transposição deste folclorista, pois no Capibaribe há lama, e não grama. "Todo céu e terra lhe cantam louvor" também é literal do antigo pastoril pernambucano. O louvor das belezas do recém-nascido e os presentes que ganha existem no pastoril. As duas ciganas estão em Pereira da Costa, mas uma era otimista e a outra pessimista. Eu só alterei as belezas e os presentes, e pus as duas ciganas pessimistas. Com Morte e Vida Severina, quis prestar uma homenagem a todas as literaturas ibéricas. Os monólogos do retirante provêm do romance castelhano. A cena do enterro na rede é do folclore catalão. O encontro com os cantores de incelências é típico do Nordeste. Não me lembro se a mulher da janela é de origem galega ou se está em Pereira da Costa. A conversa com Severino antes de o menino nascer obedece ao modelo da tenção galega.

Além deste material poético, seja da antiga poesia ibérica, seja do folclore pernambucano, outra influência clara na concepção do livro é o Regionalismo de 30. As preocupações de escritores como José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, que se voltaram criticamente para a dura realidade sertaneja antes de João Cabral de Melo Neto, acham-se sintetizadas poeticamente em Morte e Vida Severina.

O romance inaugural do regionalismo neo-realista de 30, A Bagaceira, de 1928, de José Américo de Almeida, narrado na terceira pessoa, por um narrador observador onisciente, apresenta um trabalho de linguagem muito rico. O narrador utiliza-se de uma linguagem erudita, de acordo com a norma culta da língua portuguesa. Já as falas das personagens procuram reproduzir o falar sertanejo, alcançando, por vezes, efeitos de poeticidade próximos àqueles alcançados, na década seguinte, por João Guimarães Rosa. A dicotomia entre a linguagem refinada do narrador e a brutalidade da linguagem das personagens cria uma tensão lingüística que é um dos aspectos mais salientes e importantes do romance.

O próprio Guimarães Rosa afirmava que José Américo de Almeida "abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro". Sem dúvida, muito do que um Graciliano Ramos ou um José Lins do Rego iriam tematizar, de maneira mais contundente, já está presente em A Bagaceira - a miséria do sertão; a brutalização do ser humano nordestino; as relações entre os senhores de engenho e os seus empregados; os conflitos de gerações; o ser humano e os animais apresentados como o Severino de João Cabral de Melo Neto, como sócios da fome.

O romance se abre com um prefácio/manifesto, intitulado "Antes que me falem", em que José Américo expõe alguns dos princípios básicos que haveriam de nortear, não apenas a composição da sua obra, mas também de todo o Regionalismo de 30. Vejamos um fragmento:

O regionalismo é o pé-de-fogo da literatura... Mas a dor é universal, porque é uma expressão da humanidade. E nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos despercebidos.

O que João Cabral de Melo Neto conseguiu com Morte e Vida Severina foi exatamente colocar uma inteligência mais requintada a serviço do regionalismo, revelando para o mundo aspectos despercebidos da realidade nordestina e brasileira. Em outras palavras, realizou o sonho de José Américo de Almeida.

Outra obra com a qual Morte e Vida Severina dialoga diretamente é o romance O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz. O sucesso que rapidamente alcançou em todo o país esta obra de uma então jovem cearense de 20 anos fez com que O Quinze fosse uma das obras fundamentais na divulgação do regionalismo de 30. Escrito em linguagem bem mais direta e simples do que o romance de José Américo de Almeida, a obra de estréia de Rachel de Queiroz usa a seca de 1915, no Ceará, como pano de fundo para revelar o sofrimento e as angústias tanto dos miseráveis, quanto dos proprietários rurais.

Narrado na terceira pessoa, utilizando da onisciência, o romance apresenta dois núcleos dramáticos que se cruzam: a odisséia de Chico Bento, vaqueiro pobre e desempregado, e sua família, fugindo da seca rumo a Fortaleza, e os desencontros amorosos entre a professora Conceição e o seu primo e quase namorado, o pecuarista Vicente. Conceição leva sua avó, Inácia, da fazenda onde mora, em Quixadá, para ficar em Fortaleza enquanto perdurar a seca. Na capital, a professora, solteirona (aos 22 anos!), ajuda os miseráveis reunidos no Campo de Concentração e pensa no seu primo Vicente que permanece em Quixadá, cuidando bravamente da fazenda da família. Divididos tanto no espaço, quanto por interesses diversos e intrigas várias, os primos, incapazes de se comunicar, vão, mesmo se amando, separando-se a cada dia mais. Enquanto isso, a distância entre Quixadá e Fortaleza vai sendo coberta, a pé, sob o sol escaldante, sem água e sem comida, por Chico Bento, sua mulher Cordulina, sua cunhada Mocinha e seus cinco filhos. Mocinha fica pelo meio do caminho e acaba "caindo na vida", o filho mais velho morre envenenado, outro foge e se perde para sempre. A família, já bem reduzida, acaba por chegar ao Campo de Concentração em Fortaleza, onde é acolhida por Conceição, que fica com o filho mais novo e consegue passagens para os restantes irem tentar uma sorte melhor em São Paulo. Com o fim da seca, Conceição vai visitar Quixadá, sentindo-se "estéril, inútil, só". Encontra-se com Vicente, também solitário, mas a comunicação entre os dois já se tornara impossível. "E Conceição o viu sumir-se no nevoeiro dourado da noite, passando a galope, como um fantasma, por entre o vulto sombrio dos serrotes."

Sem dúvida alguma podemos considerar Chico Bento e sua família como precursores diretos de Severino, o retirante que procura, através de sua odisséia esfomeada, chegar à capital e a uma vida melhor.

Mas é Graciliano Ramos o escritor regionalista de 30 a quem João Cabral de Melo Neto reconhecidamente admira e dedica um comovido poema no livro Serial (1961), em que a voz em primeira pessoa de Graciliano, marcada pelos dois pontos incomuns do título, confunde-se com a sua própria voz:

Graciliano Ramos:

Falo somente com o que falo: com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol que as limpa do que não é faca: de toda uma crosta viscosa, resto de janta abaianada, que fica na lâmina e cega seu gosto da cicatriz clara. * * * Falo somente do que falo: do seco e de suas paisagens, Nordestes, debaixo de um sol ali do mais quente vinagre: que reduz tudo ao espinhaço, cresta o simplesmente folhagem, folha prolixa, folharada, onde possa esconder-se na fraude. * * * Falo somente por quem falo: por quem existe nesses climas condicionados pelo sol, pelo gavião e outras rapinas: e onde estão os solos inertes de tantas condições caatinga em que só cabe cultivar o que é sinônimo da míngua. * * * Falo somente para quem falo: quem padece sono de morto e precisa um despertador acre, como o sol sobre o olho: que é quando o sol é estridente, a contrapelo, imperioso, e bate nas pálpebras como se bate numa porta a socos.

O poema de João Cabral apresenta não apenas uma interpretação da obra de Graciliano Ramos, mas aponta exatamente para os locais de encontro entre sua própria obra, em especial Morte e Vida Severina, e as do maior dos regionalistas de 30. Falo somente com o que falo: a linguagem enxuta, cortante e densa. Falo somente do que falo: a vida seca, áspera e clara do sertão. Falo somente por quem falo: o homem sertanejo sobrevivendo na adversidade e na míngua. Falo somente para quem falo: para os que precisam ser alertados para a situação de miséria do nordeste. Mais do que uma síntese da obra de Graciliano Ramos, Cabral volta-se para sua própria obra. Através de Graciliano, fala, a um tempo, de Vidas Secas e de Morte e Vida Severina.

É claro que Fabiano, Sinha Vitória e seus meninos "sem nome" são todos Severinos. Vidas Secas (1938) é a fonte mais clara em que bebe João Cabral. Vidas Secas, seu cenário, sua crítica ácida e, principalmente a linguagem seca e direta, de falar com coisas do mestre Graciliano. Como já o apontou o professor Dácio Antônio de Castro, Vidas Secas tornou-se um clássico da literatura modernista, não só pela originalidade das soluções estilísticas e estruturais, como pela denúncia do drama do trabalhador rural, que ainda não obtiveram solução satisfatória. O mesmo poderia ser dito, sem qualquer alteração, de Morte e Vida Severina.

Um Auto de Natal Pernambucano

Morte e Vida Severina traz como subtítulo Um Auto de Natal Pernambucano. Trata-se, portanto, de uma obra que procura aclimatar a Pernambuco o espírito dos autos sacramentais ou hieráticos da península ibérica. O professor Segismundo Spina assim nos apresenta essa forma dramática:

Os autos (que assim se chamaram estas representações teatrais peninsulares por conterem apenas um ato) eram composições dramáticas de caráter religioso, moral ou burlesco (mas preferentemente devoto e com personagens alegóricas) desenvolvidas ao longo da Idade Média, de cujo teatro religioso se originaram, adquirindo sua forma típica na Península Ibérica entre os séculos XV e XVI. Suas origens se prendem às representações religiosas do teatro medieval (aos "mistérios", aos "dramas litúrgicos" e às "moralidades"), portanto ligadas ao teatro litúrgico europeu, embora não tenhamos hoje senão vestígios muitos imperfeitos dessas representações peninsulares anteriores a Gil Vicente (em Portugal) e a Juan del Encina e Lucas Fernandes (na Espanha).

Segundo grandes estudiosos da literatura poética e dramática medieval, como Karl Vossler , uma das principais origens dos autos está na representação medieval natalina dos Presépios, iniciada por São Francisco de Assis, que, obtendo permissão papal, realizou no Castelo de Grecio, na noite de Natal de 1223, uma representação do nascimento de Cristo. É Pereira da Costa, fonte reconhecida por João Cabral com fundamental para a concepção de Morte e Vida Severina, quem nos relata como esses Presépios foram introduzidos em Pernambuco:

Desde então (1223), conservou-se sempre nas igrejas dos religiosos franciscanos o uso da representação dos presépios, que depois se tornou comum e geral em todo o mundo.

O uso dos presépios em Portugal, como refere Fr. Luiz de Souza, teve começo no convento das freiras do Salvador, em Lisboa, no ano de 1391, levantando-se no meio do templo uma armação, representando o Estábulo de Belém, com figuras que interpretavam a cena do nascimento de Jesus.

Depois, já no século XVI, foi o assunto dramatizado, teve entrada no teatro, e é talvez daí que vem o auto hierático português, de tão variados assuntos. A este respeito diz Theóphilo Braga o seguinte: ''Como em todos os povos católicos em que as festas religiosas do Natal, Reis Magos e Paixão eram a base do teatro hierático, tivemos esses autos ou vigílias, que se ligavam às manifestações do culto, sobretudo no tempo em que a igreja admitia o povo à participação na liturgia. Foi por um monólogo de natureza da visitação da lapinha ou do presépio, que Gil Vicente começou a elaborar a forma literária do auto hierático".

A introdução do presépio em Pernambuco vem, talvez, de fins do século XVI, acaso iniciada no convento dos franciscanos em Olinda, por frei Gaspar de Santo Antônio, a quem na custódia chamavam O Primogênito, por ser o primeiro religioso que tomou o hábito no Brasil, naquele mesmo convento, no ano de 1585.

Como podemos perceber, João Cabral de Melo Neto, ao criar seu Auto de Natal Pernambucano, vai buscar inspiração na antiga tradição medieval ibérica que, por sua vez, já havia penetrado, desde o século XVI, na tradição pernambucana. Ainda segundo Pereira da Costa, a mais bela e aparatosa das festas populares pernambucanas é exatamente as Pastorinhas ou Pastoris, ou mais propriamente, Presépios. A poesia dessas festas vai ser transformada por João Cabral na base para a construção do seu próprio Presépio, no parte final de Morte e Vida Severina.

Dos autores de autos na literatura em língua portuguesa Gil Vicente é certamente o mais significativo. Se João Cabral procurou restaurar o auto medieval no contexto nordestino, jamais poderia ignorar a obra do autor do Auto da Barca do Inferno. Como bem o apontou o professor Ivan Teixeira:

A experiência vicentina encontra diversas ressonâncias na literatura contemporânea. No Brasil, o exemplo mais célebre talvez seja Morte e Vida Severina (1956), de João Cabral de Melo Neto. Igualmente ao pai do teatro português, João Cabral adota a justaposição de cenas e o verso redondilho. Aproxima-se ainda pelo tom explicativo da sátira contra as desigualdades sociais, assim como pela ênfase na tonalidade poética do enunciado. As personagens possuem a mesma constituição alegórica, representando cada uma um determinado tipo social do Nordeste. Por fim, o subtítulo remete imediatamente ao teatro primitivo de Gil Vicente: "Auto de Natal Pernambucano". De fato, o texto cabralino obedece à estrutura do auto, isto é, classifica-se mais como poesia dramática do que propriamente como peça de teatro.

É ainda em Gil Vicente que encontramos uma descrição da dureza da vida do lavrador que em muito se aproxima da situação do Severino de João Cabral:

A caricatura do lavrador e do pastor nunca em Gil Vicente vai além dos aspectos superficiais e anedóticos, como a linguagem, a ignorância, a simplicidade, que, se os tornam ridículos aos olhos do mundo, lhes dão acesso ao reino dos Céus, ou pelo menos os livram de ir para o Inferno na companhia do fidalgo e do clérigo. Em compensação, as duras condições em que vive o camponês, a rapina de que é vitima, aparecem expressas com vigor na Romagem de Agravados e no Auto da Barca do Purgatório. O Lavrador deste último auto é porventura a personagem mais comovente de toda a obra vicentina:

Nós somos vida das gentes

e morte das nossas vidas.

Vive sujeito ao peso dos tributos e à incerteza das estações. O senhor não lhe perdoa as rendas, pouco se importando com a sua fome. O próprio Deus, que envia inoportunamente o sol ou a chuva, parece estar contra ele, e cerra os ouvidos às suas orações - segundo as queixas de João Murtinheira na Romagem de Agravados.

Esse lavrador abandonado por Deus, vítima da rapina social, já descrito por Gil Vicente, certamente comoveu e inspirou o ateu João Cabral. Dando-lhe, até mesmo, a sugestão do título de Morte e Vida Severina. No entanto, ao contrário de Gil Vicente, o poeta pernambucano jamais ridiculariza seu lavrador, e sim confere-lhe um estatuto trágico sem, no entanto, ser melodramático ou panfletário.

Título, Estrutura e Enredo

Dois procedimentos chamam à atenção de imediato no título do livro. A inversão do sintagma vida e morte e a adjetivação do substantivo próprio Severino. Tais recursos poéticos colaboram para realçar aspectos importantes na composição da obra. Segundo Marta de Senna:

Ao inverter a ordem natural do sintagma "vida e morte", o poeta registra com precisão a qualidade da vida que seu poema visa a descrever: uma vida a que a morte preside. E ambas, morte e vida, têm por determinante o adjetivo "severina". Igualam-se nisso de serem ambas pobres, parcas, anônimas. O procedimento de adjetivação do substantivo é recorrente na poesia de Cabral, e aqui adquire especial relevo por estar em posição privilegiada, no título da peça. Morte e Vida Severina, porque é Severino o protagonista, que, desde a apresentação, insiste no caráter comum de seu nome, antes um "a-nome" no contexto em que vive. De substantivo próprio, "Severino" passa a ser comum; daí a ser adjetivo é um passo. (...) Será interessante advertir que o uso de "severino" como adjetivo no auto cabralino não é senão a reversão da palavra à sua origem. Diminutivo de "severo", "severino" é originariamente um adjetivo. Daí, passou a ser nome próprio, como ocorreu em tantos outros casos nas línguas ocidentais: Augusto, Cândido, Cristiano, Pio, Clemente - para citar apenas alguns exemplos. Ora, o que Cabral realiza é exatamente o retorno do adjetivo ao adjetivo, sendo o novo enriquecido da carga semântica de que foi alimentado durante o "estágio" substantivo próprio, que, no caso específico, é o Severino anônimo do sertão nordestino.

É importante acrescentar que, além de descrever uma vida presidida pela morte, o título também demonstra o percurso feito por Severino durante a peça. Sai da morte para alcançar a vida. A estrutura geral da peça, ou sua macroestrutura, apresenta exatamente este caminho.

Morte e Vida Severina se divide em 18 cenas ou fragmentos poéticos, todos precedidos por um título explicativo de seu conteúdo, praticamente resumos do que encontramos nos poemas em si. Podemos separá-los em dois grandes grupos.

As primeiras 12 cenas descrevem a peregrinação de Severino, seguindo o rio Capibaribe, fugindo da morte que encontra por toda parte, até a cidade do Recife, onde, para seu desespero, volta a encontrar apenas a miséria e a morte. Trata-se do Caminho ou Fuga da Morte. Nesta parte o poeta habilmente alterna monólogos de Severino a diálogos que trava ou escuta no caminho.

As últimas 6 cenas apresentam O Presépio ou O Encontro com a Vida, em que é descrito o nascimento do filho de José, mestre carpina, em clara alusão ao nascimento de Jesus. A peça se encerra, portanto, com uma apologia da vida, mesmo que seja severina. Toda esta parte, com exceção do monólogo final do mestre carpina, foi adaptada por João Cabral de Melo Neto dos Presépios ou Pastoris do folclore pernambucano

Vejamos, através dos títulos explicativos, como o enredo do drama se constrói:

I - Caminho ou Fuga da Morte

1. (Monólogo) - O retirante explica ao leitor quem é e a que vai.

2.(Diálogo) - Encontra dois homens carregando um defunto numa rede, aos gritos de: "ó irmãos das almas! irmãos das almas! não fui eu que matei não!"

3. (Monólogo) - O retirante tem medo de se extraviar porque seu guia, o rio Capibaribe, cortou com o verão.

4. (Diálogo) - Na casa a que o retirante chega estão cantando excelências para um defunto, enquanto um homem, do lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantadores.

5. (Monólogo) - Cansado da viagem o retirante pensa interrompê-la por uns instantes e procurar trabalho ali onde se encontra.

6. (Diálogo) - Dirige-se à mulher na janela que depois descobre tratar-se de quem se saberá.

7. (Monólogo) - O retirante chega à Zona da Mata , que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem.

8. (Diálogo) - Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério.

9. (Monólogo) - O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife.

10. (Diálogo) - Chegando ao Recife, o retirante senta-se para descansar ao pé de um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros.

11. (Monólogo) - O retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe.

12. (Diálogo) - Aproxima-se do retirante o morador de um dos mocambos que existem entre o cais e a água do rio.

II - O Presépio ou O Encontro com a Vida

13. (Presépio) - Uma mulher, da porta de onde saiu o homem, anuncia-lhe o que se verá.

14. (Presépio) - Aparecem e se aproximam, da casa do homem, vizinhos, amigos, duas ciganas, etc.

15. (Presépio) - Começam a chegar pessoas trazendo presentes para o recém-nascido.

16. (Presépio) - Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos.

17. (Presépio) - Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc.

18. (Conclusão da Peça) - O carpina fala com o retirante que esteve de fora, sem tomar parte em nada.

As Cenas da Morte

No seu Romanceiro (1828), grande levantamento da poesia popular portuguesa, o poeta português Almeida Garrett apresenta um romance de origem medieval em que um triste cavaleiro de Avalor viaja só e desesperançado acompanhando as margens de um rio:

Pela ribeira de um rio Que leva as águas ao mar, Vai o triste de Avalor, Não sabe se há de tornar. As águas levam seu bem, Ele leva o seu pesar; E só vai sem companhia, Que os seus fora ele deixar; Pois quem não leva descanso Descansa em só caminhar.

É bastante antiga, portanto, a tradição de se colocar em forma poética a perambulação do herói às margens do rio. Tomando como modelo a forma do romance ibérico, pouco antes de escrever Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto havia escrito o longo poema O Rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1954), em que dá voz ao próprio rio Capibaribe, que relata seu percurso:

Sempre pensara em ir caminho do mar. Para os bichos e rios nascer já é caminhar. Eu não sei o que os rios têm de homem do mar; sei que se sente o mesmo e exigente chamar. Eu já nasci descendo a serra que se diz do Jacarará, (...) Desde tudo que lembro, lembro-me bem de que baixava entre terras de sede que das margens me vigiavam. Rio menino, eu temia aquela grande sede de palha, grande sede sem fundo que águas meninas cobiçava. Por isso é que ao descer caminho de pedras eu buscava, que não leito de areia com suas bocas multiplicadas. Leito de pedra abaixo rio menino eu saltava. Saltei até encontrar as terras fêmeas da Mata.

As palavras do poeta ecoam a de um estudioso do século XIX, Manuel da Costa Honorato, que, em 1863, assim descreveu o percurso do Capibaribe:

(...) nasce na fralda oriental da serra do Jacarará, um dos ramos dos Cairiris Velhos, no Olho-d'Água do Gavião e Lagoa do Angu, e daí por entre a serra donde nasce e a do Brejo segue, atravessando as comarcas do Brejo, Limoeiro, Pau-d'Alho e Recife, banhando as vilas do Limoeiro e Pau-d'Alho e muitas outras povoações, num leito de rochas de sua fonte até a comarca de Pau-d'Alho, é arenoso daí até o Recife, e se lança no oceano depois de ter feito um curso de 80 léguas pouco mais ou menos.

Se em O Rio já se revelava, além do cuidadoso estudo da hidrografia do Capibaribe, uma preocupação fundamental com a miséria que o rio corta, com os retirantes que o acompanham, nas 12 primeiras cenas de Morte e Vida Severina, o poeta dá voz ao retirante Severino que, fugindo da morte, segue as águas do rio Capibaribe desde a serra da Costela até sua foz em Recife. Vejamos estas cenas:

1. Para compor o primeiro monólogo de Severino, assim como todos os outros monólogos do livro, João Cabral de Melo Neto tomou como modelo o romanceiro ibérico. Como os romances portugueses medievais, os monólogos são compostos em medida velha, em versos redondilhos maiores ou heptassílabos, e apresentam rimas alternadas, algumas perfeitas ou consoantes e a grande maioria toante, entre vogais, como as prefere João Cabral. O monólogo de abertura, composto por 64 versos, pode ser dividido em três partes. Nos trinta primeiros versos, Severino tenta apresentar-se ao público/leitor, mas esbarra na falta de individualidade, na despersonalização do sertanejo depauperado:

O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia.

Nestes versos, em que predominam as rimas consoantes, encontramos também referências ao papel dos coronéis na vida do sertão, e temos um isomorfismo, uma identificação total, entre Severino e o local em que vivia, a serra da "Costela", magra e ossuda como o sertanejo esfomeado.

Apresentando-se como um entre tantos retirantes "sem nome", Severino aparece como sinédoque (a parte pelo todo) de todo o povo sofrido do sertão.

Nos 28 versos seguintes Severino apresenta a descrição dos severinos, iguais na forma e no destino de morrer antes dos trinta de tanto tentar tirar algo da terra intratável. Note-se que descrição da vida severina começa pela apresentação da morte severina.

Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza.

As rimas neste fragmento já são predominantemente toantes. Severino apresenta a sua vida/morte em 28 versos, exatamente o mesmo número de anos a que, segundo João Cabral, reduzia-se a expectativa média de vida do pernambucano na época: antes dos trinta.

Já nos 6 últimos versos, Severino anuncia o início de sua peregrinação, desistindo de se individualizar, e apresentando-se como o severino que se vê, portanto aquele que representa todos os outros que os leitores/espectadores devem sempre ter em mente ao acompanhá-lo:

Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra

.

2. A cena seguinte apresenta o primeiro diálogo da peça. Inspirado no folclore Catalão, João Cabral apresenta o encontro de Severino com dois homens que levam um defunto embrulhado em rede para ser enterrado no cemitério de Toritama, sobre o qual o poeta escreve, na mesma época da redação de Morte e Vida Severina, um dos poemas intitulados Cemitério Pernambucano do livro Paisagem com Figuras (1956):

Para que todo este muro? Por que isolar estas tumbas do outro ossário mais geral que é a paisagem defunta? A morte nesta região gera dos mesmos cadáveres? (...)

No cenário desolado, os irmãos das almas explicam a Severino como e porque morreu o Severino que carregam:

-- E o que guardava a emboscada, irmãos das almas, e com que foi que o mataram, com faca ou bala? -- Este foi morto de bala, irmão das almas, mais garantido é de bala, mais longe vara. -- E quem foi que o emboscou, irmãos das almas, quem contra ele soltou essa ave-bala? -- Ali é difícil dizer, irmão das almas, sempre há uma bala voando desocupada. -- E o que havia ele feito irmãos das almas, e o que havia ele feito contra a tal pássara? -- Ter uns hectares de terra, irmão das almas, de pedra e areia lavada que cultivava. -- Mas que roças que ele tinha, irmãos das almas, que podia ele plantar na pedra avara? -- Nos magros lábios de areia, irmão das almas, dos intervalos das pedras, plantava palha. -- E era grande sua lavoura, irmãos das almas, lavoura de muitas covas, tão cobiçada? -- Tinha somente dez quadras, irmão das almas, todas nos ombros da serra, nenhuma várzea. -- Mas então por que o mataram, irmãos das almas, mas então por que o mataram com espingarda? -- Queria mais espalhar-se, irmão das almas, queria voar mais livre essa ave-bala. -- E agora o que passará, irmãos das almas, o que é que acontecerá contra a espingarda? -- Mais campo tem para soltar, irmão das almas, tem mais onde fazer voar as filhas-bala.

O fragmento revela que a disputa pela terra leva ao assassinato do Severino Lavrador. Através da metáfora da ave-bala que quer mais espaço para voar, João Cabral apresenta os proprietários de terra que, matando impunemente lavradores (com ou sem terra), vão conquistando sempre mais espaço para atirar.

Em entrevista recente, Cabral aponta para o humor negro existente em certa passagem desta cena:

A crítica nunca se preocupou com o humor negro de minha poesia. Leia Dois Parlamentos, por exemplo. É puro humor negro. Em Morte e Vida Severina, também existe humor negro. Você lembra daquele trecho: "Mais sorte tem o defunto / irmão das almas / pois já não fará na volta / a caminhada"? Pois bem. A origem disso é uma história que me contaram na Espanha. Dizem que, na época de Franco, ele mandava fuzilar seus inimigos num lugar chamado Sória, que é o mais frio do país. Conta-se que, um dia, um condenado virou-se para os soldados que iriam executá-lo e disse: "Puxa, como faz frio neste lugar". Ao que um dos soldados respondeu: "Sorte tem você, que não precisa fazer o caminho de volta. Foi assim que essa frase foi parar no meio de Morte e Vida Severina. Há mais humor negro do que isso?

3. O monólogo apresenta a insegurança de Severino quanto a que caminho seguir, pois o seu guia, o Capibaribe, secara devido à seca do verão. Cabe lembrar que, de fato, o rio Capibaribe é, desde a sua foz até a cidade de Limoeiro, intermitente, ou seja, corta ou seca durante o verão. A partir de Limoeiro, na entrada da Zona da Mata, até Recife, trata-se de um rio perene.

Pensei que seguindo o rio eu jamais me perderia: ele é o caminho mais certo, de todos o melhor guia. Mas como segui-lo agora que interrompeu a descida? Vejo que o Capibaribe, como os rios lá de cima, é tão pobre que nem sempre pode cumprir sua sina e no verão também corta, com pernas que não caminham. Tenho de saber agora qual a verdadeira via entre essas que escancaradas frente a mim se multiplicam.

4. Severino aproxima-se de uma casa em que se cantam excelências para um defunto chamado Severino. Composta em versos livres, esta cena caracteriza-se pela ironia. Um homem, fora da casa, vai colocando as palavras dos cantadores na perspectiva da vida de não, de privação, que se leva no sertão:

-- Finado Severino, quando passares em Jordão e os demônios te atalharem perguntando o que é que levas... -- Dize que levas cera, capuz e cordão mais a Virgem da Conceição. -- Finado Severino, etc... -- Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação. -- Finado Severino, etc... -- Dize que coisas de não, ocas, leves: como o caixão, que ainda deves.

5. Desanimado por encontrar apenas morte, quando procurava vida, Severino pensa em interromper a viagem, procurar um trabalho e ir vivendo por lá mesmo:

só morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida severina (aquela vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais severina para o homem que retira). Penso agora: mas por que parar aqui eu não podia e como o Capibaribe interromper minha linha?

A morte severina já havia sido descrita no primeiro monólogo e somente agora Severino se refere à vida severina. Severino não encontra vida nem mesmo no rio que julgava perene e de quem se aproxima no desejo de não mais continuar.

6. Dialogando com uma mulher à janela, Severino descobre que na região não há trabalho para lavradores como ele, apenas profissionais ligados à morte, rezadeiras como ela, coveiros, ou mesmo farmacêuticos e médicos, têm algo a fazer por lá:

-- Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. Imagine que outra gente de profissão similar, farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular, remando contra a corrente, da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá. Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil: simples questão de plantar; não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazem-nos mais prosperar; e dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear.

7. Continuando a viagem, Severino alcança a Zona da Mata, que o deixa deslumbrado:

-- Bem me diziam que a terra se faz mais branda e macia quanto mais do litoral a viagem se aproxima. Agora afinal cheguei nessa terra que diziam. Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista. Os rios que correm aqui têm a água vitalícia. Cacimbas por todo lado; cavando o chão, água mina. Vejo agora que é verdade o que pensei ser mentira. Quem sabe se nesta terra não plantarei minha sina?

Mas Severino não encontra ninguém à vista neste paraíso, apenas avista um cemitério. Sua ingenuidade reveste até o campo santo de otimismo:

Decerto a gente daqui jamais envelhece aos trinta nem sabe brir page: (abri vida em morte, severina; e aquele cemitério ali, branco na verde colina, decerto pouco funciona e poucas covas aninha.

8. A ilusão de Severino com a Zona da Mata é logo quebrada quando se aproxima do cemitério e ouve o que dizem do morto os seus amigos:

-- Essa cova em que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida. -- É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. -- Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. -- É uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo. -- É uma cova grande para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo. -- É uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada não se abre a boca.

a-se, portanto, da mesma morte severina, que persegue o lavrador onde ele esteja.

9. Neste monólogo, Severino de certa maneira contradiz o monólogo anterior, em que se mostrava otimista em relação à Zona da Mata. Inicia-se com o verso: Nunca esperei muita coisa. Esperava apenas fugir da estatística que assustara João Cabral: da morte antes dos trinta. Decepcionado com o que ouvira no cemitério, decide apressar o passo para chegar logo ao Recife, pois:

o senti diferença entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata a diferença é a mais mínima. Está apenas em que a terra é por aqui mais macia; está apenas no pavio, ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que em toda parte ilumina, e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça , a vida arde sempre com a mesma chama mortiça.

10. Mesmo chegando ao Recife, o retirante não escapa da morte. Senta-se para descansar exatamente ao pé do muro de um cemitério e escuta a conversa de dois coveiros:

Eu também, antigamente, fui do subúrbio dos indigentes, e uma coisa notei que jamais entenderei: essa gente do Sertão que desce para o litoral, sem razão, fica vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha; pois bem: quando sua morte chega, temos de enterrá-los em terra seca. -- Na verdade, seria mais rápido e também muito mais barato que os sacudissem de qualquer ponte dentro do rio e da morte. -- O rio daria a mortalha e até um macio caixão de água; e também o acompanhamento que levaria com passo lento o defunto ao enterro final a ser feito no mar de sal. -- E não precisava dinheiro, e não precisava coveiro, e não precisava oração e não precisava inscrição. -- Mas o que se vê não é isso: é sempre nosso serviço crescendo mais cada dia; morre gente que nem vivia. -- E esse povo lá de riba de Pernambuco, da Paraíba, que vem buscar no Recife poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando cemitérios esperando. -- Não é viagem o que fazem, vindo por essas caatingas, vargens; aí está o seu erro: vêm é seguindo seu próprio enterro.

Não há como não lembrar, em relação a esta cena, o célebre diálogo dos coveiros no Ato V, Cena I, da peça Hamlet, de Shakespeare. Ao retornar a Elsenor, Hamlet pára no cemitério e ouve os coveiros (apresentados por Shakespeare como clowns: bobos, palhaços) conversarem sobre o suicídio de sua amada Ofélia. A conversa é absurda, mas não deixa de ter pontos de contato com a situação de Severino. Diz um dos coveiros: Se o homem vai à água e se afoga, de qualquer modo, queira ou não queira, ele vai, presta atenção nisso. Mas a água vai a ele e o afoga, ele não se afoga - "ergum", aquele que não é culpado de sua própria morte não abrevia a sua própria vida.

11. O último monólogo de Severino inicia-se, como o anterior, com o verso Nunca esperei muita coisa. Desiludido com o que alcançara, Severino se dirige a um cais do rio Capibaribe e reflete sobre a chegada a Recife:

E chegando, aprendo que, nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o Sertão, meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado adiantado de uns dias; o enterro espera na porta: o morto ainda está com vida. A solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio, que vem também lá de cima, que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia:

O retirante, chegando a seu objetivo, contempla pela primeira vez a idéia do suicídio. Jogar-se, como a Ofélia de Shakespeare, às águas. É bom lembrar que tudo o que o lavrador encontrara até aqui fora a morte. Se só a morte dele se aproxima, por que não se entregar definitivamente a ela?

12. Severino está por se atirar ao rio quando dele se aproxima José, o mestre carpina , a quem o retirante faz uma série de perguntas, todas respondidas com sabedoria, realismo e prudência:

-- Severino, retirante, o meu amigo é bem moço; sei que a miséria é mar largo, não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-la vale bem qualquer esforço. (...) -- Severino, retirante, muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás, porque ao menos esse mar não pode adiantar-se mais.

A conversa é interrompida quando Severino faz a questão crucial:

-- Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?

Neste ponto se inicia o Presépio que finaliza a peça. Interrompida a conversa, Severino e o mestre carpina assistem ao espetáculo do nascimento do filho de José.

O Presépio ou O Encontro com a Vida

As cinco cenas seguintes da peça apresentam o Presépio dentro da peça. Todas elas foram extraídas, quase literalmente, do folclore pernambucano, mais especificamente do livro de Pereira da Costa, Folk-lore Pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco, publicado originalmente em 1908.

13. Uma mulher anuncia ao mestre carpina que seu filho nascera:

Compadre José, compadre, que na relva estais deitado. conversais e não sabeis que vosso filho é chegado? Estais aí conversando em vossa prosa entretida: não sabeis que vosso filho saltou para dentro da vida? Saltou para dentro da vida ao dar seu primeiro grito; e estais aí conversando; pois sabei que ele é nascido.

Trata-se de uma resposta a Severino, que indagara sobre saltar da vida para a morte. Aqui se dá o contrário, a criança salta para a vida.

Em Pereira da Costa encontramos a seguinte estrofe na Loa do anjo anunciando as pastoras o nascimento do messias:

Pastoras, belas pastoras, Que na relva estais deitadas Descansais, e não sabeis, Que a luz do céu é chegada?

14. O fragmento seguinte, como todo o Presépio, é inspirado no material recolhido por Pereira da Costa, que registrou nas Jornadas:

Todo o céu e terra Vos cantem louvor, Ó Menino Deus, Nosso redentor.

João Cabral, ironicamente, adapta a fala dos vizinhos que se aproximam da casa do mestre carpina para:

-- Todo o céu e a terra lhe cantam louvor e cada casa se torna num mocambo sedutor. -- Cada casebre se torna no mocambo modelar que tanto celebram os sociólogos do lugar.

Certamente o poeta se refere aqui ao famoso ensaio do sociólogo recifense Gilberto Freyre intitulado Sobrados e Mocambos (1936). A ironia está em tornar sedutores os mocambos (habitações miseráveis) ao celebrá-los como de certa forma o fez Gilberto Freyre.

15. As pessoas trazem presentes para o recém-nascido. Em Pereira da Costa temos as Ofertas das Pastoras, em que se lê:

Minha pobreza tal é Que uma oferta não achei! Na aldeia não encontrei Cousa que fizesse fé;

Em Morte e Vida Severina, temos a reelaboração:

-- Minha pobreza tal é que não trago presente grande: trago para a mãe caranguejos pescados por esses mangues; mamando leite de lama conservará nosso sangue.

João Cabral adapta o original à situação de vida das populações ribeirinhas ao Capibaribe, tornando concretos e locais os presentes oferecidos. Nesta cena enumera uma série de localidades - cidades pernambucanas e bairros de Recife - de onde se originariam os presentes:

--Eis ostras chegadas agora. apanhadas no cais da Aurora. --Eis tamarindos da Jaqueira e jaca da Tamarineira. --Mangabas do Cajueiro e cajus da Mangabeira. --Peixe pescado no Passarinho, carne de boi dos Peixinhos. --Siris apanhados no lamaçal que há no avesso da rua Imperial. --Mangas compradas nos quintais ricos do Espinheiro e dos Aflitos. --Goiamuns dados pela gente pobre da Avenida Sul e da Avenida Norte.

João Cabral de Melo Neto, jogando com os nomes tão sugestivos - como já o notara Manuel Bandeira em Evocação do Recife - das ruas e bairros de Recife, cria um jogo quase surrealista. Na verdade, para quem não sabe que estes são nomes de bairros, a passagem é completamente surrealista.

16. Duas ciganas prevêem o futuro da criança. Enquanto em Pereira da Costa uma delas era pessimista e a outra otimista, em Morte e Vida Severina a variação das previsões se dá pelo fato da primeira cigana prognosticar um futuro enlameado, terminando como pescador de siri e camarão, e a segunda preconiza-o como operário, mudando-se das margens do Capibaribe para um mocambo melhor nos mangues do Beberibe, o outro rio que corta Recife:

Não o vejo dentro dos mangues, vejo-o dentro de uma fábrica: se está negro não é lama, é graxa de sua máquina, coisa mais limpa que a lama do pescador de maré que vemos aqui, vestido de lama da cara ao pé. E mais: para que não pensem que em sua vida tudo é triste, vejo coisa que o trabalho talvez até lhe conquiste: que é mudar-se destes mangues daqui do Capibaribe para um mocambo melhor nos mangues do Beberibe.

17. A última cena do Presépio apresenta todos os visitantes do recém-nascido elogiando, ainda seguindo Pereira da Costa, a beleza da criança. Trata-se de uma beleza diferente: pálida, franzina, fraca e magra, mas é beleza que é a afirmação da vida, o brotar da novidade:

-- De sua formosura deixai-me que diga: é tão belo como um sim numa sala negativa. (...) -- Belo porque é uma porta abrindo-se em mais saídas. (...) -- Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria. -- Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia. -- Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia. -- Ou como o caderno novo quando a gente o principia. -- E belo porque com o novo todo o velho contagia.

18. Terminado o Presépio, o mestre carpina está pronto para responder à pergunta de Severino:

-- Severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, respondeu com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina.

Curiosamente, a peça se encerra sem qualquer resposta de Severino. Em algumas montagens os encenadores colocaram a última estrofe na boca de Severino e não, como está claro no texto, na do mestre carpina. Esse procedimento vem apenas reforçar a mensagem final da peça: a de que mesmo a vida quase morte severina, aparentemente sem saída ou esperança, pode e deve ser vivida.

Exercícios

1. Pensando em sua estrutura geral, explique o título e o subtítulo da peça de João Cabral.

As questões de 2 a 6 se referem ao monólogo de abertura da peça, O retirante explica ao leitor quem é e a que vai:

2. Como o monólogo de abertura da peça se relaciona ao título?

3. O tema básico desenvolvido nos primeiros trinta versos do monólogo pode ser definido como:

a) O retirante explica ao leitor precisamente quem é.

b) A apresentação inicial da família de Severino.

c) A vida no sertão.

d) A dificuldade de se definir a paternidade do sertanejo.

e) A despersonalização ou ausência de individualidade no sertanejo.

4. Já nos 28 versos seguintes, acrescenta-se ao tema desenvolvido nos trinta primeiros verso, o seguinte tema:

a) O retirante explica ao leitor para onde vai.

b) A continuação da apresentação da família de Severino.

c) As dificuldades da vida pobre e árdua do sertanejo.

d) A igualdade social no sertão, onde todos têm direitos iguais.

e) A injustiça de morrer.

5. Muitas das passagens deste texto estão em sentido figurado. O significado básico das seguintes imagens: "O meu nome é Severino, / não tenho outro de pia." e "o sangue / que usamos tem pouca tinta." pode ser explicado, respectivamente, por:

a) O sertanejo não é batizado e a maioria dos sertanejos não é alfabetizada..

b) O sertanejo não tem sobrenome e a maioria dos sertanejos não é alfabetizada..

c) O sertanejo não é batizado e sofre de desânimo, preguiça.

d) O sertanejo não tem sobrenome e sofre de fraqueza, anemia.

e) A água é escassa no sertão e isto se reflete no sangue do sertanejo.

6. Podemos afirmar sobre o fragmento que vai do verso 31 ao 39 que:

a) Tem um caráter fundamentalmente narrativo.

b) Tem um caráter fundamentalmente descritivo.

c) Tem um caráter fundamentalmente dissertativo.

d) Tem um caráter fundamentalmente narrativo acrescido de aspectos descritivos.

e) Tem um caráter fundamentalmente dissertativo acrescido de aspectos descritivos.

Leia o fragmento abaixo para responder às questões de 7 a 10:

-- Será de terra tua derradeira camisa: te veste, como nunca em vida. -- Será de terra e tua melhor camisa: te veste e ninguém cobiça. -- Terás de terra completo agora o teu fato: e pela primeira vez, sapato. -- Como és homem, a terra te dará chapéu: fosses mulher, xale ou véu. -- Tua roupa melhor será de terra e não de fazenda: não se rasga nem se remenda. -- Tua roupa melhor e te ficará bem cingida: como roupa feita à medida.

7. O fragmento se constrói em torno de um metáfora central. Aponte-a.

8. Assinale alternativa que melhor analisa o sistema de rimas do fragmento.

a) As falas se estruturam em tercetos que apresentam rimas emparelhadas nos dois últimos versos. Estas rimas tanto são toantes (camisa/vida e camisa/cobiça) quanto consoantes ou perfeitas (fato/sapato, chapéu/véu, fazenda/remenda e cingida/medida).

b) As falas se estruturam em tercetos que apresentam rimas emparelhadas nos dois últimos versos. Estas rimas são todas toantes.

c) As falas se estruturam em tercetos que apresentam rimas interpoladas nos dois últimos versos. Estas rimas tanto são toantes (fato/sapato, chapéu/véu, fazenda/remenda e cingida/medida) quanto consoantes ou perfeitas (camisa/vida e camisa/cobiça).

d) As falas se estruturam em tercetos que apresentam rimas emparelhadas nos dois últimos versos. Estas rimas são todas consoantes ou perfeitas.

e) As falas se estruturam em tercetos que apresentam rimas intercaladas nos dois últimos versos. Estas rimas tanto são toantes (camisa/vida e camisa/cobiça) quanto consoantes ou perfeitas (fato/sapato, chapéu/véu, fazenda/remenda e cingida/medida).

9. Comente o jogo que João Cabral faz com a palavra fazenda neste fragmento.

10. Segundo José Fulaneti de Nadai, nesta cena: Em torno do defunto, as falas alternadas dos amigos refazem, pela sátira, a história de uma vida, cujas privações encontram seu termo na morte como vida que se abre no seio da terra. Este fragmento seria composto por tercetos com verbos no futuro, que projetam o "bem estar" da nova vida. Explique o que faz deste um fragmento satírico. Como os verbos no futuro contribuem para a sátira?

Respostas

1. O título da obra aponta para a trajetória de Severino: parte da morte para chegar à vida. Remete, também, à generalização de Severino como exemplo da vida severa do sertão, já que seu nome vira adjetivo. Já o subtítulo, além de revelar as influências da literatura medieval ibérica (auto), aponta para o final, em que João Cabral recria os Presépios da tradição folclórica pernambucana.

2. O monólogo de abertura apresenta a despersonalização de Severino. Seu nome próprio se revela comum e acaba por se transformar em adjetivo: mesma morte severina, inicialmente ligado à morte. O mesmo se dá no título da obra, em que a morte antecede a vida e em que o substantivo próprio Severino se transforma em adjetivo.

3. E

4. C

5. D

6. B

7. A metáfora central é a relação estabelecida entre a terra e o vestuário do lavrador. O "descamisado", que nunca tivera trajes decentes em vida, agora pode "vestir-se bem", vestir-se de terra.

8. A

9. João Cabral de Melo Neto se aproveita da polissemia (dois ou mais significados para o mesmo significante) da palavra fazenda: tanto propriedade rural quanto pano, tecido. Nesta passagem o significado básico da palavra é o de tecido, mas na oposição com a parca terra que serve de cova ao lavrador, remete à propriedade rural, ao latifúndio que nunca terá.

10. Neste trecho, o caráter de sátira, de crítica irônica e mordaz à realidade, de Morte e Vida Severina fica evidenciado através da ironia da metáfora central (terra como roupa). Os amigos insistem no fato de que o defunto nunca tivera roupa decente, e, utilizando os verbos no futuro, ironicamente prevêem uma vida melhor na morte para o lavrador severino.

Ficha de Leitura

Gênese e história da obra

Morte e Vida Severina foi escrito em 1954/55, por encomenda de Maria Clara Machado, então diretora do grupo O Tablado, que não pôde levar ao palco a peça. Publicado inicialmente no livro Duas Águas (1956), o texto foi finalmente montado pelo grupo do TUCA, (Teatro da Universidade Católica de São Paulo), com música de Chico Buarque de Holanda, dirigido por Roberto Freire e Silnei Siqueira e obteve sucesso mundial durante turnê em 1966. A partir dessa data, passou a integrar o volume Poemas em Voz Alta que reúne a parcela mais comunicativa da obra do "poeta engenheiro".

As duas águas de João Cabral de Melo Neto.

João Cabral de Melo Neto (Recife, 1920) dividiu sua obra em duas "águas", duas facetas como as do telhado de uma casa: a primeira seria a da comunicação mais restrita, mais elaborada e de difícil consumo e a segunda seria uma poesia mais popular, de compreensão mais imediata, de comunicação com um público mais amplo e menos cultivado. Nesta última se incluem os seus "poemas em voz alta", textos que foram escritos para serem lidos a um público ouvinte. O poema dramático Morte e Vida Severina com certeza pertence à segunda "água", pois, embora retenha algumas características fundamentais do poeta cerebral que é João Cabral, como o rigor formal da metrificação variada e aproximativa e das rimas toantes e o "falar com coisas", a utilização de imagens contundentes e concretas, foi escrito com o intuito de alcançar um público maior e recorre a diversas fontes da poesia popular na sua elaboração.

Um auto de natal pernambucano - influências

O subtítulo do livro revela seu débito aos autos sacramentais da tradição ibérica medieval, dos quais herda o teor poético e alegórico, assim com uma tendência à justaposição das cenas e à sátira dos costumes. Além de se inspirar na antiga poesia narrativa ibérica, os romances, João Cabral reelabora parodicamente nas cenas do presépio final a poesia do folclore pernambucano. Outra influência clara na concepção do livro é o Regionalismo de 30 com sua preocupação realista de observação, crítica e denúncia social que podemos encontrar e autores como José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz e, principalmente, em Graciliano Ramos.

O enredo: da morte à vida severina

A inversão do sintagma "vida e morte" no título da peça demonstra o percurso do retirante Severino: parte da morte no sertão para encontrar a vida em Recife. Severino acompanha o rio Capibaribe e só vai encontrando pobreza e morte pelo caminho. Chegando a Recife, foz do rio, o mesmo se repete. Desesperançado, pensa em cometer o suicídio atirando-se ao rio, quando testemunha o nascimento de um criança que devolve a esperança à vida severina. Tanto morte quanto vida são "severinas", adjetivo neológico formado a partir do nome próprio, pois ambas se aplicam a todos os "severinos" quase anônimos do sertão nordestino.

Estrutura geral

Morte e Vida Severina se divide em 18 cenas ou fragmentos poéticos, todos precedidos por um título explicativo de seu conteúdo, praticamente resumos do que encontramos nos poemas em si. Podemos separá-los em dois grandes grupos.

As primeiras 12 cenas descrevem a peregrinação de Severino. Trata-se do Caminho ou Fuga da Morte. Nesta parte o poeta habilmente alterna monólogos de Severino a diálogos que trava ou escuta no caminho.

As últimas 6 cenas apresentam O Presépio ou O Encontro com a Vida, em que é descrito o nascimento do filho de José, mestre carpina, em clara alusão ao nascimento de Jesus.

Bibliografia Básica

1. Edições de Morte e Vida Severina utilizadas:

1.1. Duas Águas - Poemas Reunidos (1a Edição); Rio de Janeiro; José Olympio; 1956.

1.2. Morte e Vida Severina e Outros Poemas em Voz Alta (25a Edição); Rio de Janeiro, José Olympio, 1988.

1.3. Obra Completa (1a Edição); Rio de Janeiro; Nova Aguilar; 1994.

2. Fontes bibliográficas:

2.1. MAMEDE, Zélia; Civil Geometria: Bibliografia Crítica, Analítica e Anotada de João Cabral de Melo Neto, 1942-1982; São Paulo: Nobel/EDUSP/Vitae; Brasília: INL; 1987

2.2. João Cabral de Melo Neto: Cadernos de Literatura Brasileira, Número 1; São Paulo; Instituto Moreira Salles; Março de 1996.

3. Ensaios sobre João Cabral de Melo Neto:

3.1. BARBOSA, João Alexandre; A Imitação da Forma - Uma leitura de João Cabral de Melo Neto; São Paulo; Duas Cidades; 1975.

3.2. BARBOSA, João Alexandre; "A Lição de João Cabral"; in Cadernos de Literatura Brasileira, Número 1 ; São Paulo; Instituto Moreira Salles; Março de 1996.

3.3. CAMPOS, Haroldo de; "O Geômetra Engajado" in Metalinguagem & Outras Metas; São Paulo; Perspectiva; 1992.

3.4. CAMPOS, Augusto de; "Da Antiode à Antilira" in Poesia, Antipoesia, Antropofagia; São Paulo; Cortez e Moraes; 1978.

3.5. LEITE, Sebastião Uchoa; "Máquina sem mistério: a poesia de João Cabral de Melo Neto" in Crítica Clandestina; Rio de Janeiro; Taurus; 1986.

3.6. LIMA; Luiz Costa; "A Traição Conseqüente ou a poesia de Cabral"; in Lira e Antilira: Mário, Drummond, Cabral. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira; 1968.

3.7. NUNES, Benedito; João Cabral de Melo Neto; Petrópolis; Vozes; 1971.

3.8. SECCHIN, Antonio Carlos; João Cabral: A Poesia do Menos; São Paulo: Duas Cidades; Brasília: INL; 1985.

3.9. SENNA, Marta de; João Cabral: Tempo e Memória; Rio de Janeiro: Antares; Brasília: INL; 1980.

4. Teses e dissertações

4.1. BARBOSA, Frederico; "Morte e Vida Severina no Folk-lore Pernambucano, de Pereira da Costa" (projeto de mestrado) São Paulo; Universidade de São Paulo; 1989.

4.2. MENDES, Nancy Maria; "Ironia, Sátira, Paródia e Humor na Poesia de João Cabral de Melo Neto" (mestrado); Belo Horizonte; Universidade Federal de Minas Gerais; 1980.

4.3. NADAI, José Fulaneti de; "A Voz Alta de João Cabral" (doutorado); São Paulo; Universidade de São Paulo; 1994.

5. Outras obras:

5.1. GARRETT, Almeida; Romanceiro; Porto; Simões Lopes; 1949.

5.2. COSTA, F.A. Pereira da; Folk-lore Pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco (1a edição autônoma); Recife; Arquivo Público Estadual; 1974.

5.3. CASTRO, Dácio Antônio de; "Vidas Secas" in Literatura para a Unicamp-96; São Paulo; Anglo; 1995.

5.4. HONORATO; Manoel da Costa; Dicionário Topográfico, Estatístico e Histórico da Província de Pernambuco (2a edição); Recife; Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco; 1976.

5.5. SARAIVA, António José e LOPES, Óscar; História da Literatura em Portugal; Porto; Porto Editora; s.d.

5.6. SHAKESPEARE, William; Hamlet (Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos); São Paulo; Abril; 1976.

5.7. SPINA; Segismundo; "Introdução" in Gil Vicente; São Paulo; Brasiliense; 1986.

5.8. TEIXEIRA, Ivan; "A barca é uma festa" in Auto da Barca do Inferno; São Paulo; Ateliê Editorial; 1996.

5.9. VICENTE, Gil; Obras Completas; Lisboa; Sá da Costa; 1951.

5.10. VOSSLER, Karl; Formas Poéticas de los Pueblos Románicos; Buenos Aires, Editorial Losada; 1960.

6. Entrevistas e depoimentos de João Cabral de Melo Neto:

6.1. "Entrevista de João Cabral de Melo Neto" in SECCHIN, Antonio Carlos; João Cabral: A Poesia do Menos; São Paulo: Duas Cidades; Brasília: INL; 1985.

6.2. "João Cabral de Melo Neto". Revista 34 Letras; Rio de Janeiro; março de 1989. Entrevista a Luiz Costa Lima, Sebastião Uchoa Leite, Carlito Carvalhosa e Lana Lage.

6.3. "A cidade guardada na memória"; depoimento a Lula Costa Pinto. Revista Veja - 28 Graus (circulava em Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba); 26 de junho de 1991.


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Obra poética de Joao Cabral
Leia também a obra poética de Frederico Barbosa