O dentro, o fora
FLORA SUSSEKIND
Os dois livros de Dora Ribeiro, Ladrilho de Palavras
(1986) e Começar e o fim (1990), como muitos outros de
poetas que lançaram suas primeiras coletâneas na segunda metade
dos anos 80, passaram, do ponto de vista da recepção crítica
imediata (com a exceção, neste caso, de um comentário
de Luiz Costa Lima), praticamente em branco. Como se fosse impossível,
independente da qualidade, sua visualização fora de algum
movimento mais global ou tendência geracional definida. E, se invisíveis
no contexto da publicação, paradoxalmente, um dos seus aspectos
mais curiosos, para uma leitura atual, talvez esteja, ao contrário,
na sua capacidade de exposição das tensões entre modelos
imaginativos distintos como os das duas décadas que os delimitam.
Entre a auto-expressividade, o prosaísmo e a poesia-diário,
dominantes na poética dos anos 70, e o redimensionamento do sujeito
lírico, a auto-reflexão e a investigação formal
e material, que caracterizariam parcela significativa da poesia de fins
da década de 80 e dos anos 90 no Brasil.
Pois há como que dois rastros perceptíveis
na sucessão de poemas breves, quase todos sem título ou sinais
gráficos particulares (apenas alguns poucos dois pontos, aspas e
parênteses), fora a extensão variável dos brancos intervalares,
que compõem esses livros de Dora Ribeiro. Um desses rastros parece
seguir, em parte, o gosto pelo banal (não sua estetização),
pelos diários (vide Chico Alvim ou Ana Cristina César), pelos
dias em que nada acontece ("um dia como quem precisa achar emprego/ mas
acaba bebendo e jogando sinuca", como no texto de Eudoro Augusto) da poesia
das décadas de 70 e início de 80. Retomada que, nos poemas
de Dora, se daria via exposição miúda do cotidiano
("doce de leite na colher", "almoço comercial", "descasquei batatas",
"verdura arroz", "o calo do pé"), por vezes também próxima
da notação de diário ("dia santo prosaico/dia sem
santo", "como se reconhece o dia/em março/de horas e horas contadas/no
ano", "os dias mesmos", a "vida de calendário"), da lista pura e
simples ("batata palha/molho diana/sem café"), da "obsessão
de enumerar a presença vital e intransponível das coisas".
Ou, ainda, via percepção do tempo como uma forma de espera
("neste estar continuado de esperar"), de tempo "mole", modorrento, empoçado,
morto: "o tempo se amontoa galinha/ no poleiro/ agrupamento malcheiroso/
porcos/ pardieiro/ toca fétida/ dos dias".
Não faltam mesmo, nesse seu diálogo com
a produção poética do período imediatamente
anterior ao seu, uma tentativa acanhada de poema-minuto -"de olho rasteiro
volto para casa/ preciso saber se já tive pneumonia", assim como
certas hipertrofias do eu, - maneira da que se dá num poema-descrição
de beijo em Ladrilho de Palavras: "faço de conta de cansaço/
amarro as franjas/ cintilo os braços/ escureço os olhos/
e/ despenco". Exemplos de quase endosso não muito freqüentes,
no entanto, na poesia de Dora. Já que, aí, este esquema expressivo
parece tensionar-se duplamente. Em primeiro lugar, por uma tomada de distância
-"e a primeira pessoa, outra"- com relação aos muitos eus
de seus poemas, o que resultaria, por vezes, em construções
propositadamente indeterminadas, estruturadas por uma série de infinitivos
verbais substantivados ("começar", "o estalar da beleza") ou tendo
substantivos abstratos como sujeitos textuais ("a perfeição",
"a teoria", "uma idéia"), por vezes, numa diferenciação
explícita entre sujeito empírico e figuração
autoral -"o poeta não existe/ coisa do nada/ inimigo dos vizinhos/
e de todos os desejos com nome"-; na afirmação da consciência
de que o sujeito é sujeito do poema: "ele sabe que inexiste/ por
isso freqüenta a poesia".
E, outro ponto de instabilização da poética
expressiva: uma espécie de trava ao presente, ao imediato, mesmo
glosando-se, por vezes, a passagem dos dias, "desta hora", as formas de
medida e registro do instante. Dora Ribeiro parece mesmo trabalhar, com
freqüência, com um tipo de paradoxo temporal - os verbos do
poema no presente, mas acompanhados de uma forma condicional no futuro
ou de uma localização explícita no passado. Ou, como
se lê no poema que dá título ao seu primeiro livro:
"dois tempos a desfiar/ suas tranças/no rosto estendido/de roupa
no varal/púbico". O que resultaria, na série "Temporale",
incluída na revista Inimigo rumor n.6 , nas variações
em torno de um "quero te ver", ao qual se acrescentam ora condições
futuras ("quando a terra molhada/cobrir teu abismo"), ora um movimento
retrospectivo imediato ("quero te ver dopo il temporale/no passado/
onde o abismo vive num poço/sem vertigens/e/ limita-se ao descanso
profundo/e às idéias de águas paradas").
Há, portanto, um segundo rastro nesses dois
livros, no qual a figuração do sujeito lírico, assim
como a "hipótese da poesia" se afiguram problemáticos. O
poema apontando não para o registro do mundo ou para a identificação
da paisagem sensorial, mas para a consciência de seus limites (dá
a intensificação, por vezes via Cabral e Celan, das imagens
da pedra e do deserto, além dos seus muitos "temporais"), de uma
intransponibilidade constitutiva ("paisagem que não alcanço",
"a distância maior entre a sala e o quarto", "teus silêncios").
Ou, como no belo "temporale iv": "silêncio é palavra madura/difícil/sei
de um poeta/que a usou sem saber/e/morreu".
O poema apontando, por outro lado, não para o reforço
de uma auto-constituição da subjetividade, mas para figurações
diversas, e aparentemente estranhas na ambiência "lírica"
dos textos de Dora, de decomposição, instabilização,
dissolução de uma paisagem corporal, de presença no
entanto fortíssima nos seus dois livros. Pois é nítida,
nesse sentido, a multiplicação de pedaços do corpo
(olho, braços, pernas, joelhos, boca, costas, mão) ou de
formas variadas de contato corporal (roçar, beijo, tatuar, massagear,
coçar), percursos vários de "mão exígua/ sobre
o corpo", como fontes imagéticas dos poemas. Chega-se mesmo a figurar
o poema como um "catalogar os sentidos", como "andanças da pele".
E a falar em "dedo palavra", "corpo imaginação". Parecendo,
por vezes, produzir-se uma espécie de identificação,
de visualização, corporal para o sujeito e o poema. Movimento
que se faria acompanhar, de modo quase imediato, entretanto, pelo seu avesso,
por um "prazer do decomposto", pelo tremor, por um despencar, por uma "medida
de sombra", um "corpo disforme", desdobrado em pregas, partes, ruídos,
cansaço, dissociação, ou por um súbito "sumiço".
Sumiço no qual se inclui, de certa maneira, até mesmo o poema,
convertido em "desejo sempre outro", "desejo involuntário" da poesia,
e, como tal, indício bem mais de falta, ausência, do que de
corporalidade imediata.
E é exatamente na transformação
desses movimentos contraditórios - a intensa corporalidade do seu
sujeito lírico ao lado de uma tendência decompositória
equivalente em aspecto fundamental de sua prática poética
que se singulariza o diálogo empreendido por Dora Ribeiro com os
modelos - expressivo e reflexivo - de imaginação literária
dominantes no seu período de formação. E que, desviando-se,
por meio desse desdobramento antagônico, de certa dicção
sublime que imprime a algumas de suas abstratizações poéticas,
constrói alguns dos melhores textos desses dois livros. E de um
período que, entre "booms poéticos de mídia",
costuma ficar ao largo de qualquer consideração crítica.
Flora Sussekind se reveza neste espaço com Silviano Santiago, Luiz
Costa Lima e Sérgio Paulo Rouanet