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Fui Eu 

Marlise Vaz Bridi
Imagem puxa palavra


Há quem tenha dito, por previsão certeira da própria fama, que o poeta é um fingidor. Outro, cuja visão passava por conceitos que o politicamente correto desautorizaria, que o poeta é a antena da raça. Se tirarmos uma visão das dobras de tempos remotos, encontramos o poeta como aquele cuja palavra pinta: a palavra pintada. Entretanto, se a nossa sensibilidade não pode descartar, por excludente, nenhuma dessas percepções da atividade do poeta, como nenhuma de tantas outras sínteses que pretendem apanhar o sentido do ser poeta, da palavra poética ou do fazer poesia, essa multiplicidade que não se pode em última instância reduzir a nenhuma definição, talvez possa ao menos apontar para mais uma direção: o poeta é um leitor.

Antes de tudo, o poeta é um leitor do mundo. Os poetas, de maneira muito peculiar e própria, sempre falaram do mundo à sua volta: representaram, refletiram, deformaram, torceram, distorceram, atuaram, montaram, criaram o mundo à sua volta; a relação dos verbos que caberia nesta série seria infinita para fazer justiça à palavra poética e àqueles que a engendram. 
Leram também o mundo que dentro deles, poetas, ou no íntimo dos homens se compõe em imagens: a poesia é religiosa, profética, mítica, onírica, “inconsciente”, misteriosa, inspirada ou “pirada”; e, novamente, a série em que esses atributos da poesia se inserem poderia expandir-se quase tanto quanto são os poetas e os poemas que lêem o mundo interior.

Os poetas lêem-se, obsessivamente, uns aos outros. A poesia é sempre contemporânea de si mesma e os poetas de todos os tempos, no limite, são todos coetâneos: há um encadeamento entre os poemas de sempre, ecos de vozes de outrora no hoje, “antecipações”, filiações, famílias, releituras, enfim. As palavras (e as palavras são o cerne da poesia, nascente e foz do poema) são o elo entre os poetas, amálgama entre as formas poéticas que duram, desdobram-se e dissolvem-se ao longo do tempo. A palavra poética, num só compasso, renova e fixa a língua, produz e reproduz modelos, constrói e destrói expectativas, num contexto em que os poetas criam seus próprios leitores. O habitat do poeta é o ritmo, a prosódia e a dicção. Indivíduo, mas reconhecível pela espécie, forma uma coletividade, uma irmandade, uma confraria da palavra.

Em síntese, o olhar do poeta tudo lê em forma de poesia. O poema é a leitura que o poeta realiza através dessa forma específica de olhar. Quando se dirige para fora de si, o poeta lê a natureza, a cidade, os homens (na primeira ou na segunda), os objetos e as coisas  que ocupam os espaços, a história, a memória social, enfim, o “sentimento do mundo”. O olhar para dentro de si ainda produz a leitura de tudo isso, mas em clave interna, onde sensações, sentimentos, intuições, aspectos subjetivos, psicológicos, afetivos, emocionais eclodem em imagens, em palavras.

Torna-se essencial destacar esse último componente da poesia: não se trata da leitura do mundo exterior ou interior enquanto representação temática de tais universos, mas estes são a fonte das palavras que brotam no poema, elas próprias (as palavras) uma nova realidade, material e objetiva, a ocupar seu próprio espaço no mundo.

Dentro dessa ordem de idéias, há um tipo particular de leitura: aquela que os poetas realizam a partir de outras linguagens, ou seja, a poesia que dialoga com as outras artes.  Outras manifestações artísticas (que são, em suas próprias linguagens, leituras do mundo) são provocações à sensibilidade  do poeta. A música, as artes plásticas, o teatro, o cinema, a fotografia, todas as linguagens da arte se entrecruzam, em maior ou menor grau, em suas manifestações e tal proximidade (ou distanciamento) pode ser observada ao longo do tempo, em função de fatores pontuais como o desejo de atingir a arte total (que se utilizaria de todas as linguagens artísticas) como num certo momento da história da ópera e do teatro, ou como a crença no máximo da especialização, em que o artista crê ser o portador - especialista de uma única linguagem.

É inegável que os artistas se sentem provocados uns pelos outros. Há uma espécie de contágio entre as linguagens onde uma obra de arte, em qualquer linguagem, ao tocar a sensibilidade de um criador, produz nele um impulso à criação em sua própria linguagem. E essa criação, produzida em outras bases, por ser em outra linguagem, acaba sendo frutificada pela linguagem da criação de origem. Daí ser possível falar, com propriedade, da linguagem cinematográfica deste ou daquele ficcionista, das relações entre poesia e música num determinado poeta ou no todo de certo movimento literário.

Este trânsito entre linguagens é, em última instância, o que se dá em relação a esta antologia organizada por Eunice Arruda, ela mesma poeta participante do projeto: diante do público, colocam-se as 41 leituras poéticas de um quadro – fui eu –  de Valdir Rocha. Processo estimulado, ou seja, sem a espontaneidade de um ato nascido de um encontro fortuito entre duas linguagens (a pictórica e a poética), nem por isso deixou de ser instigante aos  poetas convidados a participar do jogo. Diante da imagem do pintor, captada em linhas, cores, formas e massas, os poetas produzem outras, de palavras compostas. Entretanto, os poemas que a partir do quadro surgiram, nem sempre deixam entrever as relações com ele; linguagem matizada e plena de sutilezas, a poesia quase sempre engana os incautos. Mas quando, ao contrário, as simetrias parecem evidentes, com certeza poderá o leitor desconfiar: a poesia sempre esconde as mais fundas sugestões em suas dobras e recantos, guardando-se das obviedades e investindo em estratos mais profundos para construir sua significação. 

Se não há como realizar nessa introdução qualquer esboço de interpretação dos poemas, já que cada um demandaria extenso percurso  por todos os planos da construção de sua significação profunda, cumpre ao menos assinalar a grande variedade formal que o conjunto dos poemas abarca, sem deixar de lembrar que, quer em poesia quer em pintura, a formalização é, ela mesma, plena de sentido. Percorrendo uma gama expressiva em que nem mesmo a forma fixa é descartada, no conjunto os poetas representam a liberdade da poesia contemporânea, onde uns, elegendo o sintético-visual, e outros, o analítico-discursivo, estabelecem um diálogo com a obra de Valdir Rocha, enquanto leitores produtivos, que respondem ao estímulo da imagem da maneira mais apropriada: com o estímulo da palavra poética aos que, através dela, lerão muitos mundos. Confesso (a quem me souber ler) que reencontro aqui alguns dos meus poetas e muito do meu mundo.



Marlise Vaz Bridi
Doutora em Literatura Portuguesa, professora da Universidade de São Paulo e da Universidade Mackenzie, onde coordena o Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Letras.
 


                                       poema da antologia Fui Eu

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