O Álvaro
de Pessoa
Poesia de Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa.
Companhia das Letras, 600 páginas. R$ 43
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, a 13 de
junho de 1888. No decorrer da vida, escolheu empregos de
meio período, com renda módica. Dedicava a outra metade do
seu tempo à poesia, atividade em que se tornou conhecido
como Fernando Pessoa — ou melhor, Fernando Pessoa Ele
Mesmo. O estranho acréscimo no sobrenome se justificava
porque Pessoa, alternando-se entre os cafés lisboetas e o
isolamento radical, esmerou-se em criar não apenas alguns
dos melhores poemas da literatura ocidental, como alguns dos
melhores poetas dessa mesma literatura.
A tendência para ser outro, para outrar-se, como dizia, fez
de Fernando Pessoa criador e administrador de “eus” —-
foram mais de 70 ao longo de vida não muito longa (morreu
em 1935). Se na literatura são comuns pseudônimos, seu
caso é único, porque criou heterônimos:
poetas-personagens, com estilos próprios, portadores de
biografias distintas.
Álvaro de Campos foi o seu heterônimo mais escandaloso e
febril. Influenciado pelo futurismo italiano, o engenheiro
Campos cantava o fascínio moderno pelas máquinas e pela ciência,
mas sem deixar de associar esse fascínio à dimensão trágica
da existência humana: “O binômio de Newton é tão belo
como a Vênus de Milo. O que há é pouca gente para dar por
isso”. A edição brasileira de “Poesia de Álvaro de
Campos” reúne a produção completa deste poeta que, não
tendo existido, no entanto “viveu” tão intensamente —
porque, como diz um dos seus versos, “a recompensa de não
existir é estar sempre presente”.
O volume, organizado por Teresa Rita Lopes, segue as indicações
do próprio Fernando Pessoa, que havia previsto um livro
apenas com os poemas de Álvaro de Campos. Teresa lembra que
a 1 edição da obra completa de Pessoa surgiu em 1944, nove
anos após a morte do poeta, através da editora portuguesa
Ática, organizada por João Gaspar Simões e Luís de
Montalvor. Em 1960, a editora Aguilar, do Brasil, lançou
nova obra, supostamente mais completa, coordenada por Maria
Aliete Galhoz. As edições posteriores repetiriam, até
1990, ou a Ática ou a Aguilar. A partir dessa data
descobrem-se novos fundos falsos na arca de Fernando Pessoa,
provocando diversas edições críticas, no Brasil e em
Portugal, que divergem entre si em determinados poemas ou
versos, acréscimos ou correções. Teresa Lopes critica
explicitamente uma dessas edições críticas, a de Cleonice
Berardinelli, por “mestre-escolarmente” procurar
“corrigir” o que seriam falhas do poeta, além de
algumas omissões e adulterações de versos.
Mas esse debate entre filólogos pouco interessa ao leitor
como o somos, embora nos beneficiemos não pouco do inestimável
trabalho tanto de Cleonice quanto de Teresa. Resta-nos, na
verdade, a oportunidade imperdível de redescobrir a febre
poética de Álvaro de Campos. Bernardo Soares, o heterônimo
romancista, no parágrafo 117 do “Livro do desassossego”
já determinara que “toda a literatura consiste num esforço
para tornar a vida real”. Todos deveriam saber que a vida
é que é absolutamente irreal: “Os campos, as cidades, as
idéias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da
nossa complexa sensação de nós mesmos”.
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