in Jornal O Povo, 07/03/97Fernando Pessoa, poeta múltiplo como o universo, assumiu a Arte como uma missão, ao viver abissalmente para a criação mito-poética de suas personas, podendo ser comparado a Shakespeare, Van Gogh e Artaud, que viveram para a Arte ao assumir a existência como um ritus, onde a Arte tinha que ser o centro de tudo, ter um caráter duplo de vida e de morte. Pessoa despersonaliza-se no labirinto da linguagem e nela cria seu palco como um autêntico Dionisos, fazendo emergir os outros Eus tão distantes e próximos de seu olhar. Tece esse fio criador e percorre como Dédalo o labirinto da criação. E nele ri... chora... canta... morre... nasce e expande-se, através das máscaras Chevalier de Pas, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares, Alexander Search, Fausto, as veladoras do Marinheiro e tantas outras que brotam do seu Ser. Construindo esse universo ficcional e tão real, já que Fingir é Conhecer-se, Pessoa pasma-se e, num êxtase dionisiano adentra as trevas inebriando e encantando as almas como Orpheu. Na ágora do imaginário povoa o mundo com seus versos, que falam da humanidade. Ele já não sabe, sabendo que não é, sendo o Guardador de Rebanhos, o poeta da natureza, o mestre de Si e dos Outros, já que seu criador o quis. A persona Caeiro negando a especulação das subjetividades metafísicas interpreta o mundo a partir dos sentidos: ``Penso com os olhos e com os ouvidos/ E com as mãos e os pés / E com o nariz e a boca''. A fragmentação faz-se, e eis que se instala a tragicomédia na criança de outrora, que brincava de ser outros, um certo Chevalier de Pas, que fazia da existência de Pessoa uma festa, possibilitando-lhe o vôo da dissimulação: ``Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. Esse mundo tão diverso, onde várias são as vontades e as procuras, gera a inquietude num sujeito, cujas máscaras insistem em fazer-se vida e a vida é gerada palavra a palavra num outro'' - Eu Álvaro de Campos, o qual assume também a multiplicidade e já se torna outros. Álvaro de Campos constrói a Ode Triunfal e brinca de ser máquina, uma certa máquina de um progresso que pulsa das entranhas do homem para o que supostamente chamamos realidade: ``Ah poder exprimir-me todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma máquina! / Poder ir na vida triunfante como um automóvel último modelo!''. E a realidade é para Campos um outro caminho que o conduzirá por um infinito mar, em que o homem torna-se o arquétipo do navegante ritualizando as pulsões marítimas, passível do prazer e da dor. ``No mar, no mar, no mar, no mar, / Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas, / A minha vida! / Salgar de espuma arremessada pelos ventos / Meu paladar das grandes viagens''. O Sensacionismo de Campos ultrapassa limites e numa vertigem insaciável busca na Passagem das Horas. Ele procura como seu próprio criador o afago em um cigarro de uma certa Tabacaria longe do tempo e do espaço, mas também dentro do tempo e do espaço, onde se presentificam todas as tensões existenciais. A encenação é o Nada, o Nada é a vida, e a vida é também a possibilidade do sonho: ``Não sou nada/ Nunca serei nada/ Não posso querer ser nada/ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo''. A aventura de Campos, por seu labirinto interior, procura atingir múltiplas paisagens e seu olhar se lança para uma paisagem arquetípica presente na Noite, a grande deusa dos mistérios. Torna-se filho dessa divindade lunar e já não sabe se retorna do útero originário. As máscaras da noite cedem às do dia e Apolo sorri ao receber a taça de Dionisos. Ricardo Reis surge de Pessoa e passa a caminhar por um tempo de ninfas, musas e sábios. O nada em excesso, a medida de todas as coisas manifesta-se na disciplina desse epicurista, cujo prazer está nos limites do homem diante da potência trágica do destino e do tempo: ``Sofro, Lídia, do medo do destino/ A leve pedra que um momento ergue / As lisas rodas do meu carro, aterra / Meu coração. É necessário sentir a vida pensando-a, para não cometer a falha trágica, querer ser Deus ou mais que ele: Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,/ Não pertence à ciência conhecê-los/ Mas adorar devemos seus vultos como às flores''. O visionário Pessoa almeja um outro vôo, um vôo pelos caminhos do sonho e do mistério da morte em embate com a vida. Eis que se epifaniza no horizonte da finitude o olhar estático de três veladoras diante de uma morta, cuja imagem é a da vida se des-construindo no tempo. Pessoa encobre-se na imagem do Marinheiro, aquele que paira no oculto das imagens oníricas. O Marinheiro-Pessoa é o navegante construtor de um mundo todo seu onde possa manifestar seus vislumbres, configurado na segunda voz: ``Ao princípio ele criou as paisagens; depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-a na matéria de sua alma. Pessoa saboreou longas horas Shakespeare e, talvez, para aplaudí-lo, deu-lhe de presente O Marinheiro, onde se concretiza o que Joyce falara: a emoção trágica, ou antes, a emoção dramática, tem um caráter estático. O palco pessoano é também a presentificação dos heróis, dos mitos e dos deuses de uma pátria procurada por Pessoa - aquela que não mais voltará, por ser inacessível aos filhos de Géia. Resta-lhe, então, cantá-la na Mensagem para que se consubstancie no mundo da Arte. A Mensagem presentifica a persona épica de Fernando Pessoa em cada voz, seja a de Ulisses: ``O Mitho é o Nada que é tudo/ O mesmo sol que abre os céus /É um mitho brilhante e mudo - ? O corpo morto de Deus, / Vivo e desnudo''. A de D. Diniz: ``Na Noite escreve em seu Cantar de Amigo/ O plantador de naus e haver/ E ouve um silêncio murmuro comsigo:/ É o rumor dos pinhaes que, como um trigo/ De Império, ondulam sem se poder ver''. A de D. Sebastião: ``Louco, sim, louco, porque quiz grandeza/ Qual a Sorte a não dá./ Não coube em mim minha certeza:/Porisso onde o areal está/ Ficou meu ser que houve, não o que há''. Como nos diz Augusto Seabra, a poesia de Pessoa é vista, fundamentalmente, como um jogo do ``vivido'' imaginário, como um ``poetodrama'', mais do que como o drama do imaginário vivido. O labirinto se amplia em curvas e Pessoa é, na verdade, um grande e misterioso baú, donde podem infinitas personas emergir para povoar o grande palco da Arte. Ele ainda brinca de ser Bernardo Soares, o guardador de livros, de Alexandre Search, o fidalgo Barão de Teive, o periodista satírico francês Jean Seul. Vicente Guedes, Mr. Cros, Antonio Mora, Fausto e percorrendo o universo do Eu do Outro como um irreverente Hermes, deixa vir à lume a possibilidade da multiplicidade, do artista apreender o mundo em várias perspectivas e cosmovisões e assim poder se encontrar no desconhecido labirinto da vida, plena de palavras, des-velando emoções, sentimentos e paixões, fazendo-nos sentir-se plural como o universo. |