Já se disse que todo poema real é, em si mesmo, um equívoco.
E Rilke, não sem um travo de melancolia, anotou que a fama é
a soma de todos os mal-entendidos. Mas, apesar de tudo, o poema é
lido uma ou outra vez, ao longo do tempo e, frequentemente, com leituras
diferentes. Nada, porém responde à pergunta: — como se lê
um poema?
Este é o caso curioso do tríptico de Gerardo Mello Mourão
- "O País dos Mourões", "Peripecia de Gerardo" e "Rastro
de Apolo". Ha uma leitura crítica, entregue à perspicácia
de profissionais, pessoas habituadas ao trabalho de ler. Ha uma leitura
poética, ha uma leitura de amador, a dos que têm o gosto desinteressado
da leitura - e ha também o olhar distraído em alguns leitores
ocasionais.
A crítica tem recebido o tríptico de Gerardo Mello Mourão
como expoente grande da poesia de língua portuguesa. Alguns poetas
importantes saudaram o texto como um acontecimento e sabemos de pessoas,
dentro e fora do Brasil, que dele conhecem fragmentos e os guardam de memória.
Poderia pensar-se que a natural polissemia de todo real poema permite muitas
razões de elogio, como no caso - ou de crítica. Mas vale
a pena sublinhar que os elogios assinalam um conhecimento, ou melhor, uma
revelação da força viva no nordeste do Brasil: a riqueza
da língua aberta em todo o seu leque de possibilidades, a densidade
cultural, a decisão nas idéias e, por último, o lirismo
que invade todos os seus mananciais.
Todos esses acessos existem - são - como assinala a crítica.
Mas com acessos poéticos que deveriam conduzir a medida do texto,
ao rio íntimo do poema. Será que conduziram? Ao que parece
- pelo menos até agora - isto não foi feito de forma cabal
e desse modo, o tríptico, seja como for, ainda permanece ilegido.
Tratemos de aproximar-nos do dilema que se esconde sempre em todo verdadeiro
poema. É possível pensar que o conhecimento histórico,
psicológico, etc., do nordeste do Brasil seja também patrimônio
de algum historiador ou ensaista, pelo menos com a mesma intensidade
com que o revela Gerardo Mello Mourão. Da mesma forma, um bom gramático
-"Grammatikon": - ( a língua portuguesa pode pensar a linguagem
numa riqueza pelo menos semelhante à do poeta: outras pessoas
realmente cultas, com estudos humanisticos, formação poética
moderna e leituras filosóficas poderão ter um nível
pelo menos igual ao do autor do poema, inclusive a força de exposição
de idéias pode equiparar-se à de um bom orador político.
Dizia Vico que a fina flor da cultura era levada a seu grau mais característico
pela civilização refinada. E que era atributo desta civilização
a paixão do tédio. No tédio se produz a maior distância
entre fatos, coisas e pessoas. Uma geografia sutil, dolorosa e sedutora
conclui por deixar afundar-se um mundo, paulatinamente, em sua própria
névoa. Acrescenta Vico que que, diante de tal momento histórico,
em alguma parte - e ele pensava nos dórios bárbaros diante
do requinte inaudito do cretense - outra cultura mais "incipiente",
ligada ainda às forças surdas da espécie, é
capaz de abrir-se e, sob a admiração que lhe desperta a outra,
ser capaz de reiniciar o testemunho.
O tríptico de Gerardo Mello Mourão se estende desde esse
fosso - ou verdadeiro planeta - que o poeta desnuda e descobre em seus
ancestrais e em suas terras lendárias, até o chamado, o clamor
aos deuses gregos.
E já não é a presença física do deus,
como foi na antiguidade, nem tão pouco a prsença da ausência,
segundo Heidegger. É o rastro. A presença visível
e tátil, não já de uma audência, mas a de indicar-nos
um deus nestes tempos, como um rastro. Senha, convite, caminho. E
o poema se estende como uma verza eregrinação. Só
com a devoção ao rastro ocidental de luz e liberdade, e assumindo-o
com o que realmente temos - os americanos - de melhor: - o fruto bárbaro
da empresa que abriu a terra em solo: somente assim, a América,
ao assumir-se a si mesma, abre - ou abriria - mundo ao mundo.
O canto nos assinala a proeza de nos recuperar, como Anteu ao tocar a terra
- a origem - e origem ocidental. É outro modo que não o de
Heidegger. Não por um pensar a técnica, mas pelo rastro do
rastro do pé divino. Selva, sertões, pampas e Grécia.
E a pretensão implícita é assinalar a América
e a nossa - tão maltratada - América Latina, como fundamento
do mundo. Lautréamont dizia que a poesia não se ocupava dos
eventos históricos nem da política, porque ela é que
produz a lei que permite a política e a história. Está
posta em tela de juizo a América, tal como a América deveria
interessar aos antropólogos, historiadores, sociólogos e
políticos, para que façam uma revisão "de fond en
comble" da orientação que têm perfilhado. Todos se
enquadram sob uma latente ideologia econômica, seja a que se pretende
social, de mercado, seja a que passa pela planificação, seja
a que vai aos diversos marxismos.
Muito outra é a aventura que se inaugura nesta voz poética,
que é "o digno de pemsar-se". Esta enumeração pretende
indicar que não são essas as razões que fazem com
que um texto seja poético. Nem sequer o fato de que um autor possa
reunir todas essas qualidades, fazendo de um texto um poema. E embora seja
uma tarefa impossível tratar de buscar uma retificação,
indicaremos certos parâmetros do poema. A verificação
é própria da ciência - objeto definido, método
próprio. - Pius Servien costumava dizer que a linguagem traduzível
era a L.S. (**) e a linguagem inamovível, que não podia dizer
de outro modo o que dizia, era a L.L.(***)
O poeta, em sua certeza interior, se apaga e busca como um cego, para lá
dos prêmios e da fama, aquilo que sabe impossível: uma verificação.
Feita esta ressalva, digamos, para começo de conversa, que o tríptico
põe em questão, radicalmente, a América inteira.
A configuração do poema flutua sobre um sopro incessante,
constante. São as radicais bárbaras expostas num modo de
ver a morte - herança, ultraje, vingança - e uma morte que
se cobra no duelo ou no mero crime, e no sangue ou no sexo que supõe
a paixão e o rapto. A partir dessas radicais "bárbaras",
ha uma tensão e um clamor pelo retorno à fonte mesma do ocidente
- supondo a vivência da ocidentalização originária
do continente. E essa fonte é a Grécia, mais especificamente,
a presença de Deus - e da luz - intelligere - e da liberdade - Apolo.
Pois bem: as características fundas e bárbaras que falam
de uma relação com a terra, para constituir com a mesma carne
humana, um solo, são as mesmas no Ceará, nos "llanos"e na
selva da Venezuela, nas Patagônias e ali onde (nos Estados Unidos,
essa batalha travada na rala densidade de nossa história abriu um
campo ou uma "pátria". Mas lonje de uma reminiscência "folclórica",
lonje de um retorno indigenista, lonje de uma descrição melancólica
de um mundo em desaparecimento ou de um grito de cólera que cubra
o ressentimento contra o presente (as literaturas americanas em moda),
Gerardo Mello Mourão lança a âncora na latitude simples
e crua do sexo e da morte - os dois momentos que movem e manifestam a espécie
em sua primogeneidade. Para quem? Por que?
Ouçamos um instante a Vico. O pensador napolitano assinalou nos
ciclos históricos uma encruzilhada que nos iluminará as respostas.
Claro está que se o poema fosse poema pelo que acabamos de dizer,
não seria necessário. Acontece que um poema é tal
não apenas pelo que diz e como diz. É necessário construir
com as palavras e o significado é só um dos dados da palavra:
um objeto poético.
Gerardo Mello Mourão constrói com uma leveza incrível,
como um engenheiro alado. Na transmutação do canto sobre
a palavra, uma metáfora lúcida, um encadeamento de vogais,
um cambiante de melodias e sucessivas transposições que vão
quebrando os pés da língua. Eleva-se em palavra um rregistro
do nascimento literariamente transcrito: uma crônica de jornal, a
realidade de familiares, amigos e inimigos. Não é caleidoscópica
a figura geral do poema, embora alguns assim o hajam pensado. Não
se busca o efeito da multiplicidade pela multiplicidade em si. Tudo se
liga à trajetória que está presente, inteira, em qualquer
parte do poema - a responsabildiade bárbara e admirada diante do
rastro do deus - de outro deus que é sempre o mesmo deus. Toda a
cultura entra em campo. Não é Virgílio uma citação
de Homero, e Dante uma citação de Virgílio? Até
Santo Agostinho os textos eram impessoais: ninguem imaginava que não
tinha que citar ou nomear o citado.
Shakespeare é um bom exemplo. As expressões portuguesas mais
refinadas se entrelaçam com as mais comuns e as formas vão
desde os longos versos cadenciosos a formas popuplares do cancioneiro.
A rima intervém como uma mudança de veículo e o poema
se joga no difícil e estrito verso livre. O objeto poético
assim construído denota esse vazio da "mise-en-question", esse deixar
suspendida a América diante de seu eventual destino.
Denota o que indica graças às construção. Deixa
de lado as "poesias" panfletárias, as poesias"de máximas,
as teses, a necessidade de provar. Mas, também para nós,
diante da necessidade de provar, se perde o rastro poético. O poema,
finalmente, não deve provar nada. Seria necessário repetir,
com relação a esse poema, o que dizia Heráclito sobre
a Sibila: - ela não diz, indica. Efetivamente, nosso discurso sobre
o poema é, por sua vez, uma pura encruzilhada, pois não podemos
alcançar o que não é próprio de sua natureza.
Et pourtant..."
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