Guerra Junqueiro

Fome no Ceará
 
 
 


    Lançai o olhar em torno; 
    Arde a terra abrasada 
    Debaixo da candente abóbada dum forno. 
    Já não chora sobre ela orvalho a madrugada; 
    Secaram-se de todo as lágrimas das fontes; 
    E na fulva aridez aspérrima dos montes, 
    Entre as cintilações narcóticas da luz, 
              As árvores antigas 
    Levantam para o ar – atléticas mendigas, 
    Fantasmas espectrais, os grandes braços nus. 
     

    Na deserta amplidão dos campos luminosos 
    Mugem sinistramente os grandes bois sequiosos. 
    As aves caem já, sem se suster nas asas. 
    E, exaurindo-lhe a força enorme que ela encerra, 
                O Sol aplica à Terra 
                Um cáustico de brasas. 
     

    O incêndio destruidor a galopar com fúria, 
    Como um Átila, arrasta a túnica purpúrea 
                Nos bosques seculares; 
    E, Lacoontes senis, os troncos viridentes 
    Torcem-se, crepitando entre as rubras serpentes 
    Com as caudas de fogo em convulsões nos ares. 
     

    O Sol bebeu dum trago as límpidas correntes; 
    E os seus leitos sem água e sem ervagens frescas, 
                Co'as bordas solitárias, 
    Têm o aspecto cruel de valas gigantescas 
    Onde podem caber muitos milhões de párias. 
    E entre todo este horror existe um povo exangue,  
              Filho do nosso sangue, 
              Um povo nosso irmão, 
    Que nas ânsias da fome, em contorções hediondas, 
    Nos estende através das súplicas das ondas 
    Com o último grito a descarnada mão. 
     

    E por sobre esta imensa, atroz calamidade, 
    Sobre a fome, o extermínio, a viuvez, a orfandade, 
    Sobre os filhos sem mãe e os berços sem amor, 
    Pairam sinistramente em bandos agoireiros 
    Os abutres, que são as covas e os coveiros 
    Dos que nem terra têm para dormir, Senhor! 
     

    E sabei – monstruoso, horrível pesadelo! – 
    Sabei que aí – meu Deus, confranjo-me ao dizê-lo! – 
    Vêem-se os mortos nus lambidos pelos cães, 
    E os abutres cruéis com as garras de lanças, 
    Rasgando, devorando os corpos das crianças 
              Nas entranhas das mães! 
     
     

    II 
    Quando inda há pouco o vendaval batia 
    Dos grandes montes nos robustos flancos; 
    E as nuvens, como enormes ursos brancos, 
    Em tropel pela abóbada sombria 
    Dos canhões dos titãs, aos solavancos, 
     Arrastavam a rouca artilharia; 
     

    Quando os rios, indômitos, escuros, 
    Iam como ladrões saltando os muros, 
    Para roubar ao camponês o pão; 
    E, cruzando-se, os raios flamejantes 
    Abriam como esplêndidas montanhas 
    De meio a meio a funda escuridão; 
    Quando os ventos aspérrimos, frenéticos 
    Como ciclopes doidos, epilépticos, 
                Com raivas convulsivas 
    Perseguiam, bramindo, às chicotadas, 
    Das retumbantes ondas explosivas 
                As trôpegas manadas; 
     

    Quando entre os gritos roucos da procela, 
    A fome – a loba – escancarava a goela 
                Uivando às nossas portas; 
    E andavam sobre as águas desumanas 
    Com os despojos tristes das choupanas 
    Berços vazios de crianças mortas; 
      

    Oh! nesse instante, ao ver o povo exânime, 
    Pulsou da pátria o coração unânime, 
    Um coração de mãe piedosa e boa... 
    E das imensas lágrimas choradas 
    Muitíssimas então foram guardadas 
    Entre as jóias da c'roa. 
    Mas é certo também que além dos mares 
    Alguém ouviu, alguém, cortando os ares 
                Essa terrível dor; 
    E esse alguém é quem hoje, é quem agora 
    Morto de fome a soluçar implora 
    Mais do que o nosso auxílio – o nosso amor. 
    Vamos! Abri os corações, abri-os! 
    Transborde a caridade como os rios 
    Transbordaram dos leitos em Janeiro! 
    Nem pode haver decerto mão avara, 
    Que a esmola negue a quem lh'a deu primeiro. 
     

    A miséria é um horrível sorvedoiro; 
    Vamos! enchei-o com punhados d'oiro, 
    Mostrando assim aos olhos das nações 
    Que é impossível já hoje (isto consola) 
    Morrer de fome alguém, pedindo esmola 
    Na mesma língua em que a pediu Camões!
     

    Nota  -  Poema extraído do livro A Musa em Férias, da 2ª edição de OBRAS de Guerra Junqueiro (Poesia), Organização e introdução de Amorim de Carvalho. Porto: Lello & Irmãos - Editores, 1974, pp. 744-747. Este poema é de 1877, justamente quando se inicia a terrível seca de 1877-1879 no Nordeste e que no Ceará foi até o ano de 1880. Afirma Rodolpho Theophilo, que a estudou demoradamente, que o obituário de Fortaleza no período elevou-se a 65.163 pessoas. Fortaleza possuía então por volta de 20 mil almas, que foram acrescidas subitamente de cerca de 110 mil migrantes da seca. Herbert Smith, jornalista inglês que percorria o Brasil àquela época, foi testemunha ocular dessa seca e afirma com algum exagero que “durante 1877 e 1878, a mortandade no Ceará foi provavelmente perto de 500 mil, ou mais da metade da população”. [Brazil: The Amazons and Coast. New York: Charles Scriber’s Sons, 1879, p. 416]. No poema, Guerra Junqueiro faz alusão à célebre frase que Dom Pedro II teria pronunciado acerca das jóias de sua coroa... ( Fortaleza, 1º de Janeiro de 1998, Eduardo Diatahy B. de Menezes)