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ENTREVISTA Inhamuns via Grécia
O poeta
Gerardo Mello Mourão, autor do épico Invenção do
Mar esteve em Fortaleza a convite do Instituto
dos Arquitetos do Brasil, para uma palestra. Nessa
conversa ao Vida & Arte, ele nos fala sobre a
cidade, a literatura, os ritmos gregos e sertanejos,
Luiz Gonzaga, os políticos do
País...
Eleuda de Carvalho
da Redação
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O poeta Geraldo Melo
Mourão, 84 anos: "A Grecia é aqui" |
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02h30min]
Veio de um clã poderoso,
tataraneto de senhores de baraço e cutelo que lideraram
uma guerra fratricida contra os Feitosa, no alto sertão
dos Inhamuns. Gerardo Mello Mourão nasceu sob o signo de
capricórnio, em janeiro de 1917. Menino, vai morar em
Crateús, ainda sob o sol de fogo do sertão cearense.
Nesse tempo se dá conta da violência dos homens: uma
parte da Coluna Prestes passa por ali, os corpos das
vítimas perseguidas e de seus perseguidores ficam
expostos na calçada de sua casa. Lembra-se também dos
cangaceiros, dos cavaleiros e suas armas rebrilhantes
fugindo em estrepolias.
Aos 11 anos, Gerardo é
aluno do seminário redentorista, em Congonhas do Campo,
Minas Gerais. Chegou a tomar o hábito negro da
irmandade, mas à pureza monástica preferiu a vida
dionisíaca. Começam outras peripécias de Gerardo. A ida
ao Rio de janeiro, o encontro fatal com Tristão de
Ataíde, que o levou para o integralismo. Em 1938,
Getúlio Vargas, de uma penada, envia para o xadrez
militantes à direita e à esquerda, Gerardo amargou seis
anos de sol quadrado. Na cadeia, escreveu uma de suas
obras primas, o romance O Valete de
Espadas. Entre o jornalismo e a ficção, foi
correspondente da Folha de São Paulo na China, escreveu
outras belezas, como a trilogia épica Os
Peãs (reunião de O País dos
Mourões, Peripécia de Gerardo e
Rastro de Apolo).
Sua mais ousada
e recente criação literária é outro poema épico, A
Invenção do Mar, que ele dedica a Luiz Gonzaga,
o ''Homero sertanejo''. Depois de Os
Lusíadas, de Camões, e do
Mensagem, de Fernando Pessoa, é esta
epopéia em 400 páginas do escritor brasileiro que traz
outra vez à tona a saga dos portugueses no século 16. Em
97, Gerardo foi eleito pela Guilda Órfica (uma irmandade
de poetas que existe desde 1500) o poeta do século 20.
Poliglota, viajante do mundo, Gerardo Mello Mourão diz:
''a Grécia é aqui no Ceará''.
Vida &
Arte - Você, que constrói estruturas com
palavras, veio abrir o II Seminário Nordeste de
Arquitetura. Como foi este convite? Gerardo
Mello Mourão - Recebi com certa surpresa, pois
não sou arquiteto e nem intelectual. A palavra
intelectual, aliás, foi cunhada por Clemenceau. Me
lembro do Gide, pai da moderna vida literária da França,
nos anos 60, num congresso de intelectuais, disse: ''Não
sou um intelectual, sou escritor''. Mas até tenho
ligações profundas com a arquitetura. Fui professor, sou
até hoje, aposentado naturalmente, da Escola de
Arquitetura da Universidade Católica do Chile em
Valparaíso. Uma pequena escola de arquitetura que é,
talvez, o mais abalizado centro de formação de
arquitetos em todo o mundo. E tem uma história singular.
Por volta de 1950, o reitor da universidade chamou um
grupo de poetas e nos reunimos diariamente num salão em
Santiago com arquitetos, pintores etc, e aceitamos ir
para lá com carta branca para estabelecer os currículos
da escola. Foi um programa único no mundo. Estudava-se
Aristóteles. Davam-se quatro diálogos de Platão, dois
cantos da Eneida, dois da Ilíada
- traduzidos, comentados. Porque tudo está muito
ligado à arquitetura. Estudava-se música. Todo ano
tínhamos três ou quatro seminários poéticos. Estudava-se
uma matemática muito sofisticada, a de Boole. Ele foi um
irlandês louco que fundou uma nova matemática revogando
a velha matemática euclidiana. Dizia ele que sua
matemática se fundara sobre alguns hexâmetros de Homero.
Boole foi fundamental para Planck, quando fez a Teoria
dos Quanta, para Einstein, na Teoria da Relatividade e
nos nossos dias para a Teoria da Indeterminabilidade, do
Heisenberg. Le Corbusier escreveu uma carta, um ano
antes de morrer, em que dizia que se tivesse de estudar
arquitetura escolheria ''uma pequena escola debruçada
sobre um penedo em frente ao Pacífico, em Valparaíso''.
Ele legou seu ateliê a um de nossos alunos.
V&A - Além dessas ligações
intrínsecas, você vê a arquitetura como poesia...
GMM - A arquitetura é poética. Há um
livro muito bonito, que se chama Eupalinos
ou ''O Arquiteto'', do Paul Valéry, o poeta.
Que, por acaso, era professor de geometria. É um diálogo
entre Sócrates e Fedro, uma beleza, não sobra nem falta
uma palavra. Ele disse: ''O arquiteto é o sujeito que
sabe tudo e o contrário de tudo''. O arquiteto não é um
especialista. O especialista, como dizia Miguel de
Unamuno, é o sujeito que sabe cada vez mais sobre cada
vez menos. O arquiteto precisa conhecer a matemática, as
matérias de construção, a madeira, o ferro, o barro. O
mole e o duro, o sólido e o líquido, o alto e o baixo, o
grosso e o delgado, tudo e o contrário de tudo. A
finalidade é fazer com que, o Sócrates é quem diz, é
trabalhar a pedra até que a fachada cante. O Heinzinger,
antropólogo, disse que o primeiro homem foi um
arquiteto. E a primeira obra das mãos do homem foi a
arquitetura. O homem, no seu primeiro dia, se defrontou
com a necessidade de aparelhar uma gruta ou uma casa de
palha ou barro, qualquer coisa, para se abrigar contra o
furor das feras, o furor dos ventos, o furor do frio.
Tanto é que em nossa língua a palavra morar e a palavra
viver são sinônimos.
V&A - Mas
hoje vive-se cada vez pior nas cidades. GMM
- Le Corbusier disse, uma casa é uma máquina de
morar. Não tinha nada de desumano. Quando ele diz uma
máquina de morar, ele tomou como proporções, medidas,
padrão, os soldados da guarda escocesa do palácio de
Buckingham, em Londres, com quase dois metros de altura.
A cidade é o convívio dos homens. Eu falei no encontro
aqui sobre a cidade nordestina, que é a cidade inicial
do mundo, a cidade grega. A nossa cidade inicial se
reduzia a um retângulo de quatro ruas. No meio, o
morador principal, que era Deus, a igreja. Nem sei se
hoje se usa a nomenclatura, mas quando eu era menino em
Ipueiras, em Crateús, a gente ia passear no quadro, que
significa o coração da cidade.
V&A -
Qual seria, então, a função da cidade
contemporânea? GMM - A cidade é uma
coisa muito humana, vem da necessidade dos homens
estarem perto uns dos outros. No mundo moderno, com o
avanço da tecnologia e esse mundo terrível que se criou,
as cidades se tornaram conglomerados de ilícitos. Hoje,
a luta do homem é para humanizar a cidade. Não sei se
está correto isso de esvaziar as cidades, como se
pretende fazer em Londres. A cidade tende a crescer e
vai crescer sempre, não há força política nem econômica
que a detenha. A cidade proporciona ao homem melhores
condições de vida, acesso aos bens do progresso. Na
Grécia, se consultava o oráculo de Apolo para se saber
aonde construir uma cidade, o oráculo respondia: onde
houver oliveiras para dar o azeite das candeias; onde
houver uma várzea, para que se plante trigo para o pão;
onde houver um prado, para crescerem os borregos e as
ovelhas para darem a carne e a lã. E a uva, para o seu
vinho. Eram as necessidades elementares. Hoje somos
escravos de todas estas necessidades modernas, que se
tornaram uma segunda natureza do sujeito.
V&A - Sendo assim, para onde
tende a cidade atual, para onde vamos? GMM
-A Bélgica, que eu conheço. Toda ela é uma
cidade única, não é Antuérpia, nem Bruxelas, é a
Bélgica. A Holanda é uma cidade única, a Suíça. A maior
cidade do mundo não é a Cidade do México, nem São Paulo,
Tóquio, Xangai. A maior cidade do mundo é o Vale do
Reno, na Alemanha. A Renânia é um rosário de cidades que
se emendam. Doxíades, este grande arquiteto e urbanista
grego -foi trazido ao Brasil por Carlos Lacerda, homem
muito imaginoso -, disse que a médio prazo, isto é, na
história, cem anos, Rio e São Paulo serão uma cidade
única, uma megalópolis interligada. O problema da
arquitetura e do urbanismo é humanizar, tornar habitável
a máquina de morar que inventamos. No fim do século 18,
um economista inglês chamado Malthus criou uma doutrina
em que ameaçava: o mundo ia morrer de fome dentro de 50
anos. O planeta seria incapaz de produzir alimentos para
dois milhões de pessoas. A teoria malthusiana era
inteiramente vã e tola. O problema de alimentos no mundo
não é de escassez mas de excesso e má distribuição. O
planeta todo talvez tenha um bilhão de famintos, na
Ásia, na África, o continente da fome. O Brasil
desperdiça, segundo esses técnicos lineares do
Ministério da Agricultura, 48% da produção agrícola. E o
desperdício é enorme em todo o mundo. Hoje quer se criar
um malthusianismo da arte de morar. Há palmo de chão no
planeta para os seis bilhões e muito mais. O que há é má
distribuição desses palmos de terra. Não precisa ser
revolucionário nem participar do Movimento dos Sem Terra
para saber isso, mas criou-se uma superstição e um dogma
pétreo sobre a propriedade da terra. É uma coisa para
ser revista.
V&A - As
perspectivas, então... GMM - Nos
países mais adiantados já há soluções. Tenho um amigo
paulista, desses grandes milionários brasileiros, tem
iate, avião. E a filha casou-se com um professor
dinamarquês. Meu amigo chamou um arquiteto para fazer o
projeto de uma casa para a filha em Copenhague, uma casa
de 2.400 metros quadrados, como se faz aqui no Ceará, em
São Paulo. O genro disse, não pode. Aqui ninguém pode
ter uma casa de mais de 300 metros quadrados, em dois
andares. Aí você tem o uso do solo regulado, força quem
tem a vender, força que se distribua. É por aí. Você tem
que reciclar o chão das cidades.
V&A -
Como é possível pensar esse novo espaço urbano
no Brasil de hoje? GMM - Os políticos
no Brasil em geral são incompetentes e pouco honrados
com relação à função pública que exercem. Os sociólogos
não sabem nada ou quando sabem é a posteriori. Os
economistas são incapazes de chegar aos problemas
matemáticos, então manipulam algarismos num onanismo de
conta de deve e haver, em torno de uma moeda falsa ou em
torno de outra ficção, que é o câmbio. Como faz o doutor
Malan. Ele não sabe nada! Se você perguntar ao Malan
onde é o Piauí, ele não sabe. Esses homens que comandam
ou pensam que comandam o processo econômico e político
do país... Restam os arquitetos e urbanistas, que podem
sugerir e ajudar a fazer uma máquina de morar com os
objetivos com que o primeiro homem fez: para se abrigar
da fera do consumo, da fera da sociedade, das feras do
poder público e econômico. E a cidade ser uma morada do
homem na Terra. Nessa altura da vida não tenho direito
de acreditar em nada mas ainda creio que o homem seja
capaz desse milagre, se a sua consciência lhe guardar. E
tenho grande fé no saber da arquitetura.
V&A - Falemos de sua
literatura. Você foi escolhido o Poeta do Século XX,
pela Guilda Órfica; foi indicado ao prêmio Nobel de
Literatura, em 79; já postulou uma vaga na Academia.
Além de inúmeros prêmios, mundo afora... GMM
-Esses prêmios são uma coisa pouco importante. O
poeta tem que buscar as raízes da poesia, e elas estão
no pai Homero. Os poetas do sertão são Homeros em estado
bruto. No mesmo sentido que Claudel dizia de Rimbaud,
quando ele apareceu, aos 19 anos, publicando as
Iluminações. Dele disse Claudel, é um
místico em estado selvagem. No ritmo grego, como no
latino, as sílabas eram contadas pela quantidade do som.
Chamavam-se pés, em grego, o número de sílabas do verso.
Cada pé tem uma sílaba forte e duas leves - tum,
tum-tum... Isto é ritmo. Alguns dos nossos poetas
conservam este fundo rítmico musical no verso livre.
Evidentemente que a poesia moderna teve um grande avanço
quando adotou o verso livre. Quase toda a poesia de
Fernando Pessoa está com aquela notação greco-latina, um
grave, dois breves.
V&A -
É a mesma rítmica clássica que alenta os poetas
populares, os cantadores. Eles, até, chamam o verso, a
medida do verso, de pés... GMM -O
poeta popular não erra uma sílaba. Um verso popular
típico nosso é a redondilha de sete sílabas. O poeta
popular não quebra o pé nunca, ele sabe, tem o ritmo.
Inclusive, com versos altamente sofisticados, como o de
onze sílabas, o martelo, ou de dez sílabas, como o
gabinete. A obra antológica que Luiz Gonzaga cantou...
Aliás, quem inventou Luiz Gonzaga foi Humberto Teixeira.
Conheci muito. O Humberto foi quem recolheu do folclore
nordestino, deu-lhe as letras e o ritmo. O Gonzaga,
quando começou, cantava tango. Quando me perguntam quais
poetas do mundo me influenciaram, eu digo, o poeta mais
importante para mim chama-se Anselmo Vieira. Era de
Ipueiras, minha terra, está no livro
Cantadores, do Leonardo Mota. Aprendi o
ritmo de cor, se eu quiser, não é vantagem nenhuma, mas
posso conversar com você durante duas horas em
decassílabos ou em endecassílabos ou em redondilhas.
Aquilo ficou na gente. Descobri que o Ceará é a Grécia.
A paisagem seca, os homens, as mulheres carregando potes
na cabeça, com uma rodilha, uma gregazinha morena, de
olhos redondos. A Grécia é a mãe de todos.
V&A - Trouxe esses dois
exemplares para você autografar. Queria que você falasse
do romance O Valete de Espadas. Ele foi
escrito durante sua prisão, no Estado Novo?
GMM -Realmente, foi escrito na prisão,
pelo seguinte: me encontrei entre quatro paredes, com
gente estranha, passei por torturas incríveis, esta unha
me arrancaram na prisão. Eu ontem estava em minha casa,
ao lado da minha mulher, hoje estou aqui, não tem lógica
nenhuma... Comecei a escrever um conto sobre um homem
que deitava num lugar e acordava num outro, esse conto
foi se desenvolvendo. O homem tem uma irresidência na
Terra. Ontem eu estava num mosteiro, ia ser padre, meses
depois estava numa casa de prostitutas, praticamente
morando com elas, depois numa cadeia, depois metido numa
conspiração, isso não tem sentido. Disso fiz o romance.
V&A - Seu filho caçula, o
artista plástico Tunga, criou o projeto gráfico de sua
trilogia Os Peãs. Vocês costumam trabalhar
juntos? GMM - O Tunga fez também uma
capa muito bonita para o último livro de poesia meu,
Cânone e Fuga. Já Invenção do Mar
foi um livro que abalou muito. Andei muito em
Portugal, nos últimos anos. Passava quatro, cinco meses
em Lisboa, no Alentejo. Estava nesse ambiente de
comemorações, mas não tinha nada oficial no meu negócio.
Portugal inventou o mar. É uma coisa impressionante,
você pega a África, do Marrocos até o Cabo da Boa
Esperança, todos os países, o primeiro estrangeiro que
chegou foram os portugueses. Na Ásia, o primeiro europeu
que atravessou o estreito do Cabo das Tormentas e pegou
o lado oriental da África, Moçambique, dali saltaram pra
Índia, pro Japão, pra China. Isso no século 16, naquelas
cascas de noz! E eu me entusiasmo muito, principalmente
com a história do D. Dinis, rei de Portugal, poeta. Foi
uma figura extraordinária, um gigante bonito, violento,
bravo, apaixonado, casado com a mulher mais bela da
Europa, a rainha Isabel, a Santa Isabel. Foi ele quem
inventou a língua portuguesa, foi ele quem inventou a
armada portuguesa. Ele estava um dia no Porto, cheio de
barcos. - De quem são esses barcos? - São ingleses,
franceses. - E portugueses? - Em Portugal não tem
madeira própria. Ele saiu dali e plantou os pinhais de
Leiria, que estão lá até hoje. Em dez anos, se fez
barcos, barcos, barcos. Um sobrinho dele, o Infante Dom
Henrique, naquela penedia fabulosa do Algarve, Sagres,
esse homem foi morar lá, casto, praticando penitências
com cilícios e sonhando o mar. Navegou pelos mares sem
nunca ter navegado. Reuniu todos os sujeitos que
entendiam de cartografia e navegação e fundou a Escola
de Sagres. Em cima do penedo tem uma rosa dos-ventos que
ele mandou esculpir no chão. Dali partiram os portugeses
e inventaram o mar. E o mar inventou o Brasil. A frase
não é minha, é de Capistrano de Abreu.
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