Ferreira Gullar

Poema Sujo - um fragmento: "Velocidades"

Mas na cidade havia muita luz, a vida fazia rodar o século nas nuvens sobre nossa varanda por cima de mim e das galinhas no quintal por cima do depósito onde mofavam paneiros de farinha atrás da quitanda, e era pouco viver, mesmo no salão de bilhar, mesmo no botequim do Castro, na pensão da Maroca nas noites de sábado, era pouco banhar-se e descer a pé para a cidade de tarde (sob o rumor das árvores) ali no norte do Brasil vestido de brim. E por ser pouco era muito, que pouco muito era o verde fogo da grama, o musgo do muro, o galo que vai morrer, a louça na cristaleira, o doce na compoteira, a falta de afeto, a busca do amor nas coisas. Não nas pessoas: nas coisas, na muda carne das coisas, na cona da flor, no oculto falar das águas sozinhas: que a vida passava por sobre nós, de avião. Não tem a mesma velocidade o domingo que a sexta-feira com seu azáfama de compras fazendo aumentar o tráfego e o consumo de caldo de cana gelado, nem tem a mesma velocidade a açucena e a maré com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas a penetrar soturnamente o rio noutra lentidão que a do crepúsculo que, no alto, com sua grande engrenagem escangalhada moía a luz. Outra velocidade tem Bizuza sentada no chão do quarto a dobrar os lençóis lavados e passados a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como se a vida fosse eterna. E era naquele seu universo de almoços e temperos de folhas de louro e de pimenta-do-reino mastruz para tosse braba, universo de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha dentro de um surrado vestido de chita, enfim, onde batia o seu pequenino coração. E se não era eterna a vida, dentro e fora do armário, o certo é que tendo cada coisa uma velocidade (a do melado escura, clara a da água a derramar-se) cada coisa se afastava desigualmente de sua possível eternidade. Ou se se quer desigualmente a tecia na sua própria carne escura ou clara num transcorrer mais profundo que o da semana. Por isso não é certo dize que é no domingo que melhor se vê a cidade - as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia as janelas trançadas no silêncio - quando ela parada parece flutuar. E que melhor se vê uma cidade quando - como Alcântara todos os habitantes se foram e nada resta deles (sequer um espelho de aparador num daqueles aposentos sem teto) - se não entre as ruínas a persistente certeza de que naquele chão onde agora crescem carrapichos eles efetivamente dançaram (e quase se ouvem vozes e gargalhadas que se acendem e apagam nas dobras da brisa) Mas se é espantoso pensar como tanta coisa sumiu, tantos guarda-roupas e camas e mucamas tantas e tantas saias, anáguas, sapatos dos mais variados modelos arrastados pelo ar junto com as nuvens, a isso responde a manhã que com suas muitas e azuis velocidades segue em frente alegre e sem memória É impossível dizer em quantas velocidades diferentes se move uma cidade a cada instante (sem falar nos mortos que voam para trás) ou mesmo uma casa onde a velocidade da cozinha não é igual à da sala (aparentemente imóvel nos seus jarros e bibelôs de porcelana) nem à do quintal escancarado às ventanias da época e que dizer das ruas de tráfego intenso e da circulação do dinheiro e das mercadorias desigual segundo o bairro e a classe, e da rotação do capital mais lenta nos legumes mais rápida no setor industrial, e da rotação do sono sob a pele, do sonho nos cabelos? e as tantas situações da água nas vasilhas (pronta a fugir) a rotação da mão que busca entre os pentelhos o sonho molhado os muitos lábios do corpo que ao afago se abre em rosa, a mão que ali se detém a sujar-se de cheiros de mulher, e a rotação dos cheiros outros que na quinta se fabricam junto com a resina das árvores e o canto dos passarinhos? Que dizer da circulação da luz solar arrastando-se no pó debaixo do guarda-roupa entre sapatos? e da circulação dos gatos pela casa dos pombos pela brisa? e cada um desses fatos numa velocidade própria sem falar na própria velocidade que em cada coisa há como os muitos sistemas de açúcar e álcool numa pêra girando todos em diferentes ritmos (que quase se pode ouvir) e compondo a velocidade geral que a pêra é do mesmo modo que todas essas velocidades mencionadas compõem (nosso rostd refletido na água do tanque) o dia que passa - ou passou - na cidade de São Luís. E do mesmo modo que há muitas velocidades num só dia e nesse mesmo dia muitos dias assim não se pode também dizer que o dia tem um único centro (feito um caroço ou um sol) porque na verdade um dia tem inumeráveis centros como, por exemplo, o pote de água na sala de jantar ou na cozinha em tomo do qual desordenadamente giram os membros da famflia. E se nesse caso é a sede a força de gravitação outras funções metabólicas outros centros geram como a sentina a cama ou a mesa de jantar (sob uma luz encardida numa porta-e-janela da Rua da Alegria na época da guerra) sem falar nos centros cívicos, nos centros espíritas, no Centro Cultural Gonçalves Dias ou nos mercados de peixe, colégios, igrejas e prostíbulos, outros tantos centros do sistema em que o dia se move (sempre em velocidades diferentes) sem sair do lugar. Porque quando todos esses sóis se apagam resta a cidade vazia (como Alcântara) no mesmo lugar. Porque diferentemente do sistema solar a esses sistemas não os sustém o sol e sim os corpos que em tomo dele giram: não os sustém a mesa mas a fome não os sustém a cama e sim o sono não os sustém o banco e sim o trabalho não pago E essa é a razão por que quando as pessoas se vão (como em Alcântara) apagam-se os sóis (os potes, os fogões) que delas recebiam o calor essa é a razão por que em São Luís donde as pessoas não se foram ainda neste momento a cidade se move em seus muitos sistemas e velocidades pois quando um pote se quebra outro pote se faz outra cama se faz outra jarra se faz outro homem se faz para que não se extinga o fogo na cozinha da casa O que eles falavam na cozinha ou no alpendre do sobrado (na Rua do Sol) saía pelas janelas se ouvia nos quartos de baixo na casa vizinha, nos fundos da Movelaria (e vá alguém saber quanta coisa se fala numa cidade quantas vozes resvalam por esse intrincado labirinto de paredes e quartos e saguões, de banheiros, de pátios, de quintais vozes entre muros e plantas, risos, que duram um segundo e se apagam) E são coisas vivas as palavras e vibram da alegria dó corpo que as gritou têm mesmo o seu perfume, o gosto da carne que nunca se entrega realmente nem na cama senão a si mesma à sua própria vertigem ou assim falando ou rindo no ambiente familiar enquanto como um rato tu podes ouvir e ver de teu buraco como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio na armação de ferro onde seca uma parreira entre arames de tarde numa pequena cidade latino-americana. E nelas há uma iluminação mortal que é da boca em qualquer tempo mas que ali na nossa casa entre móveis baratos e nenhuma dignidade especial minava a própria existência. Ríamos, é certo, em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas de hortelã enroladas em papel de seda colorido, ríamos, sim, mas era como se nenhum afeto valesse como se não tivesse sentido rir numa cidade tão pequena. O homem está na cidade como uma coisa está em outra e a cidade está no homem que está em outra cidade mas variados são os modos como uma coisa está em outra coisa: o homem, por exemplo, não está na cidade como uma árvore está em qualquer outra nem como uma árvore está em qualquer uma de suas folhas (mesmo rolando longe dela) O homem não está na cidade como uma árvore está num livro quando um vento ali a folheia a cidade está no homem mas não da mesma maneira que um pássaro está numa árvore não da mesma maneira que um pássaro (a imagem dele) está/va na água e nem da mesma maneira que o susto do pássaro está no pássaro que eu escrevo a cidade está no homem quase como a árvore voa no pássaro que a deixa cada coisa está em outra de sua própria maneira e de maneira distinta de como está em si mesma a cidade não está no homem do mesmo modo que em sua quitandas praças e ruas

Buenos Aires, mai/out/1975
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