O poeta Haroldo de Campos critica a análise de Gregório de Matos
feita pelos ensaístas João Adolfo Hansen e Alfredo Bosi
''O caso do soneto 'Triste Bahia', analisado por Bosi,
não difere, no essencial, do passo da 'Commedia' de Dante,
onde o poeta se mostra saudoso da Florença ainda não 'enferma' ''
Não desejando antecipar trabalho mais extenso, em andamento, vou deter-me neste artigo em apenas dois pontos da polêmica sobre o barroco e sobre o caso Gregório de Matos.
O primeiro deles diz respeito ao problema da novidade, da originalidade.
Desconstituída a questão do "plágio" em Gregório de Matos (Sílvio Júlio e outros) por trabalhos que começaram pioneiramente com a antologia de Segismundo Spina (1946) e que culminaram na exploração do conceito de "intertextualidade" desenvolvida no importante livro de João Carlos Teixeira Gomes (''Gregório de Matos, o Boca-de-Brasa'', 1985), uma outra forma de impugnação veio a incidir sobre o nosso grande poeta do Seiscentos. Trata-se, agora, não propriamente de um argumento filológico, mas de uma arguição retórica.
Encontramo-la formulada, de modo peremptório, no livro de João Adolfo Hansen, "A Sátira e o Engenho" (1989).
Afirma o autor, em passagens iniciais de seu estudo: "A 'originalidade' dos poemas, tanto no sentido de 'origem' quanto no de 'novidade estética' (...) é, evidentemente, trabalho e função da recepção e seus critérios avaliativos particulares". E prossegue: "Pressupondo a concepção romântica do poético como expressão e, portanto, prescrevendo o conhecimento do vivido do Autor, o critério de 'originalidade — autoria, novidade estética', variantes como 'plágio' — revela-se anacrônico quando se considera o 'estilo'. A poesia barroca do século 17 é um 'estilo', no sentido forte do termo, linguagem estereotipada de 'lugares comuns' retórico-poéticos anônimos e repartidos em gêneros e subestilos". Assim, segundo conclui o novo preceptista: "Ao poeta barroco nada repugna mais que a inovação. A 'originalidade', nos dois significados principais do termo, 'autoria' e 'novidade', é 'critério exterior' à poesia barroca: nela, a figura individualizada do Autor não tem importância, rigorosamente falando, a não ser como elemento posterior ao poema, efetuado pela sua leitura. Nela, ainda, lembrando-se mais uma vez a combinatória de tropos retóricos que a compõem, a 'novidade' não tem lugar".
A questão do "plágio" não se proporia em princípio — raciocina J.A. Hansen — porque Gregório de Matos não seria senão "uma etiqueta, uma unidade imaginária e cambiante", aposta a posteriori a um corpus apógrafo de poemas recolhidos por outrem (o licenciado Manuel Pereira Rebelo). E, já não mais se contentando com a negação da autoria por impugnação de autenticidade, Hansen vanifica de uma vez por todas o próprio autor indigitado, transformando-o num mero efeito semiótico (e fantasmal) do código que manipula. Para que esse argumento ganhe a necessária coerência, seu formulador é constrangido a levá-lo até as suas últimas (e esdrúxulas) conseqüências: é o próprio Barroco, como está dito sem rebuços nas citações acima, que não comportaria, senão por "anacronismo" heurístico, a noção ("romântica") de "originalidade", nela incluída a de "novidade".
"Critério exterior", expressão que Hansen extrai de um teórico que reverencia, Guido Morpurgo-Tagliabue, é critério que não estaria ancorado no contexto histórico da época e da preceptística então vigente ("Pós-Moderno e Barroco", 1994). Convém esclarecer que Tagliabue, estudioso italiano de erudição greco-latina e postura decididamente conservadora, é autor de um extenso trabalho, já velho de mais de 40 anos ("La Retorica Aristotelica e il Barocco", de 1954), no qual, combinando critérios de crítica retórica e uma orientação sociológico-literária propensa à análise determinista do contexto, ambas essas vertentes amarradas por uma aversão tardo-croceana à poesia do período (entendida como manifestação de um "cattivo gusto"), define o Barroco como a "neurose do Seiscentos". Sua idéia de "critério exterior" (que busca invalidar a morfologia de Wõlfflin) exclui a consideração dos câmbios históricos na recepção estética da literatura (Vodicka, Jauss). Desse "critério exterior" decorreria o suposto "anacronismo" de quaisquer estudos que tomassem em conta os efeitos da recepção projetados ao longo do tempo. Essa restrição não por acaso coincide com a da sociologia literária "determinista" (Jauss) de Robert Escarpit ("Sociologie de la Littérature", 1958; 1964).
Escarpit, como se sabe, é o paladino de uma leitura "estática" das obras de arte verbal, circunscrita ao contexto recepcional histórico da época da produção da obra, ou seja, da sua primeira leitura regida pelas convenções do tempo (qualquer outra abordagem, que extrapolasse o marco do "primeiro público", nada mais seria do que um "mito" arbitrário, destituído de lastro de realidade). É a esse tipo de concepção, que tem como referência uma verdade textual original, por cuja pretensa reconstituição se deixa balizar severamente; é a essa postura, diante da qual "a totalidade da literatura antiga e medieval" só nos chega por meio de uma "traição a suas origens históricas", que Jauss opõe o modo "dinâmico" de leitura preconizado por Auerbach, animado pelos cortes sincrônicos e pelas variações no tempo da curva recepcional, capaz de dar conta das "múltiplas rupturas epocais na relação escritor/público".
Como a impugnação da "originalidade" e da "novidade", articulada pelo autor de "A Sátira e o Engenho", dirige-se de modo geral, sem ressalvas, à prática poética do Barroco globalmente considerada, seria o caso, desde logo, de opor-lhe uma contradita exatamente no plano histórico-literário. Só mesmo a contingência de terem permanecido os poemas de Gregório em estado de apógrafo pode explicar a ligeireza, a facilidade com que o mais recente necrologista gregoriano reduz o poeta à condição espectral de "etiqueta" nominativa. Quem ousaria dizer de Sor Juana Ines de la Cruz, que viu sua obra publicada em vida —apesar do verdadeiro "sequestro" (Enrico Mario Santí adotando uma expressão minha) que sofreu posteriormente seu legado e seu renome; quem de bom senso se aventuraria a dizer da Décima Musa mexicana —cuja originalidade em relação a Gôngora é tão bem estabelecida por Octavio Paz no estudo do poema "Primero Sueño" —, que a monja, enquanto autora, não passaria de uma simples rubrica onomástica, de uma não-presença adjunta a um "corpus" anonimizável de poemas, fruto de um "estilo no sentido forte", de um código de convenções de época, o Barroco, onde não se poria, pura e simplesmente, a questão da originalidade e, pois, a da autoria individual? Argumento, em suas derradeiras e lógicas consequências, a ser estendido também a Gôngora e Quevedo (e a qualquer outro poeta barroco, de qualquer literatura — o Cavalier Marino, Donne, Angelus Silesius e assim por diante), operadores, todos eles, do mesmo código retórico impessoal, cujo efeito mecânico consistiria em apagar a autoria e gerar uma cadeia reversível de produções poéticas, no limite intercambiáveis, vicárias, fadadas programaticamente ao anonimato...
Procede, portanto, à evidência, a crítica de Antonio Dimas: "Hansen confina à regra a quem, por demonstração farta, preferia o desregramento; submete uma voz dissonante a um cânone rígido; esvazia o individual em proveito do coletivo; dissolve no geral aquilo que queria ser particular; pluraliza o que é singular num contexto que era mais propício às hipérboles exaltadas de Rocha Pita do que à desconstrução viperina. (...) Minimiza o valor do talento individual na construção poética ao insistir numa espécie de subserviência —embora não seja esse o termo utilizado — do Poeta a códigos poéticos muito em voga então". ("Poesia e Controvérsia", em Ana Pizarro, org., "América Latina, Palavra, Literatura e Cultura", vol. 1, 1993).
Por outro lado, e quanto à suposta carência de novidade da poesia barroca, para medir o descabimento da restrição hanseniana, bastaria compulsar as obras do mais conceituado estudioso dos aspectos histórico-sociológicos da cultura da época, o espanhol José Antonio Maravall. Em "Antiguos y Modernos", Maravall reserva toda a primeira parte de seu livro ("La Estimación de lo Nuevo"; "Defensa y Exaltación de la Novedad", cap. 1; "Aspectos de la Preferencia por lo Nuevo", cap. 2), ao exame da incidência dominante desse tema na estética da Renascença e do Barroco. Salienta mesmo, quanto a esse último período: "Quando em fins do séc. 16, em todas as partes, e na Espanha mais gravemente do que em nenhuma outra, torna a fechar-se o horizonte intelectual da sociedade, mais uma vez a literatura e a arte permanecerão como os únicos campos em que se permite e exalta a obra original. E esse jogo dúplice, de livre permissão em tais esferas, e de hermetismo a seu redor, dará lugar às mais forçadas e extravagantes, estridentes manifestações de originalidade que, nem sempre produto do bom gosto, enchem nossa literatura barroca do séc. 17".
SÁTIRA E CARNAVALIZAÇÃO.
Daqui em diante, economizando muitos outros argumentos pertinentes, passarei diretamente ao enfoque de outra questão (na realidade, como se verá, constituída pela trama de duas arguições). A assertiva, em primeiro lugar, do caráter não-transgressor, não-inconformista, não-reformista, mas antes conservador da sátira gregoriana. A respeito, escreve Hansen em passagem de seu livro criticada por Dimas, passagem que indigita a assim dita leitura "anacrônica" dos textos do Boca do Inferno: "A sátira barroca produzida na Bahia não é oposição aos poderes constituídos, ainda que ataque membros particulares desses poderes, muito menos transgressão liberadora de interditos morais e sexuais. O receptor dos poemas geralmente os lê movido do interesse atual...".
Com esse argumento se articula aquele que, num primeiro momento, nega a possibilidade de aplicação, à sátira gregoriana, do conceito de "carnavalização" exposto por M. Bakhtin a propósito de Rabelais e a cultura popular medieval e renascentista (posição de Hansen); a seguir, busca reforçar essa negação pela caracterização da sátira do Boca do Inferno como apenas maledicente e negativa, sem os traços jucundos e positivos da revigoração folclórico-popularesca (posição de Alfredo Bosi). Ambas essas colocações interligadas serão agora discutidas.
É verdade que tem ocorrido, sobretudo em áreas acadêmicas, um uso pouco rigoroso da noção de "carnavalização", sem a devida ancoragem no texto bakhtiniano. Todavia, a carência de lastro de alguns estudos mais superficiais, de frouxa pertinência, não impede que a sátira gregoriana seja enfocada corretamente com apoio nas expressas concepções do teórico russo.
Bakhtin faz reservas críticas à leitura de Rabelais proposta pelo historiador Lucien Febvre ("Le Problème de l'Incroyance au 16e. Siècle - La Religion de Rabelais", 1942). Nesses reparos, podem ser perfeitamente enquadrados os censores "diacrônicos" do nosso Gregório..
Febvre sustenta a necessidade de ver o autor de "Pantagruel" e "Gargantua" "com os olhos de seus contemporâneos, da gente do século 16, e não com os do século 20", já que, para o historiador (e Febvre —contra-argumenta Bakhtin— não se detém sobre o aspecto estético da obra), o vício mais grave seria o "anacronismo".
Pois bem, ao refutar a opinião de Abel Lefranc, que vislumbrou na obra rabelaisiana "um sistemático ateísmo racional'', Febvre argui que, na filosofia e na ciência (aliás, inexistente como tal) do século 16, não haveria qualquer base para a denegação da religião. Atribuir ateísmo a Rabelais, considerá-lo adepto de um "racionalismo sistemático", seria de todo impossível, nas condições da época. Sem deixar de reconhecer a relevante contribuição do historiador francês, Bakhtin, de seu ângulo de visada, increpa-o de ter (como seu interlocutor, Lefranc) descurado do entendimento da obra rabelaisiana enquanto obra de arte verbal e, assim, de ter negligenciado a "visão do mundo" própria dessa obra. Febvre teria relegado o humor rabelaisiano à condição inofensiva de "velhas brincadeiras clericais" ("vieilles plaisanteries cléricales"), de cunho tradicional ("cujo inventor não fora certamente Rabelais, embora este lhes tivesse aposto 'la griffe de son génie'±"). Tratar-se-ia, ao fim e ao cabo, de facécias de seminarista, tiradas costumeiras de monastério, "malícias de igreja", inócuas, incapazes de atentado à ordem religiosa constituída, isentas de periculosidade ("rien de secret, rien de redoutable ni de sacrilège'').
Aí está, para Bakhtin, o ponto crítico. Se, por um lado, Febvre nega convincentemente as "tendências ateístas abstratas" depreendidas por Lefranc em Rabelais, como se este fosse um antecipador de Voltaire, por outro, negligencia o "riso" rabelaisiano no plano artístico, minimiza a sua pujança, considerando-o com os olhos demasiadamente "sisudos" de um pesquisador da cultura "no espírito do século 20". Assim, teria deixado fugir exatamente o essencial (e nisso seria, por sua vez, "anacrônico"). Escapou-lhe o "aspecto cômico do mundo", algo muito mais significativo, profundo e artisticamente concreto, que não se reduz à oposição normativa religiosidade/ateísmo, ou seja, a um conflito sem matizes entre ordem e infração da ordem.
Ignorar esse "aspecto cômico do mundo" desenvolvido secularmente na "cultura popularesca do humor, infinitamente variada", equivale a desconhecer a "historicidade do riso", o fenômeno da "carnavalização", persistente ainda quando cambiante no tempo. Esse fenômeno, o próprio Bakhtin não deixa de rastreá-lo tanto na cultura do Quinhentos, como no grotesco (que remonta à Idade Média) e ainda em escritores do século do Barroco, como o espanhol Quevedo, influente em nosso Gregório. A propósito do autor castelhano, e apoiando-se expressamente em Bakhtin, um notável estudioso dos aspectos sociológicos dos Séculos de Ouro, No‰l Salomon, alerta para o risco de "esquematismo" desse tipo de abordagem, argumentando:
"Os textos são polifônicos do ponto de vista da ideologia e não podem se reduzir somente à prática de classe dos autores. Disso temos um exemplo palmar no caso de Quevedo dos 'Sueños': a ideologia feudal (antimercantil e anticapitalista) desse proprietário de feudo penetra-os, atravessa-os, misturando-se de um modo contraditório com uma denúncia das taras e um desmascaramento sem piedade da Espanha ainda feudal de seu tempo".
Esse veio de "comicidade", de "irreverência" popularesca, o vezo da "piada devastadora", enfim, a irrupção do riso amoral e compulsivamente desreprimido, parece ter sido o aspecto que Antonio Candido, num ensaio divisor de águas em relação à sua prática historiográfica (o fundamental ''Dialética da Malandragem'', 1972), tomou como parâmetro para estabelecer a sincronia entre a sátira de Gregório e os romances-invenções dos dois Andrades, no âmbito do modernismo que se pode denominar, globalmente, "antropofágico". Esse o "gaio excesso" (Bakhtin) que Hansen desconhece, quando reduz a ''vis comica'' do destemperado baiano a uma efusão maledicente inócua, mera atualização de estilemas retóricos disponíveis, uma vez que —postula— a sátira barroca, "pendente comédia de punições, obedece a regras precisas", estando, pois, "prevista institucionalmente" e ligando-se ademais, pela "desqualificação" do satirizado, à "defesa da ordem" e à "defesa da posição hierárquica".
Esse "gaio excesso", por outro lado, é que explica como, em pleno romantismo abolicionista, a dicção satírica dos poemas de Gregório (racialmente preconceituoso, como habitualmente ocorria —e não apenas com o sátiro baiano— no seu século) pôde ser adotada como modelo pelo poeta negro Luís Gama (1830-1882), para efeito de crítica aos brancos escravistas, no seu "A Bodarrada", texto demolidor, corrosivo, que Manuel Bandeira, com muita razão, destaca por sua fatura. Eis um exemplo vívido de "concretização" (Vodicka), ou de leitura sincrônica do passado de cultura à luz das necessidades do presente de criação.
INESPERADA ATUALIDADE
Vejamos agora a questão suscitada por Alfredo Bosi em ''Dialética da Colonização Brasileira'' ("Do Antigo Estado à Máquina Mercante"), 1992. O estudo de Bosi procura pôr de manifesto o equívoco da recepção "anacrônica", pautada em propósitos do presente, da poesia de Gregório de Matos. Toma como caso exemplar o poema "Triste Bahia", nos últimos anos reposto em circulação, perante um auditório amplo e jovem, pela composição homônima de Caetano Veloso, que emprestou inesperada atualidade ao gume da crítica gregoriana, projetando-a como que naturalmente no contexto político do presente.
Pois bem, Bosi argumenta que, apesar de provocar inicialmente um "efeito de empatia do poeta com sua terra" (e James Amado superpôs com imaginação o poeta-violeiro do recôncavo colonial ao poeta-compositor de Santo Amaro da Purificação), a motivação da "tristeza" do Boca do Inferno para com o que entendia por degradação de sua terra de nascimento originava-se, no fundo, de preconceitos conservadores e reacionários.
Gregório, pertencente à "pequena nobreza luso-baiana" de senhores de engenho, reagia quanto ao "declínio da política protecionista" (o "Antigo Estado"), sustentada pela coroa portuguesa, que favorecia essa nobreza local, mas passou a ser-lhe nociva posteriormente, à época da Restauração, a partir de 1640. D. João 4º, fomentando uma "política anticastelhana", alia-se aos "brichotes" (britânicos), privilegiando os comerciantes estrangeiros (a "máquina mercante") e "alguns latifundiários de maior calibre" (os caramurus, cujos foros de fidalguia nativa o nosso satírico deprecia). Explicitando uma reação ao "mercantilismo progressista", o aristocrata decadente Gregório, doutor por Coimbra, identificava-se com o "ideal de chevalier" (filho d'algo) e repudiava o "vil cotidiano dos outros homens", procedendo segundo os critérios da hierarquia estamental, que rebaixava tanto a atividade mercantil quanto o trabalho manual; que discriminava (inclusive por preconceito racial) o onzenário judeu e o mestiço arrivista, ávido de ocupar postos em tese devidos apenas aos "homens bons", brancos, pouco importando se a pessoa discriminada era nativo ou estrangeiro, já que a "oposição sobredominante", segundo aduz Bosi, é "o par nobre/ignóbil".
No caso dos "versos obscenos" —prossegue o crítico— não caberia "remontar a uma linhagem de realismo cru", na esteira de Bakhtin e de seu livro sobre Rabelais. Ao invés de praticar uma inversão desmistificadora, por meio de um "jogo de perspectivas em torno do mesmo objeto", visto pelo direito e pelo avesso, Gregório promove uma "desclassificação objetiva".
Respondendo a seus preconceitos de status e de cor, o poeta "opera um nítido corte entre dois campos de experiência e significação". Assim, em vez de filiar-se à visão grotesca de mundo, originária do folclore remoto e viva em Rabelais, no desbocado baiano o "recurso ao turpilóquio com intenção de ultraje" procederia dos gêneros cômicos de estilo baixo", atestáveis tanto no medievo como, antes, na Antiguidade clássica. Nessa tradição estilística, os "órgãos e atos da vida sexual tornam-se, quando nomeados, símbolos de agressividade". Aqui Bosi está, de certo modo, ecoando Araripe Jr., para quem, em oposição à casquinada venenosa de Gregório, "o riso gaulês de Rabelais não feria senão a epiderme da humanidade; era uma picada de alfinete apenas". O nosso Araripe parece ver no riso rabelaisiano, que assim emascula, a mesma "inocuidade" que nele seria vislumbrada na década de 40 por Febvre e, posteriormente, seria alvo de contestação da parte de Bakhtin.
Confira-se:
"O conceito grotesco do corpo constitui a base das expressões abusadas, do praguejar e do maldizer. A importância da linguagem abusiva é essencial para o entendimento da literatura do grotesco. Essa prática abusiva tem direta influência na linguagem e nas imagens próprias desse tipo de literatura e é estreitamente relacionada com todas as formas de 'degradação' e rebaixamento na literatura grotesca e renascentista".
Mesmo no caso de um grotesco historicamente mais recente (como o estudado por W. Kayser), já desvinculado das jucundas fontes popularescas, entende Bakhtin que, no "emprego moderno da indecência em expressões abusivas e no praguejar", emprego que retém apenas "os restos puramente negativos do conceito grotesco de corpo", esse fator de "carnavalização" não pode ser subestimado, ainda onde sobrevivam exclusivamente o "cinismo cru e o insulto". O eminente estudioso russo foi treslido, nesse ponto capital, por dois exegetas que não se pretendem "anacrônicos" e que apostam em preservar, em suas análises de estampa historicista, o "sistema de relações" subentendido nos textos gregorianos. O teórico da "carnavalização" conclui com esta advertência que vem a calhar: "... seria absurdo e hipócrita (grifos meus) negar a atração que essas expressões ainda exercem", pois "uma vaga memória das passadas liberdades e da autenticidade carnavalesca continua a bruxolear nessas formas modernas de linguagem abusiva" (...) "O problema de sua irreprimível vitalidade linguística não tem sido até agora seriamente colocado".
A aplicação da "carnavalização" bakhtiniana a Gregório, ''pace'' Hansen e Bosi, não é uma invenção dos críticos de vanguarda, ou, na sua esteira, dos neotrovadores tropicalistas. Críticos não suspeitos de afeição vanguardista, como o notoriamente conservador J.G. Merquior, fizeram manifestações nesse sentido. Para Merquior, Gregório "é o grande poeta libertino do mundo ibérico", na linha "do epicurismo de Rabelais e Montaigne e da literatura carnavalesca da Idade Média", devendo ser enfocado do ângulo de uma "contestação cultural", ainda que não propriamente "político-social" (''De Anchieta a Euclides'', 1977). Antes de todos, porém, Segismundo Spina, pioneiro nesse campo, em sua antologia de 1946, oportunamente reeditada pela Edusp (1995), já havia assinalado que "Gregório foi o introdutor do filão da farsa em nossa poesia", referindo que o poeta era filho de uma época na qual ainda se celebravam festas como a "saturnal cristã" de São Gonçalo do Amarante, "onde se mesclavam monges e índios, negros e mulheres, nobres e o próprio vice-rei".
Também no início da década de 50, um professor de filosofia, João Cruz Costa (tese de cátedra editada em livro em 1956, sob o título ''Contribuição à História das Idéias no Brasil''), afirmava que, em versos como "os brasileiros são bestas/ e estão sempre a trabalhar/ toda a vida por manterem/ maganos de Portugal...", repontaria já "um índice do incipiente sentimento de rebeldia contra a condição colonial". João Carlos Teixeira Gomes, o fino e erudito estudioso da "intertextualidade" em nosso poeta (''Gregório de Matos, o Boca-de-Brasa'', 1985), cujas qualidades de analista Hansen reconhece, escreve, por seu turno, após desfilar um elenco de citações ilustrativas: "Todos os exemplos aqui reunidos, enfim, destinam-se a mostrar como o estudo de Bakhtin sobre a visão rebaixadora de Rabelais e os processos que ele usou para exprimir a ideologia do riso tem aplicabilidade aos satíricos de todas as épocas (...) Trata-se, sem dúvida, de um veio riquíssimo, talvez ainda não avaliado em todo o seu significado (...) até mesmo em decorrência dos seculares preconceitos e inibições que se formaram em torno desses temas".
DANTE ''REACIONÁRIO''
Finalmente, algumas considerações sobre o "reacionarismo" do poeta baiano. Na ponderação dessa questão de ideologia e contexto histórico, não é possível operar retroativamente a partir de critérios atuais ("anacrônicos", pois) de ''political correctness''. O caso do soneto "Triste Bahia", analisado por Bosi, não difere, no essencial de sua visão, do passo da ''Commedia'' de Dante, onde o magno poeta se mostra saudoso da nobre Florença da época de seu trisavô Cacciaguida, da Florença ainda não "enferma", isto é, ainda não contaminada pela ''confusion delle persone''. Não esquecer que o poeta exilado estigmatizou os seus concidadãos, chamando-os de "celeradíssimos", por se terem recusado a "beijar os pés" do imperador et Augustus Caesar''). Não à-toa o poeta de vanguarda e crítico de extração marxista.
(in Caderno Mais!, Folha de São Paulo, 20.11.96)