Concretismo
Continuidade e ruptura
(in Caderno Mais! - Folha
de São Paulo, 08.12.96)
Esse não é um artigo contra ou a favor
do concretismo. Mas, desrespeitando a correlação de forças, é
preciso discutir com total liberdade o seu papel histórico. Ao
contrário do que se pensa, ele já não incomoda ninguém. Essa
observação não tem como objetivo desvalorizar um movimento que
considero plenamente consolidado: as suas principais obras teóricas
estão editadas, a produção poética mais representativa encontra-se à
disposição nas livrarias, eles foram incorporados à universidade e
frequentemente são homenageados no Brasil e no exterior.
Penso que a melhor maneira de
comemorar esses 40 anos é dialogar francamente com suas proposições
teóricas, preservando uma mobilidade crítica armada de compreensão,
eleição e recusa. É urgente um balanço crítico do movimento capaz de
discernir entre o que ainda permanece instigante e as práticas
dogmáticas perpetuadas pelo fanatismo epigonal.
1. Se por um lado o concretismo
representou simultaneamente, continuidade do modernismo e ruptura
com a "geração de 45", no plano da criação não resiste à comparação
com obras-primas de 22 e com a antilira de João Cabral.
Qualquer esforço de revisão crítica
deve, a meu ver, deslocar o foco do discurso concretista em torno da
modernização. Um olhar dialetizado tem de enveredar pelo sentido
oposto, revelando a profunda incompreensão do movimento (de fundo
ideológico) para com as razões do nosso atraso.
Neste ponto reside o diferencial com o
modernismo. Este, ao analisar a formação da cultura brasileira,
soube incorporar a contribuição milionária de todos os erros,
transformando em superávit o que anteriormente era contabilizado
como déficit na balança das nações. Na base dessa transação
histórica está um enriquecimento calculado, fruto de antagonismos.
No outro extremo, o concretismo
apostou todas suas fichas no avanço tecnológico, ignorando o forte
controle excercido pelas classes dominantes na TV e na mídia. O
êxito da combinação desabusada entre vanguarda e cultura popular só
se repetiu no tropicalismo e na estética da fome de Glauber, cuja
rua de mão dupla nunca ignorou a complexidade das relações raciais e
do sincretismo religioso.
2. Se é verdade que o
concretismo contribuiu para ampliar nosso repertório, seria oportuno
repensar o que ficou de fora do "paideuma".
É emblemática a exclusão de
Baudelaire. O maior representante da experiência lírica na grande
cidade não encontrou eco nos poetas paulistas, que passaram à margem
da provocação antiburguesa introjetada nas "Flores do Mal".
Ainda seria preciso pensar a ausência
de Apollinaire, Stevens, Montale, Gottfried Benn, Kavafis, Saba,
Lorca, Trakl e outros.
3. Tornou-se um lugar-comum
dizer que os modernistas não foram poetas críticos. Obviamente, é
produto de desinformação. Basta revisitar o ensaísmo de Mário e
Oswald para perceber a fragilidade da afirmação. Sob outro ângulo, a
persona poética de Drummond elipsou o tradutor de Proust, Laclos,
Balzac, Lorca; para não falar dos corrosivos aforismos de
"Apontamentos Literários"; do pioneirismo do discurso
metalinguístico praticado em "O Lutador" ou "Procura da Poesia".
Nunca é demais lembrar as excelentes traduções que Bandeira fez de
Shakespeare, Schiller, Verlaine, Hoelderlin, Sor Juana, Emily
Dickinson, J.R. Jiménez, Borges, Elizabeth Bishop, Cummings etc; a
arte poética contida em "Itinerário de Pasárgada"; ou o grande
incorporador de novas linguagens, entre elas, a propaganda, a bula
de remédio e a notícia de jornal.
E o que dizer do olho precoce de
Murilo, reconhecendo de imediato o valor de Cícero Dias, Ismael Nery
e Vieira da Silva; do ouvido moderno que, em 59, dizia: "Certos
versos meus são os de alguém que ouviu muito Schoenberg, Stravinsky,
Alban Berg"; do leitor que, em 38, dedicou "O Emigrante" a Henri
Michaux. É evidente: para os modernistas a teoria nunca se sobrepôs
à criação poética.
4. O que reiteradas vezes o
concretismo tomou como perseguição deve ser relativizado dentro do
quadro precário da nossa vida literária. As reclamações de que suas
obras sofreram boicotes e demoraram a ser publicadas denunciam uma
visão ingênua a dinâmica cultural brasileira, pois tomam em nível
pessoal aspectos estruturais que fetam sistematicamente nossa
literatura. É sabido que Mário e Oswald custearam várias edições de
suas obras. A tiragem dos três primeiros livros de Drummond foi
reduzida drasticamente de 500 a 150 exemplares. Bandeira financiou
do próprio bolso suas poesias completas. Murilo esperou 29 anos para
ver sua obra reunida e, somente 20 anos após sua morte, surgiu sua
obra completa.
Outra queixa concretista, acostumada a
ver conspiração em tudo, refere-se ao ato de sua poesia não ter sido
rapidamente absorvida pelos cursos universitários. Ora, esse é um
problema que afeta toda a produção contemporânea, seja prosa ou
poesia. além isso, esquecem que o modernismo esperou mais de 30 anos
para ser incorporado como objeto de estudo.
5. É indiscutível que Haroldo,
Augusto, Décio estavam sintonizados com tudo que acontecia lá fora.
Mas, do ponto de vista da criação literária, essa informação não
correspondeu à ambição da poesia de exportação que, nas pegadas de
Engels, sempre insistiu na possibilidade de um país subdesenvolvido
tocar o primeiro violino em literatura. Parece plausível. Mas penso
que a obra de Borges, livre de qualquer exotismo, foi a única a
realizar esta operação. Quem não reconhece em Calvino o impacto da
leitura Georgeana?
6. É saudável que alguns
concretistas manifestem um crescente interesse pela política
nacional. Mas reescrever a história dizendo-se socialistas ou até
mesmo mencionado que no passado foram próximos do PC é sofrer da
doença infantil do revisionismo.
7. Dentro do registro da
continuidade e da ruptura, a poesia marginal freqüentemente
desvalorizada e acusada de desinformada pelos concretos — por uma
dessas ironias — foi quem forneceu uma saída para herdeiros do
concretismo. Os bons exemplos estão representados por Leminski e
Sebastião Uchoa Leite, que, depois de viverem um impasse criador,
retomaram o discurso coloquial numa chave impensável sem a
contribuição da aventura marginal.
8. Para terminar, dentro do
capítulo das continuidades, acompanho com interesse a renovação
levada a cabo por Arnaldo Antunes, na confluência entre poesia e
música, dissonância e lirismo, tecnologia e barbárie. No campo das
rupturas, acho que Nelson Ascher enriqueceu seu trabalho ao aceitar
as impurezas da discórdia. Realmente, há algo novo sob o sol:
judaísmo, política, erotismo.
Augusto Massi é professor de
literatura na USP e autor de "Negativo" (Cia. das Letras).
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