Concretismo
Que importância teve o Suplemento
Dominical
Por Haroldo de Campos
- Que importância teve o Suplemento Dominical
no contexto cultural da época?
- Por sugestão de Mário Faustino, grande poeta e inesquecível amigo,
Augusto, Décio e eu, em meados do ano de 56, fomos convidados por
Reynaldo Jardim a colaborar no S DJB. Minha primeira contribuição
ocorreu em 28 de outubro e 4 de novembro de 1956, com o ensaio Kurt
Schwitters ou o júbilo do objeto. Em dezembro do mesmo ano teve
lugar a Exposição Nacional de Arte Concreta. Foi lançado então,
publicamente, o movimento de poesia concreta, promovido pelo grupo
Noigandres de São Paulo, com a participação dos poetas Ferreira
Gullar e Wlademir Dias Pino, ambos convidados por Augusto de Campos.
Transladada, em fevereiro de 1957, para o saguão do SDJB, que lhes
deu uma acústica e um auditório nacionais. A começar pelo
provocativo estudo que Mário Faustino, com grande compreensão
crítica, dedicou ao movimento (embora dele não participasse), sob o
título "Concretismo e poesia brasileira", artigo que, como se sabe
causou grande impacto, inclusive junto aos poetas da geração mais
velha (Carlos Drummond de Andrade, por exemplo). O crítico Oliveira
Bastos foi também um ativo militante nas polêmicas que então se
travaram. Isso tudo diz da singular importância do SDJB no contexto
cultural da época.
- Poderia reconstituir a polêmica estabelecida
entre concretistas e neoconcretistas?
- A dissidência "neoconcreta" ocorreu, sobretudo no campo da poesia,
por diferenças de formação, além do que se poderia definir como um
conflito regional de prestígio. Os concretos paulistas do grupo
Noigandres tinham formação mallarmaica (muita gente não sabe que uma
edição da poesia de Mallarmé, publicada em texto exclusivamente
francês pela Editora IPÊ de Paulo Duarte, na qual figurava uma bela
impressão do Coup de dés com as frases capitais em cor amarela,
lançada em 1947, circulava em São Paulo a preço baratíssimo, vendida
nas calçadas, dado o colapso comercial da editora). Mallarmé falava
numa "geometria do espírito". Ezra Pound, outro autor preferido dos
paulistas, sustentava ser a poesia "matemática inspirada". O próprio
Lautréamont, em seus Cantos de Maldoror, faz o elogio das
matemáticas. Como o Fernando Pessoa do verso síntese: "Tudo o que em
mim sente está pensando", acreditávamos num "racionalismo sensível",
na idéia oriental que rejeita o artificioso dualismo ocidental
"corpo"/"alma". Mas, na poesia brasileira imediatamente anterior ao
concretismo, havia o exemplo fundamental de João Cabral, cujo livro
divisor-de-aguás, O engenheiro, de 1945, valera-lhe a alcunha de
"cerebrino" e o indispusera com os seus contemporâneos de geração
(Geraldo Vidigal, em São Paulo, em prefácio a seu livro Cidade, de
1952, lança um verdadeiro libelo "anticabralino", denunciando os
poetas que "levam às últimas conseqüências a lição valeryana", os
adeptos da "heresia formalista" que se levantavam contra a "vocação
lírica brasileira"). Pois bem, quando a poesia concreta passava da
"fase orgânica" (1953-1957) para a "fase geométrica" (mondrianesca,
minimalista avant la lettre), enviei um artigo ao SDJB "Da
fenomenologia da composição à matemática da composição", entendido
pelos poetas do Rio como um "manifesto" racionalista, que lhes
contrariava a formação mais subjetivista, impregnada ainda de
expressionismo e surrealismo residual. É evidente que pensávamos
numa "matemática sensível" (não-científica), à maneira da "filosofia
da composição" de Edgar Alan Poe, mestre de Baudelaire, Mallarmé e
Valéry, que procurasse integrar os dados da sensibilidade numa
orquestração rigorosa do poema, controlar o acaso, "organiser le
délire" (Pierre Boulez). Mas houve outros fatores em jogo, até
idiossincráticos, o que eu chamaria "desafinidades eletivas". Por
razões desse tipo, os paulistas Willys de Castro e Barsotti foram
levados a buscar abrigo junto aos Neoconcretos do Rio, hostilizados
que eram em São Paulo pelo vigor polêmico de Waldemar Cordeiro,
líder do "Grupo Ruptura" (1952). Assim também, o psicanalista
junguiano-heideggeriano greco-turco Theon Spanudis, radicado em São
Paulo, colecionador de arte Construtiva e poeta amador, com
impregnações tardo-simbolistas e frouxo domínio da língua, aderiu na
primeira hora ao manifesto "neoconcreto", acusando os poetas de
Noigandres de tendências "barroquizantes" em confronto com o
"purismo" suíço de Gomringer e de estarem sob a influência
"perniciosa" do marxista gramsciano Cordeiro (cf. "Gomringer e os
poetas concretos de São Paulo, SDJB, 15/9/57). Quanto à persistência
do conflito, direi apenas que o "neoconcretismo", de efêmera duração
no plano literário, desapareceu em pouco tempo da cena poética
brasileira. Já o neoconcretismo em artes plásticas deu frutos
magníficos, como, exemplificativamente, os trabalhos de Hélio
Oiticica e Lygia Clark.
Sob a ótica de hoje, vejo as vertentes concreta e neoconcreta como
desdobramentos de um mesmo "projeto construtivo" (como denominou a
crítica Aracy Amaral e, já em 1967, Hélio Oiticica - de quem fui bom
amigo e assíduo correspondente - já o reconhecia com largueza de
espírito ao organizar a exposição "Nova Objetividade Brasileira").
- O Suplemento Dominical abrigava um amplo
espectro de correntes e tendências, que iam de Mauro Faustino a
Eduardo Portella. Este ecletismo de idéias era uma marca da época ou
uma virtude do SDJB? O que é feito hoje do ecletismo em nossos
suplementos culturais?
- De fato, havia ecletismo no SDJB, mas havia também a assunção de
uma proposta radical, da qual o SDJB, pelo menos em sua fase áurea,
se fez porta-voz. Hoje, o ecletismo, despreocupado de um projeto
mais radical, parece ser a marca distintiva dos principais
suplementos culturais brasileiros.
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