Arte
Plural de objetos e tempo
Manoel Ricardo
de Lima
Articulista
do Vida & Arte
Uma exposição
de arte contemporânea em cartaz na cidade. Objetos e palavras à
mostra. Um convite a um passeio entre o peso e a leveza. Têmperas
de Ferro, mostra do artista plástico Herbert
Rolim, sob a ótica da poesia.
Encontrar com
o olhar, quase sempre disperso, sobre a parede, sobre uma superfície
quadrada e quase cinza, suja, um sapato qualquer, descolado do plano, erguido,
tendo ao redor outras e pequenas saliências neste plano. Um sapato
qualquer, descolado da vida, impregnado de sentidos do outro: também
um qualquer. Duas coisas passam a me interessar aqui: o registro de uma
impregnação de um sapato recolhido ao léu e a sobra
que este registro tem de não permanecer (de não estar fixado,
mas em decomposição), um resvalar de tempo. Mais adiante,
isto, que é de fato um trabalho do artista plástico Herbert
Rolim, chamado O Anjo Partido, remete a um verso que ecoa
sempre pela casa: "sapatos também sentem dor".
Tudo isso para dizer do interesse
em ver a exposição de Herbert que está no Museu de
Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar, e fica lá
até o dia 24 de novembro, Têmpera de Ferro. E já adianto
que toda minha impressão sobre a exposição, não
passa disso mesmo, uma impressão. E isto é muito mais uma
tentativa de uma leitura da sensibilidade e da proposição
de uma ou outra questão que as peças de Herbert me trazem.
Dividida em prospeções de tempo, os trabalhos dessa exposição
propõem e permitem pensar elaborado, entre peso e leveza, não
só a própria condição da arte contemporânea
como do artista em si, e mais ainda, da condição do sujeito
neste mundo insurreto.
São dez desenhos de órgãos
internos do corpo, em nanquim sobre papel, e fios de cabelo seguindo e
desfazendo traço, o fora e o dentro, fincados na parede com pequenos
e inseguros alfinetes, depois palavra. Coisas como "sustentação
lírica / sobre pó": delicadezas. Nas laterais das salas,
ao lado das aberturas de portas, objetos que ditam o percurso de Herbert,
entre osso e ferro e cabelo, "como totens", quase sacrificiais, uma ausência
de mitos e um destemor sincero: não há nenhum interesse que
estes objetos durem, permaneçam. Formando uma espécie de
entorno, ainda, dois grandes objetos: uma cama de hospital, oxidando-se,
entremeada de vidro e na outra ponta uma coroa de defunto, também
em estado de oxidação (esta, mais intensa) envolvida em tecido
e alça de caixão, catarse.
Talvez, penso, como peça principal,
uma obra que pode ser tomada como conceitual, ``Plural de Um'', um grande
saco plástico perfurado por arames em linhas tortas, que também
oxidam-se, formando pequenas bolsas de depósito. Nestas, fotos de
pessoas, amigas de Herbert ou qualquer espectador que queira desfazer-se
de um registro de memória e depositar lá, nas bolsas, delicadamente,
um esgarço de seu próprio tempo. Um olhar para a memória
do outro, do qualquer algum, dos ninguéns. Ainda pensar a arte com
sua torção mais dinâmica: seu caráter humanizador.
Em conversa, Herbert diz que não
quer afirmar nada, e de fato não haveria como, vendo o que está
lá, inserido, em passeio e olhar (e ouvido), e que esta peça
conceitual (Plural de Um) pode sim, e está, perfazendo contradição
criada em propósito, entre o conceitual (a idéia) e a sua
condição de objeto. E falo em ouvido porque há uma
música, deliberada também entre peso e leveza, distância
e intervalos, que recupera entre batidas sonoras do corpo humano, sem ser
óbvia ao coração ou a uma tosse, mas ruídos
dele.
Penso que Têmpera de Ferro
é um amadurecimento sereno do trabalho e da pesquisa de Herbert.
Reunir entre música delicadeza objeto víscera luz teia resto
cabelo traço memória fronteira e palavra o disperso projeto
contemporâneo que esgota o sujeito neste mundo: o tempo, como idéia
de passagem, como passos em sapatos e dor. É de fato este o esboroamento,
o bater-se leve em dispor a vida: ``o que levaremos desta vida / se levar
houver'', diria Cacaso. E ainda, o que muito me interessa no trabalho de
Herbert e que sempre me chamou atenção é que há
(além do uso dos objetos sem lugar, retirados, em oxidação,
se decompondo), desde quando passa a usar palavra nele, nesta fronteira
entre plástico e poema, um domínio firme com o poema, com
o despedaçar palavra em cada traço que segue: seja ele em
nanquim, vidro ou ferro, ferrugem ou osso, papel ou cabelo. Um domínio
com a síntese que desloca estas palavras para uma composição
de peças quase independentes.
Coisas como ``paredes cabelos ossos
/ cavos sons lodosos" ou "desassossegas formas / tensões continuadas
// como objetos são" ou ainda ``espreita anunciada // extinguir-se
e voltar / sem fim" me parecem, com extremo rigor, poemas prontos de um
livro que vem sendo escrito e justapondo um problema que beira esta fronteira:
o do suporte. E aqui, a meu ver, o trabalho de Herbert Rolim estabelece
questões, uma a uma, para aproximar e distanciar as artes plásticas
do trabalho com o poema. Um percurso de sapatos que também sentem
dor, ou das serenas sandálias firmes de Herbert.
Serviço
Têmpera de Ferro Exposição
do artista plástico Herbert Rolim Museu de Arte Contemporânea
Centro Cultural Dragão do Mar Até o dia 24 de novembro
[Jornal O Povo, FORTALEZA,
SEGUNDA, 6/11/2000] |