Hiirís Lassorian
A missão
A minha história pode lhes parecer
estranha, absurda, mas irei contar mesmo assim. Creio que me
sentirei melhor narrando algo que aconteceu comigo num dado momento
de minha vida. Se ainda estou vivo para contar, ignoro o que
realmente aconteceu. Sei apenas que estou morto, acreditem ou não.
As razões pelas quais me despedi desse mundo, sem ao menos esboçar
um único suspiro, vocês conhecerão a seguir.
Morávamos numa casa de dois
pavimentos, digo, de dois andares. No andar de cima, morava alguém
que desconhecíamos por completo, pois raramente saia ao raiar do
dia. À noite, quando não muito, ouvíamos um barulho ou outro, mas
nada que fosse insuportável ou pudesse atrapalhar nosso sono. Quem
era a pessoa que ocupava o andar de cima, que fisionomia tinha, se
era velho ou moço, homem ou mulher, triste ou alegre, não dava para
saber ao certo. E se isso não bastasse, esse simples episódio pouco
nos interessava. No andar de baixo, morava eu e minha mulher.
Tínhamos alugado aquela casa a uns dois meses e estávamos contentes
com o lugar. Nada de incômodos inusitados e de vizinhos baderneiros.
Como sempre, primávamos pelo descanso merecido e até o dado momento
estávamos sendo atendidos. A casa era espaçosa, com um jardim imenso
e árvores para todo lado. Sentíamos felizes ali, e não era sem
motivos. O fato de não conhecermos o vizinho de cima, pouco nos
incomodava. Desde que não nos aborrecesse, tudo bem. Além do mais, é
natural que os seres humanos permaneçam desconhecidos uns aos
outros, mesmo morando perto. Nesse sentido, nada nos era estranho. A
vida tinha que continuar, mesmo a margem dos erros e dos acertos
entre os indivíduos de nossa espécie.
Numa determinada hora da manhã,
resolvi sair de minha toca para passear pelo jardim. Convidei minha
mulher, mas ela se recusou. Estava lendo um romance e parecia
empolgada com a história. Não insisti e fui caminhar sozinho. Era um
dia como nenhum outro, com aquele céu azul de dar inveja a qualquer
ser humano que se vê na impossibilidade de o contemplar pelas
obrigações servis do dia-a-dia. Senti-me um privilegiado, não sei
porque. Caminhei pela estradinha de paralelepípedo que dava no
portão, mas logo parei no meio do caminho e resolvi sentar num
banquinho debaixo de uma árvore frondosa. Ali fiquei por uns bons
momentos, sentindo o frescor e a sedução daquela manhã inigualável,
olhando para um lado e para outro, sem nenhuma outra intenção, a não
ser a contemplação pura e simples. Sentia-me feliz e reconciliado
com o meu ser. Nada podia se comparar àquela disposição de espírito.
Foi aí que resolvi virar-me para ver com mais nitidez a casa onde
morávamos. Logo divisei o andar de cima e pensei no vizinho
desconhecido. Quem realmente era ele? Existia de fato ou era apenas
um fantasma que perambulava pela noite? Tive que deixar as
indagações de lado, pois logo me interessei por uma escada de
concreto não muito extensa que beirava a parede de nossa casa e dava
num compartimento que mais parecia um banheiro e que pertencia, com
certeza, ao nosso vizinho desconhecido. Havia deduzido aquela peça
do imóvel pela janelinha pequena que estava aberta. Fiquei muito
curioso com aquele tipo de arquitetura, e me perguntei do porque
daquela escada na direção de um banheiro que ficava, a bem dizer,
fora da casa. Sem perder muito tempo e por alguma razão
desconhecida, talvez por um ímpeto ou intuição repentina, sei lá,
resolvi subir os degraus daquela escada para averiguar se minhas
deduções a priori iriam se confirmar ou não. Quando lá cheguei,
havia uma porta que parecia apenas encostada. Peguei na maçaneta e a
abri lentamente. De fato, aquele compartimento era mesmo um
banheiro. Constatei a realidade de minhas deduções pela banheira de
mármore que logo divisei numa primeira olhada. Quando entrei de
corpo inteiro no interior da peça, também constatei que aquele
banheiro era enorme, quase do tamanho de uma sala e sem nenhuma
outra porta que servisse de entrada para o interior da casa, a não
ser aquela por onde eu havia entrado. E fiquei ainda mais surpreso
quando divisei, encima de uma mesa de mármore, um recipiente de
vidro muito grande, contendo um feto que flutuava num líquido
gelatinoso e transparente. Parecia formol. Não achei estranho tal
fato e nem o comentei junto a minha companheira. Algo normal e sem
importância. Desci os degraus às pressas e entrei em casa. Nada de
novo sobre a superfície da terra.
Alguns dias se passaram e, por
incrível que pareça, iríamos precisar daquele feto, pelo menos de
sua cabeça, por alguma razão desconhecida, que eu não sei ao certo
como lhes explicar. Pelo pouco que recordo, eu e minha companheira,
estivemos num local desconhecido, e fomos incumbidos de dar conta
daquele feto, não por inteiro, mas apenas sua cabeça. Minha
companheira chorava por algum motivo estranho. Sua vida parecia
depender daquela cabeça. Só assim poderia ser salva de alguma doença
incurável ou de algum perigo iminente. Nada nos explicaram. Só sei
dizer que as pessoas que visitamos naquele local desconhecido usavam
capuz, eram três, e apenas determinaram a execução do ato antes que
fosse tarde demais. Um deles alcançou-me um saco de plástico e um
punhal afiado. Minha companheira teria que ficar esperando por mim
ali mesmo até eu voltar. Essa era a exigência ou nada feito. Nada
questionei e apenas aceitei o veredicto. Sem pensar duas vezes, sai
correndo feito um doido varrido na direção da casa onde morávamos.
Ao chegar lá, de boca aberta e respirando com dificuldade, devido à
corrida que me obriguei a fazer, abri o portão calmamente, e aos
tropeços e sem demonstrar o mínimo de receio ou medo, pelo fato do
vizinho desconhecido estar ou não em casa, fui logo subindo os
degraus da escada, com a única intenção de conseguir a cabeça
daquele feto. Abri logo a porta do banheiro e para o minha surpresa
e desespero não visualizei mais o feto. A mesa de mármore estava
vazia. Vasculhei o banheiro de cabo a rabo, mas nada encontrei. O
feto simplesmente havia desaparecido. Sem perder muito tempo e de
mãos vazias, desci os degraus daquela escada às pressas, pronto para
me dirigir ao local onde minha companheira se encontrava. Ao término
da escada, senti uma sensação estranha e um arrepio gelado percorreu
todo o meu corpo. Olhei na direção do portão, e sem dar muita
importância ao que me ocorrera, senti uma leve tontura, mas, mesmo
assim, me lancei na direção do maldito portão. Tinha que ir ao
encontro de minha mulher. Ela não podia ficar sozinha por muito
tempo. Teria que fazer alguma coisa. O estranho disso tudo estava no
portão que parecia cada vez mais distante de mim. Apressei os
passos, comecei a correr, mas nada mudava naquele cenário aterrador.
Era como se o portão se deslocasse para longe de mim, como se
fugisse aos meus passos. Nunca teria condições de alcançá-lo. Pensei
do porque estar acontecendo aquilo comigo, mas não tive condições de
explicar. Simplesmente entrei em desespero. Era realidade ou uma
alucinação? Não sabia ao certo o que responder.
De um momento para outro, quando dei
por mim, me vi sentado num sofá muito velho, no interior de uma
antiga mansão, com telhas de aranha por todo lado. Estava
atormentado, e ainda mais atormentado fiquei quando percebi seis
crianças pequeninas ao meu redor. Duas estavam de pé e me vigiavam
pela frente e pelas costas. E quatro delas estavam sentadas num
outro sofá a minha frente. Tinham fisionomias sérias e me olhavam
com curiosidade. Pareciam esconder alguma coisa, pois todas, sem
exceção, estavam com uma das mãos atrás das costas. Mas pouco me
preocupei com esse pequeno detalhe. Eram todas meninas. Tinham uma
pele bastante acinzentada e suja, vestiam-se com trapos rasgados e
seus semblantes lembravam pessoas muito velhas. Não pude acreditar
no que estava vendo. Sacudi com todas as minhas forças a cabeça na
tentativa de dispersar a provável alucinação, de modo que ela
pudesse se desvanecer, mas nada adiantou. Quando abri os olhos,
ainda estava no mesmo lugar. Nada havia mudado. Tentei me levantar
do sofá, e quando já estava me erguendo, uma delas me segurou pelos
ombros e a outra que estava na minha frente foi logo enfiando um
punhal enorme na minha garganta. Antes que o punhal atravessasse o
meu pescoço, pude, a tempo, desviá-lo com uma das mãos e logo fui
gritando: "Que diabos está acontecendo? O que vocês estão fazendo?
Estão loucas? De onde vocês vieram? Onde estou?" Infelizmente,
nenhuma resposta se seguiu as minhas perguntas. Apenas me olhavam
com um certo espanto e não pareciam assustadas. Possuíam nos lábios
um sorriso irônico e assustador e todas estavam armadas com um
punhal bastante afiado. Pude ver o fio das lâminas pela luminosidade
que refletiam sem cessar. Suei frio e quase desmaiei. Não sabia ao
certo como agir nem o que devia fazer. A mansão parecia abandonada.
Num canto e outro, apenas móveis velhos e empoeirados. Duas escadas
de madeira subiam para cômodos desconhecidos. As janelas e as portas
estavam fechadas. A sala onde me encontrava era muito fria e uma luz
tênue, vinda não sei de onde, iluminava com muito esforço o interior
macabro daquela mansão. Deduzi que ainda fosse dia, não sei. Também
pensei no fato de que poderia estar morto, caso não segurasse a
tempo o pequenino braço daquela menina doentia que desejava cravar o
punhal em meu pescoço. É, realmente podia estar morto! Ou já estava?
Não tive muito tempo para respostas, pois no exato momento em que
imaginei uma provável reação, a mesma menina que desejou matar-me,
foi logo dizendo: "Você tem que aprender a morrer. Não tenha medo, é
fácil. Nós vamos lhe ensinar a morrer.” Sou sincero em confessar que
não pude compreender muito bem o que ela queria dizer com aquelas
frases absurdas e logo fui levantando de supetão, com todas as
minhas forças, daquele sofá, num desespero de arrepiar os fios dos
cabelos. Todas riram de minha atitude. As que estavam sentadas
ficaram de pé e todas juntas resolveram se jogar encima de mim,
obrigando-me a sentar novamente no sofá. Não pude contê-las. Estava
sem forças e debilitado e perdia em equilíbrio e medo para aquelas
crianças abomináveis. Só sei dizer que enlaçaram com os seus braços
pequeninos o meu pescoço, os meus braços e as minhas pernas e me
mostraram, mais uma vez, os punhais que todas possuíam. Prevendo que
suas intenções não eram das melhores, fui logo tentando convencê-las
a não praticar o homicídio culposo. Dirigi a elas essas palavras:
"Vocês tem que me compreender. Olha, não são todas as pessoas que
aceitam a morte. Eu, por exemplo, me recuso a aceitá-la. Cada qual
julga e escolhe o que é melhor para si. Eu não estou preparado para
morrer e nem quero aprender. Sou ainda muito novo e não sei como fui
parar aqui ou o que está acontecendo, por favor!" Elas olhavam pra
mim como se nada compreendessem, boquiabertas, moribundas, estranhas
e alheias ao meu mundo racional. Riram as gargalhadas, e sem que eu
pudesse me defender, foram cravando seus punhais em todo meu corpo.
Pude sentir as lâminas na carne e ainda tive tempo de presenciar o
sangue escorrendo pra todo lado. Era o fim de uma história real que
eu mesmo não saberia como lhes explicar. Simplesmente aconteceu.
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