Hildeberto Abreu Magalhães

Falas a Dioniso en Crise

I Páginas não riscadas, muros não pichados, paredes sorvidas em tintas unicores, paisagem verde encostada na parede, número nove paredes pintadas por crianças multicoloridas que se extravasam à parede e tecem-lhe veias disformes e lamentando o pouco sangue que lhes percorre e como desejariam voar e tolher ao espírito o vento mais alto. Crianças choram, paredes choram, lágrimas desusadas fecundam óvulos dissolvendo-se evaporando-se à temperatura da superfície e enervando a eletricidade dos dedos; escuta: dispara a seta e atingirás o alvo. O que se pensa não se determina. Termina tua estada com glória e boa companhia. Ecoam belos risos e os vejo debocharem e persuadirem-se... II Deixe tocar tua mão... Apega-me o teu calor. E agora que estou agonizando, verto-me em frio e luz opaca, rapto-te da memória, desmancho-me e desmancho-te em éter de outrora e agora ficar acordado, agora permanecer e ser longe de ti, éter comum! Deixar-te é enfim um máximo de beleza: agora és bela como os cegos a vissem pela primeira vez: és tu e não-eu és a mim e a ti juntos. Ainda és e eu não sou mais que isso: eu e tu. Despeço-me antes que despedace-me a visão que elegi como última: a que eu realmente não sei... III O que pertubaria a tua consciência, nesta tarde, neste minuto vesperal, nesta canção, o que te pertuba? Serão lembranças a te perturbar, a afastar de ti a felicidade, será o passado tão pesado que não possa ser posto de lado para o presente, tua memória te esfalecendo a felicidade? De que vale a vida, cheia de símbolos diversos, se quem vale a vida é cheio de símbolo-fixo? Expõe o passado à sua podridão e à sua morte e verás como foge. Paraste de pensá-lo e já escutas! A música harmônica do vazio pe- netra em ti para esvair-se e repenetrar a tua energia nos cúmulos e cônscios onipresentes. IV Se um dia precisar de proteção contra o frio, já tenho o tapete, que comprei no Seixas. Deus me fez assim, Dioniso, procuro sempre me converter, prezo fazer acima de tudo e todo ter ou saber. Prefiro a autenticidade no homem e admiro nele sua loucura lúcida e sua louca lucidez. Sabe lá como não se faz o quê constituir-se como não é ou é, sendo assim ou não sendo assado. Se precisar um dia de algo e não terei, terei de fazer e tornar para fazer e ser depois, se for a mídia que a compre e a tenha enclausurada. Ninguém necessita minha proteção, visto que cada um pode se proteger sozinho; até eu não quero exércitos. Se comprares algo, terás feito nas mãos. Terás uma imagem nova para idolatrares... V Definitivamente eu sou um mutante; não posso conter em mim o Adão que compraz-se ver sua humanidade reinar, quebrando degraus, saudando novas vias, ao mesmo tempo que ruge a tradição e amamos a tradição mais que tudo ao esfumaçá-la e tornar-lhe nova tradição que não susterá sequer um grande ser que se movimenta, que soluça por todo o Bem consumado por si e por Tao, por mim e por ti. Reina homem, mas conhece teus estragos miserentos! Não podes manchar tua humanidade com tão vil chaga! Espera a embriaguez benévola, pacífico-guerreira. A estupidez da desordem organizada. A ens-vitae torna-se, o homem torna-se, cada célula faz-se e somos construídos para construir, destruindo as velhas tábuas, simbolizar o movimento, o moto- -contínuo, Dioniso. VI Sinta-me: levemente esvoaço o tempo ao teu redor; neste instante não me vês, mas estarei aí a roçar tua pele e beijar teus cabelos, estarei agora planejando uma visão desvirtualmente divina, tuas mãos praguejam moscas impertinentes e me acaricias, sem o saber, o vento que te rodeia é meu. Oh! Diana, que mataste Actéon por ter visto tua beleza, o que não farias se soubesses que tens um vigilante cósmico, uma sentinela de tua respiração ofegante. É the best part of the trip, the very best; ser "companhia incesta amabilíssima elétrica ácida salutar" é a viagem, movimento, a melhor parte... Se olho o céu, se olho mesmo o céu, sol ou noite, realmente não te vejo, mas vejo-te ao meu lado, não na lua, teu maior espelho celeste, Deus; vejo-te aqui como eu concentrado em ti e cheirando tua pele, nessa carícia que ma faz um vento que rodeia minha amada, Deusa. Toque-me, veja-o ao vento que esvoaça teu ins, éter-me-ei para sentir saudades do que não vi, furtar-me-ão os sentidos, atolar-nos-ão no racionalismo-idealismo, mas nunca a memória terá sido importante, ¿nunca verei de novo o novo? Ésse, essa letra sibilante, sss, como o ser "novo atuante tórrido actus purus Adam filho". VII Talvez não seja sincero; pensar em ti tão cedo pode ser uma deslavada coreografia da minha mente, que te deseja próxima, que me permite acordá-la de madrugada, e dentro do teu sonho dizer que te amo. Não, não pode ser sincera, esta vontade que, rasgando o peito imberbe, sangra-o facilmente à distância, de te tornar companhia hodierna e na tua pre- sença devo permanecer escutando o estrondo dos vulcões sob sua pele, devo permanecer calado, nessa extrema angústia que quer me levar por baixo de tuas roupas, quer colar-me à tua pele. Estás longe, perdida e vaga lembrança, cada vez mais longe. Mas! como fazes, se não te esfumaças em minha vã memória? Não consigo te matar-em-mim? Não te amo sinceramente, estás longe, eu invento uma doença que me matiamorte, sangro indiscreta- mente, mas! como faço para esfumaçar-te em minha vã memória? E se não estiveres só aí? E se dominas algo em mim, algo que não pode ser chamado vão? Estou com tendências à repressão neste território... Mas pensar em ti tão cedo só poderia terminar confundindo a mim e acordando o vizinho, para escutar-te a música. O fato não foge à tendência tradicional de sonhar a noiva antes do casamento, ou querer mais das bebidas bacantes ou do néctar divino ou apenas lembrar que há pouco nasceu o sol, já ontem choveu, há muito não quero tanta solidão, me dói pensar-te e não tocar, por isso farei-te a estátua; desejo adorá-la, enquanto estás longe. VIII Ah! criança selvagem brilhando no meio-dia nuestra vida. Rasgarias meu coração, adoçarias minhas entranhas e sacrificarias-me a algum Deus cruel sangüentino. Emprestarias minh´alma como virtude ao Deus solar, meu inimigo humano, meu pólo destruidor, meu degelo, a morte dos meus amigos e amigas, varão coloquial. Eu posso ver do vão pórtico teu fulgor, usurpo a ti a energia que movimenta o vento e o círculo; ¿podes ser maior? Do tamanho de um pé, podes insignificantizar-me? Podes deixar teu fulgor, Deus? Um sempre-pronto, o semi-pronto-círculo, proto-Deus. Gravita sobre mim, chegas-me à necessidade, sabes-me. Teu sopro me acorda, teu vento quente me cerca e desalmado arranca as epidermes, leva-as de mim, o que não me possui, livra-me do frio, tirando-me. Teu corpo suado liberta o meu, teu trabalho duro, meu corpo semeado em tuas entranhas, os frutos sorvidos com ardor nas fartas mesas. E exangues olhos com fome e sangue, sugerindo-lhe o divino. A miséria não faz parte na beleza de minha estética. A última crueldade que me permito é a aurora, que dizes tão fria, e eu que faço referenciais as horas lidas distantes, tu que me caças e me fazes guerra, não acreditas na inocência e ingenuidade aflita do meio-dia do Deus. IX A virtude do Deus agonizante é o esquecimento, a virtus dormideira, a chacina dos últimos neurônios e a beleza estética que consegue apreender então. Nem bem nasceu, já é um Deus-morto, acorrentado ou crucificado pela infâmia, a inveja do Olimpo, assalta-lhe o esquecimento e a beleza final. Medo medo o Deus agonizando não sente medo, não pode perder-se, não é virtude sua ter, nem sequer geme tão alto, não é necessário, tem todas as paixões contidas num olhar, viveu suas atividades como conduziu o filho ao lar; assim devoradas, as horas cortam pulsos, púcaros. ¿Nem ao menos piscas este olho cruel, não ao menos perceber tua dor? Não sente dor alguma, pensou uma dor maior e regozija agora, permanece calado da sua alegria, continua atônito frente a última respiração. Já estava enterrado. Acordou dentro de um enorme caixão que mal o continha. ¿Careces o último verso? Virás com sublimidade, beijar-te-ei a face, lembrando-te do encontro marcado comigo, logo mais à véspera do sol. Não partirás impunemente, mais um inocente morto: a pedra te chorará, a chuva te lamentará e levará as cinzas das vestes de tua amada; brotarás então.


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