Hildeberto Abreu Magalhães
Neurônios
Não seria capaz de te escrever um poema confesso,
um poema capaz de autenticidade e odor?
Fico onde estou, mascarando o sofrimento, sozinho,
sem necessitar da simplicidade da saudação triste;
corro o olhar, à vista de um olho vermelho, todo
segredo binário transforma-se em conto...
Será que lhe roubei o sossego? Meu corpo vertido em fumaça,
movimentando-se como bailarina, roçando teu ventre:
apresentas-te sofreguidão e descaso, re-flexo opaco;
como vou olhar-te sem desejar-te o contato caro,
o sussurro perto da nuca, teu cheiro que me corta.
Penso antes que roubaste-me a paz e nada de bom
restou desta história morta.
Em pleno meio-dia, parado aqui, nesta rua, aguardando um
beijo indeciso, estás querendo derreter-me; verás
como se comporta um triste 'ice cub' orvalhado,
umedecendo o vale entre teus seios belos e pequenos,
descendo por tua barriga como uma língua ardente.
Custa-me pensar que do teu lado sou uma criança tola...
Quando penso em ti, minha cabeça dói; como fosses
sair de lá, por acreditar-me afim a Zeus: mas
que vão apelo à Natureza. Revelo-me miserável!
A vontade necessária para tanto não é consistente!
Antes, zelo por estares aconchegada e quente, então,
nos pequenos fios condutores de minha parca luz.
Ah! como quero poder descrever e dissertar, e assim
escrever-te um romance para as horas fúteis, mas
tenho pouca memória (pouca vitamina, talvez) e
sintetizo a vida analisando o dia por vez.
Teria que ser um conto, ainda que aprecies o canto.
Teria que ser uma curta história, que deixa saudade;
Miss me? Eu sinto tanta falta, me falta força para
seguir-me fartando a vida, na falta e na tortura;
fazer-te nova escultura, servir-me-ás como modelo.
Mas estou longe e tua imagem é vaga e sombria.
Quero lançar-me às pedras, ou antes, fazer delas
talismãs, teus voodoos secretos, uma fruta saborosa.
Quero me lambuzar de cores variadas e pintar-te
o corpo, quem sabe deixar de ser tão cínico.
O amor de Prometeu, o amor de Dioniso, o amor de Zeus,
que mais posso desejar-te como signo fatal?
"Demos as mão e ao correr juntos, esbarramos em fórmulas
mal-ditas e satíricas, de refrões seculares".
Já vimos juntos o arrebol? É um risco a mais;
metáforas espessas, o que podem expressar?
Pergunta-se do que "sub-jaz" ou do que "aparece"?
Tento acreditar em "Lethes", deixar-te na memória,
escorregarem-se os dias nestes rios fluentes;
estamos navegando à deriva de uma intersecção de setas.
E ainda a alma rebelde que me cospe o rosto:
constrange-me o suicídio, por ser uma utilidade inútil.
O sonho está diminuindo; a estrada, eu sempre
retorno àquele mesmo ponto, encruzilhada de
escolhas, no mais das vezes, interpeladas pela barbaridade.
Tenho medo do exílio de teus olhos, no assalto ao céu...
Assim quer o Deus? Desenhos de fumaça, crianças brincam,
a vida correndo mais um setembro, construindo o caráter
da prima-vera, sob auspícios diversos e 'be careful!'.
Acredito realmente na guerra e na morte, mas não
na dor. Como se estivesse perdido no caminho,
mesmo sabendo exatamente onde me encontro.
Mesmo pre-sentindo que tudo correrá como antes e
poderei beijar-te cálida ou calorosamente, assim
exijo uma seta para o arco que curva sóbrio:
teu suor em minha boca, teus sais para salvar-me
da solidão, teu sexo para energizar minhas glândulas.
Ou somente o teu cheiro, teu olhar, e 'go away alone'.
Veja, os animais, todos se soltaram: veja o coelho
Bob Dylan e a galinha Janis, o porco Rotten;
corra, ou vamos perdê-los! Agora, pastor!
Traga-me o vinho do odre mais antigo, comemore
comigo o brotar da estação, dilacera-me com
teu punhal, pareço anestesiado? Serei símbolo-diverso?
Deita do meu lado esquerdo, cobre-me com teu corpo,
para sentir-lhe o peso; diga-me apenas 'querido' e
já a música inquietante absorve-nos em cristais.
Lamento não poder gritar! Lamento a guerra e o
rosto no espelho. O que estou fazendo? Nada.
"Não é nada orgânico, obrigado". Ecos primaveris.
Passa o passo rápido no
auge do contraste que
sobe ou desce e que
seca e umedece agora...
Alçou vôo e desapareceu,
roçou o enjôo e vomitou,
olvidou voar como pássaro...
Um vento que rodeia minha amada, um vento quente
do norte, aliás, tórrido e puro éter, e mudança
de modo-contínuo, mesmo sendo um e o mesmo,
movimento ávido do mesmo calor, estátua na chuva!
Preciso preencher uma ânsia de vacuidade e dispersão,
para arrebatar a lâmina de tua mão, naquele dia,
quando os medos e paixões subsistiram num gesto;
quando mudas o fim do poema e descubro que foi
antigamente projetado e me vejo nele feliz e
absorto por ser divinamente dirigido a ti,
em todas as súplicas surdas e canções, em
novas re-edições de línguas mortas, que não se tocam
mais, que feneceram por falta de uso devido
ou mesmo impróprio. Não houve o fato. Ridículo?
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