Higino Rolim Neto

Eu e a Poesia
                  
 
 
            Convidado para homenagear meu genitor, Cristiano Cartaxo, durante a semana comemorativa da emancipação política de Cajazeiras, no Dia da Cultura,  preparei uma peça teatral, unindo poesia e teatro, pois, para mim, Poesia e Teatro são como "...duas flores unidas, duas flores nascidas, talvez no mesmo arrebol. Vivendo no mesmo galho, da mesma gota de orvalho, do mesmo raio de sol'. (Castro Alves). 
            Apresentei-me, com minha cabeleira branquinha, e comecei fazendo minhas as palavras de meu genitor, agradecendo o convite para assumir uma cadeira na Academia Paraibana de Letras:
 
 Estou velho. Já não me tenta mais  
a veleidade de afagar a idéia 
de figurar na olímpica assembléia, 
mortal que sou em meio aos imortais. 

            Fiz de subir a minha Dulcinéia. 
            Fui cavaleiro andante entre os demais. 
            Tentar subir até aonde estais 
            poria uns tons ridículos à estréia. 

                        Se já não sinto os estros e alvoroços 
                        que brotam n'alma no verdor dos anos, 
                        o que me resta é encorajar os moços 

                                    e guiar-lhes os ímpetos e arrancos, 
                                    sem lhes mostrar o pó dos desenganos 
                                    nos "capuchos" de meus cabelos brancos.

 
            Meus cabelos brancos. Entrava eu numa cantoria, quando os cantadores exaltavam seus cabelos brancos. Dizia um: "Esta minha cabeleira, que com o tempo se maltrata,  foi preta como veludo,  é branca como cascata". O outro emendou: "Esta minha cabeleira, que com o tempo se maltrata, hoje é um lençol de neve,  numa montanha de prata". 
            Ao me ver, param.  Olham para mim. Emendei na hora...(e nem sei se esses versos são mesmo meus ou já os sabia de cor): "Estes meus cabelos brancos,  que a mão do tempo maltrata,  são polvilhos de sereno das noites de serenata". 
            Meus ou não, fica o registro. Meu mesmo é o soneto abaixo. Uma irmã minha soube que eu estava fazendo poemas e me escreveu, preocupada: "Veja o exemplo de papai. Acabou tudo que tinha... sua herança, uma fortuna, por causa de poesias. Hoje somos pobres". E terminava a carta,  peremptória: "Desde já (eu tinha, então, dezenove anos) um corte nesta veia poética!" Respondi-lhe, incontinente:
 
Impossível 

            Irmã, já viste cristalina fonte 
            que vem, travessa, alegre, sorridente, 
            brincando pela encosta de alto monte, 
            cantar pela campina viridente? 

                        Já viste a luz de rúbido horizonte, 
                        doiranto o céu e a terra, alacremente? 
                        E podes obumbrar do sol a fronte 
                        ou impedir que cante a audaz torrente? 

            Minh'alma é qual regato cristalino 
            sempre a rolar no "azul das harmonias". 
            No peito eu trago do estro o sol divino... 

                        Em vão sufoco a inspiração inquieta. 
                        O verso flui,  cantando as alegrias 
                        e as aflições chorando do poeta!

 
            Meu também o soneto abaixo. Herança. Mas perdoem-me. Só o compreenderão lendo, primeiro, um outro de papai: “Arvore Seca
 
Meu coração cansado não responde 
mais ao rumor de antigas harmonias! 
Não há nenhuma só, sequer, que o ronde 
das alegrias daqueles belos dias! 

            Sou uma árvore velha, já sem fronde, 
            em que, fugindo ao sol e às calmarias, 
            os passarinhos não encontram onde 
            trinolejar festivas melodias! 

Sem folhas e sem flores. Ermos ninhos,  
pendurados na ponta dos espinhos, 
enquanto no alto fulge o firmamento! 

            E da árvore, que fui em tempos idos, 
            agora só se escutam ais, gemidos 
            de galhos secos estalando ao vento!.

 
            Minha resposta veio rebelde, furiosa, bruta. Partira de casa, onde era criado com mimos pelas filhas de escravos, "dormindo em colcha de cetim" e voltara, doze anos depois, para constatar que éramos todos pobres. Herança. Árvore Seca. Que se pode herdar de uma árvore seca, "sem folhas e sem flores"?
 
Parti... deixando em maio aos resplendores 
da floração uma árvore gigante! 
Tudo,  em casa, eram luzes e esplendores, 
aos beijos matinais de um sol radiante! 

            Voltei... e, em vez de aromas e verdores, 
            encontro um tronco, erguendo ao sol  'stafante 
            os braços nus, sem folhas e sem flores! 
            E da árvore viçosa, exuberante 

herdei  somente - até parece incrível! -  
gemidos, ais, pesares, sofrimentos! 
Reboa na minha alma um atroz, terrível 

            incontrolável  grito de tormento! 
            Um como eco, inexplicável, inexprimível, 
             de "galhos secos, estalando ao vento!"

 
            Os primeiros versos que recitei era pequenininho, na escola de minha tia. Lembro-me bem. Eram versos de Olegário Mariano, em homenagem ao Dia das Mães.
 
“Quando, num dia calmo, eu vim ao mundo,
minha mãe - bela e linda Flor de Lys -
disse, olhando os meus olhos, bem no fundo:
 “Meu filho, hás de ser bom e ser feliz!”
Com o perpassar da onda humana,
que ruge e se encapela,
toda coisa de mal que acontecia...
eu me lembrava das palavras dela...
e era um gozo infinito
o que eu sofria.
Hoje,  homem feito,  sofrendo males
pelo bem que fiz,
inda me lembro das palavras dela.
Palavra que me conforta.
Sei que sou desgraçado,
mas que importa!
Quero iludir-me para ser feliz!”
 
            Depois entrei no mundo fascinante do Cordel. Cancão de Fogo, João Grilo, Lampião na Bahia... Zé da Luz.
 
“O qui é Brasi caboclo? 
É um Brasi brasilêro, 
sem mistura de instrangêro, 
um Brasi nacioná! 

 .x-.x-.x-.x-.x- 

“... Eu via duas fulô. Eu via duas Maria. 
... Na tristeza daquela hora, só uma voz se uviu: 
Estou vingado, Machado! 
Vingado pro tuas mão! 

Tás satisfeito, Canela? 
Tás vendo o cadarve dela? 
Apois bem, eu num tô, não.  
Resta na pistola outra bala. 

Se alevantô pra correr, 
mais num pôde, meu patrão. 
Um ôto tiro se uviu 
e o meserave caiu, 
com um ôio d’água de sangue 
pro riba do coração!

 
            Já taludinho, fui ficando "safadinho" ... Como desejei "ser um caçote, cum dois óios desse tamanho, pra vê aquele magote de moça, nuas, tomando banho"... ou, então, desejando "morrê nos braços da dona dos dois cuscuz!". 
            Depois veio Bocage. Alguém grita para ele, num transporte coletivo daqueles tempos: "Bocage, eis um mote. Glose. Quando de Atenas partiu, o argonauta valente". Imediatamente, Bocage responde: "Ficou muito descontente, vendo a pqp... logicamente não-tão-distinta senhora sua mãe!".   
            Passei muitos anos de minha vida  recitando poesias,  principalmente de Castro Alves.  Navio Negreiro, Vozes D'África, Cachoeira de Paulo Afonso. Ode a Dois de Julho. Na juventude, era doido, alucinado por seus poemas.  Decorava quase tudo, para recitá-los nos serões literários. Mas este  gênio já está,  na íntegra,  neste Jornal da Poesia.  Por isso, quero prestar uma homenagem a um poeta desconhecido. Dele, uma poesia me marcou e foi a que mais recitei em toda a minha vida. Trata-se  de Dom Augusto,  que foi o primaz da Bahia,  cujo pseudônimo é Carlos Neto... e o poema:
                                              
      A Morte do Cão
             
Chamavam-no Gillet. Soberbo cão de raça
que um caçador famoso, um doido pela caça,
mandara vir de fora, a peso de dinheiro.
Era um ídolo o cão. E aos carinhos tão doces
dos agrados gentis, o cão acostumou-se
a consagrar, também, a vida ao companheiro.

Na época melhor das ótimas caçadas,
os dois partiam sós, à luz das alvoradas,
buscando o coração misterioso das matas.
E voltavam, depois, alegres e contentes,
despertando  em redor  os íncolas dormentes,
ao compassado som de estranhas serenatas.

Mas, depois de algum tempo, o cão envelhecido,
desdentado, sem forças,  exausto,  entorpecido,
já bem dificilmente acompanhava o dono.
Era um cão sem valor, inútil companhia,
que preciso se fazia, de dia para dia, 
ir deixando ficar em mísero abandono.

A fortuna também girou, rapidamente,
e o velho caçador, tão rico, de repente
sentiu minguar-lhe o pão. Sentiu faltar-lhe o ouro.
A morte lhe roubara a esposa muito amada
e ele viu sua casa escura e abandonada,
tendo um filho só por último tesouro!

  II

Um dia, disfarçando o peso da desgraça
que,  aos poucos,  lhe esmagava o triste coração,
ele partiu, cantando as emoções da caça.
Mas quis partir sozinho. E  acorrentou o cão.

Do mísero cativo as pérolas do pranto 
desceram. Mas, ao ver o caçador contente,
o pobre cão lá foi, resignado, a um canto
deitar-se, carregando o peso da corrente.

A noite que descia em silêncio e trevas
envolvia a casa. E eis que, repentinamente, 
farejando a amplidão, faminto, um lobo avança...
 

(E lá no berço a criancinha dorme,
como dorme num berço uma criança.)

Escancarada a porta encontrava-se então.
                   
                     O lobo se aproxima...
                                       Nesse momento,
No turvo olhar do cão lucila um pensamento.
E eis que, grunhindo, uivando, o cão forceja, torce
retorce
e quebra, num ímpeto de amor,
     os elos  da corrente.

Travou-se, então, uma horrorosa luta,
no silêncio da noite,  indiferente e bruta.

Surdo ranger de dente, ossos a estrelejar.
Mil contrações de dor. O sangue a borbulhar,
a relva machucada... o fogo do cansaço...
e baques pelo chão... Tudo espalha no espaço

em ímpeto fremente, um acre odor de guerra!
Depois... o baquear de um corpo em cheio em terra
Depois... um abafado e último gemido.
Um preito ao vencedor, por parte do vencido.

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Depois daquele horror... depois... Depois mais nada. 
Era a tragédia finda e a noite sossegada.

Mais tarde, ao despertar da fresca madrugada,
o  caçador voltava.
Vendo  a porta aberta,
a casa palmilhada 
 e toda salpicada, com o sangue do cão,
corre para o berço do filhinho.
Anseia, estua, pára...
ao vê-lo ensangüentado
e vazio.

Tonto de amor paterno, cego de vingança,
afaga junto ao peito o cabo de um punhal
e, vendo aos pés a festejar-lhe o cão,
atira um golpe rijo ao peito do animal
que, exânime, resvala em último suspiro.

Mas, nisso, ouve uma voz que chama o caçador.
"Papá, papá, papá!" Alucinado, incerto...
era a voz do filhinho - o filho estava perto -
correu  desesperado... e - atônito,  absorto -
o foi achar, contente e sossegado, 
junto à casa do cão... e, ali bem perto, ao lado,
um lobo enorme, mas ensangüentado e morto!.

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 Página editada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  14  de  Maio  de  1998