Em repouso, já
fora das sandálias,
No estradinho com fronha
e travesseiro
Os pés de Frei
Damião são retirantes
Arranchados à
sombra do ingazeiro.
Revestidos de pó
e couro cru,
Palmilharam caatingas,
arruados,
Serrotes do sertão,
adros de fé,
Santas Missões
de ex-votos e esconjuro.
Os pés de Frei
Damião sem as palmilhas
São ilhas de repouso
merecidas,
Varandas brancas, redes
de dormir,
Alpendres sertanejos,
velhos pousos.
No estradinho , libertos
das sandálias
Os pés de Frei
Damião soltos no pasto
na madorna
São dois jumentos
livres da cangalha.
Os pés de Frei
Damião no tabuleiro
São ovelhas senis.
Alvas marrãs
De pêlo penteado
a carrapicho,
Já deram carne
tenra e branca lã.
Rudes pés de aliança
tão antigas...
Viram sóis e luares,
seus colapsos.
Guiaram pelos céus
as avoantes
Das bênçãos,
confissões, apocalipses.
Os pés de Damião,
velhas rodagens
Transportaram volantes
de socorro
A fazendas e sítios,
cariris,
Grotas de solidão,
abas de morro.
Carmelitas Capuchos Franciscanos,
Gerações
de famílias caminheiras
E de avoengos Adões
espirituais
Dormem nos cemitérios
desses pés.
Os pés de Frei
Damião são como a obra
Da ema correndo pelo
descampado,
Preparando o sertão
para o inverno,
Limpando várzeas
e comendo cobras.
Despidos das sandálias,
no banquinho
Os pés de Frei
Damião, velhos vaqueiros
Conduziram rebanhos bem
guardados
Pelas trilhas de aboio
e cangaceiro.
Pias de carne e osso,
velhas plantas
De amor e fé em
Deus itinerante,
São água-benta,
potes de matar
A sede espiritual do
retirante.
Espantalho do Cão
com suas tretas
Os pés lavados
de Frei Damião
São loções
de limpeza e de esconjuro
Vertidas na moleira do
Capeta.
Já fora da bainha
das sandálias
Os pés exaustos
de Frei Damião
São ainda punhais,
santas peixeiras
Cravadas no vazio do
Bandalha.
Onde não chega
a luz da Prefeitura
Nem o luar a gás
dos candeeiros,
As plantas de Damião
em terra escura
Deram safras de velas
nos Cruzeiros.
Trilha agreste de cacto
e xiquexique,
Via Sistina no sertão
dos rudes,
Os pés de Frei
Damião com as alparcas
São aguadas, marrecas
nos açudes.
Do cafundó à
costa das salinas,
Nos carneiros e lousas
desses pés
dormem as velhas gerações
meninas
De um Brasil de apragatas
e buréis.
Chão de mocó
e vale da caiana,
As solas de Damião
no massapé
Cresceram como partidos
de cana,
Deram o de vestir e o
de comer.
Os pés dormentes
de Frei Damião
São velhos alquebrados;
são os cacos
Das moringas, já
secas, dos cassacos,
Espalhados e inúteis
pelo chão.
Os pés de Frei
Damião já foram bilros
Tecendo renda fina de
almofada
Pela mão das rendeiras.
Alugados
Preparando leirões
com as enxadas.
Os pés de Frei
Damião são horizontes
De arribaçãs
voando em formação,
Tesouras recortando vento
Leste,
Asas do agreste, pios
do sertão.
Os pés de Frei
Damião são caritós
Filhas da Imaculada Conceição,
Enfeitando presépios
de Natal,
Ensaiando lapinhas de
São João.
Os pés de Frei
Damião são camorins
Desovados na calma das
gamboas,
Guiando seu cardume de
filhotes
Pelas bocas do mar, rumo
ao Sem-Fim.
Arca da boca apenas com
dois sisos,
Os pés de Damião
são Lázaros velhos
Vestidos de silêncio,
já chegados
À casa do Senhor,
para o Juízo.
Sem o porém das
meias e o conforto
Das sandálias
de couro de carneiro,
Os pés de Frei
Damião são sesmarias,
Horto dos simples, porto
do romeiro.
Carregados das marcas
e dos selos
Das topadas e lanhos
recebidos
No serviço de
Deus; e da carícia
Dos ungüentos dos
dias percorridos,
Filhos já velhos
de Nosso Senhor
Na modéstia infinita
do cansaço,
Os pés de Frei
Damião adormecido,
No tabuleiro caminham
no andor. |