Homero Homem de Siqueira Cavalcanti

PÉS DE FREI DAMIÃO 
à Sanderson Negreiros e Carlos Lyra
 
Em repouso, já fora das sandálias,
No estradinho com fronha e travesseiro
Os pés de Frei Damião são retirantes
Arranchados à sombra do ingazeiro.

Revestidos de pó e couro cru,
Palmilharam caatingas, arruados,
Serrotes do sertão, adros de fé,
Santas Missões de ex-votos e esconjuro.

Os pés de Frei Damião sem as palmilhas
São ilhas de repouso merecidas,
Varandas brancas, redes de dormir,
Alpendres sertanejos, velhos pousos.

No estradinho , libertos das sandálias
Os pés de Frei Damião soltos no pasto
                                         na madorna
São dois jumentos livres da cangalha.

Os pés de Frei Damião no tabuleiro
São ovelhas senis. Alvas marrãs
De pêlo penteado a carrapicho,
Já deram carne tenra e branca lã.

Rudes pés de aliança tão antigas...
Viram sóis e luares, seus colapsos.
Guiaram pelos céus as avoantes
Das bênçãos, confissões, apocalipses.

Os pés de Damião, velhas rodagens
Transportaram volantes de socorro
A fazendas e sítios, cariris,
Grotas de solidão, abas de morro.

Carmelitas Capuchos Franciscanos,
Gerações de famílias caminheiras
E de avoengos Adões espirituais
Dormem nos cemitérios desses pés.

Os pés de Frei Damião são como a obra
Da ema correndo pelo descampado,
Preparando o sertão para o inverno,
Limpando várzeas e comendo cobras.

Despidos das sandálias, no banquinho
Os pés de Frei Damião, velhos vaqueiros
Conduziram rebanhos bem guardados
Pelas trilhas de aboio e cangaceiro.

Pias de carne e osso, velhas plantas
De amor e fé em Deus itinerante,
São água-benta, potes de matar
A sede espiritual do retirante.

Espantalho do Cão com suas tretas
Os pés lavados de Frei Damião
São loções de limpeza e de esconjuro
Vertidas na moleira do Capeta.

Já fora da bainha das sandálias
Os pés exaustos de Frei Damião
São ainda punhais, santas peixeiras
Cravadas no vazio do Bandalha.

Onde não chega a luz da Prefeitura
Nem o luar a gás dos candeeiros,
As plantas de Damião em terra escura
Deram safras de velas nos Cruzeiros.

Trilha agreste de cacto e xiquexique,
Via Sistina no sertão dos rudes,
Os pés de Frei Damião com as alparcas
São aguadas, marrecas nos açudes.
Do cafundó à costa das salinas,
Nos carneiros e lousas desses pés
dormem as velhas gerações meninas
De um Brasil de apragatas e buréis.

Chão de mocó e vale da caiana,
As solas de Damião no massapé
Cresceram como partidos de cana,
Deram o de vestir e o de comer.

Os pés dormentes de Frei Damião
São velhos alquebrados; são os cacos
Das moringas, já secas, dos cassacos,
Espalhados e inúteis pelo chão.

Os pés de Frei Damião já foram bilros
Tecendo renda fina de almofada
Pela mão das rendeiras. Alugados
Preparando leirões com as enxadas.

Os pés de Frei Damião são horizontes
De arribaçãs voando em formação,
Tesouras recortando vento Leste,
Asas do agreste, pios do sertão.

Os pés de Frei Damião são caritós
Filhas da Imaculada Conceição,
Enfeitando presépios de Natal,
Ensaiando lapinhas de São João.

Os pés de Frei Damião são camorins
Desovados na calma das gamboas,
Guiando seu cardume de filhotes
Pelas bocas do mar, rumo ao Sem-Fim.

Arca da boca apenas com dois sisos,
Os pés de Damião são Lázaros velhos
Vestidos de silêncio, já chegados
À casa do Senhor, para o Juízo.
Sem o porém das meias e o conforto
Das sandálias de couro de carneiro,
Os pés de Frei Damião são sesmarias,
Horto dos simples, porto do romeiro.

Carregados das marcas e dos selos
Das topadas e lanhos recebidos
No serviço de Deus; e da carícia
Dos ungüentos dos dias percorridos,

Filhos já velhos de Nosso Senhor
Na modéstia infinita do cansaço,
Os pés de Frei Damião adormecido,
No tabuleiro caminham no andor.

  
 Remetente : Walter Cid

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