João Adolfo Hansen


Floretes agudos e porretes grossos

especial para a Folha de São Paulo

No Antigo Regime, dizia Adorno, a sátira aparecia como o florete agudo da distinção virtuosa dos melhores. Depois de algumas revoluções, deveria aparecer como o porrete grosso dos privilégios.

Hoje, apropriações de ''Gregório de Matos'', classificação de um corpus poético colonial, ainda fazem o nome reencarnar-se retrospectivamente no seu tempo, o século 17, como um indivíduo liberal-libertino-libertário a profetizar o advento do ''Barroco'' e dos ''neo-Neo'' no retrô geral desse fim de século.

Na Bahia do século 17, a ordem era imposta, contestada, deformada e sempre reposta como padrão civilizatório em vários registros e meios materiais _entre eles, a sátira atribuída a Gregório de Matos, cuja produção e consumo incluíam-se na ''política católica'' do império português.

Como uma prática fundamentalmente integrativa, então a sátira emanava do lugar sagrado do Rei-hipóstase de Deus, ou da Trindade, Potência do Pai, Sabedoria do Filho e Amor do Espírito.

Programática, a arqueologia da ruína satírica seiscentista reconstrói tensões, conflitos e mesmo contradições dos seus usos em seu tempo porque não quer o fóssil. A diferença arruinada do passado é, justamente, a medida crítica das petrificações do presente que efetuam ''Gregório'' como desmemória política e cultural.

Como Robinet demonstra para o ''Ancien Régime'', também na Bahia seiscentista a Potência subordina as outras primordialidades, assegurando o monopólio da violência da ''razão de Estado'' em nome da prudência política do governo cristão que declara visar ao ''bem comum''. O que se faz com Sabedoria e Amor, segundo a sátira, que glosa o absoluto da ordem. Não distingue ''público'' e ''privado''; ratifica a proibição da imprensa e a censura intelectual; aplaude o Santo Ofício da Inquisição e a caça à heresia; reitera ordens-régias e bandos que determinam a destruição de quilombos, a ''guerra justa'' ou massacres de índios, as devassas de foros falsos de fidalguia, de desvios de impostos e contrabando, de sedições de soldados e da plebe, de amores freiráticos, de sexo nefando, de blasfêmia e bruxaria. Antimaquiavélica, antierasmiana, antiluterana, anticalvinista, antijudaica, absolutista, contra-reformada, define as medidas da Potência como ações prudentes, amorosas e sábias. Insiste: devem ser complementadas pelo degredo, pelos açoites, pela forca, pelo garrote vil, pelo auto-da-fé e mais castigos, exemplares, não menos prudentes, exercidos com Sabedoria pela Potência pública em nome do Amor do todo. Como se lê, em outro registro, nas ''Cartas'' e nas ''Atas'' do Senado da Câmara de Salvador, em nome do ''bem comum do corpo místico do Estado do Brasil''.

Na dilatação da Fé e do Império desse ''corpo místico'', o satírico metaforiza a analogia com que Santo Tomás de Aquino define o terceiro modo da unidade de integração das partes do corpo humano no comentário do ''Livro 5'' da ''Metafísica'', de Aristóteles. A unidade do corpo pressupõe a pluralidade dos membros e a diversidade das funções. Sua perfeição, que é ordem, resulta da sua integração harmônica como instrumentos para um princípio superior, a alma. Por analogia, o ''corpus hominis naturale'', o ''corpo natural do homem'', é o termo de comparação para o ''corpo político do Estado'', doutrinado como integração hierárquica, concórdia e paz de indivíduos e estamentos, súditos, que o compõem.

Na sátira, a autonomia é a paixão máxima que pode afetar os corpos. Nela, o ''bom uso'' político do ''cada macaco no seu galho'' reatualiza o meio-termo racional da virtude da ''Ética Nicomaquéia'', adaptando-o ao elenco completo das virtudes cristãs, como meios e fins da colonização: defesa do território, controle da população, escravismo, catequese, combate à heresia, manutenção dos privilégios, ócio dos doces negócios do açúcar e do sexo.

Assim, a virtude do satírico metaforiza o conceito de superioridade social da racionalidade de Corte absolutista. Então, a superioridade só é mantida pela submissão política e simbólica às instituições. A submissão implica uma lógica da distinção pela subordinação à vontade real, à etiqueta e ao dogma. Afirma uma sátira ao Conde da Ericeira, que se suicidou jogando-se de uma janela: ''Quem cai da graça d'El-Rei/ cai da sua desgraça''. Outra, que identifica ''sodomia'' e ''judaísmo'' pela perspectiva da instituição real: ''Mandou-vos El-Rei acaso/ a Sodoma, ou ao Brasil? Se não viveis em Judá,/ quem vos meteu a Rabi?''. Ainda segundo o padrão da racionalidade de Corte, a identidade virtuosa do satírico e a não-unidade viciosa dos satirizados são compostas como representação e por meio da representação. A virtude alega signos de ''limpeza de sangue'', catolicismo, fidalguia, liberdade, discrição e masculinidade, opondo-se às representações que pretendem a autonomia que lhe subverte a superioridade pressuposta: ''Ou por limpo, ou por branco/ fui na Bahia mofino''. Em outra: ''Alerta pardos do trato,/ a quem a soberba emborca,/ que pode ser hoje forca,/ o que ontem foi mulato''.

A posição deriva da forma da representação e, sendo figurado como parte de um conflito de representações, o satírico joga com a dupla hierarquia do seu ponto de vista. Quando afirma sua virtude e constitui o vício como obscenidade ''contra naturam'', a (des)constituição do tipo prova metaforicamente a (im)propriedade política do ''topos''. Na sátira, a tipologia semântica de virtudes e vícios é uma topologia pragmática de posições hierárquicas.

Instituição, a sátira produz a perversão como exemplaridade da regra. Para tanto, apropria-se da retórica de Quintiliano, Cícero e Aristóteles; emula a poesia de Juvenal; cantigas de escárnio e maldizer; o Cancioneiro Geral, de Resende; Camões, Suárez, Melo, Rodrigues Lobo, Gracián, Saavedra Fajardo, Quevedo, Góngora, Botero, Tesauro... Aplicando padrões coletivos e anônimos _''... é já velho em Poetas elegantes/ O cair em torpezas semelhantes''_, opera com técnicas de uma racionalidade não-psicológica, que estiliza e deforma os discursos das instituições e da murmuração informal do lugar. Sem pressupor a expressão do ''eu'', a autoria, o mercado e a originalidade, compõe o ''público'', na representação, como representação teológico-política de ''discretos'' e ''vulgares'': ''O néscio, o ignorante, o inexperto,/ Que não elege o bom, nem mau reprova,/ Por tudo passa deslumbrado, e incerto''.

Suas deformações obscenas são reguladas pelos dois estilos do gênero cômico: o ridículo, adequado aos vícios fracos, e a maledicência, própria dos nocivos: ''Tudo, o que aqui vos digo,/ ora é zombando, ora rindo'', diz o personagem satírico. Em ''Gregório'', domina a variante maledicente: ''zombando''. No caso, o satírico é um tipo virtuoso e indignado contra a corrupção do seu mundo, conforme uma afetação retórica de indignação. Como na sátira de Juvenal, que imita, afirma que está às avessas e que sua indignação também é caótica, como se a fala fosse expressão informal de sua ira. A sátira, contudo, é uma arte do insulto que finge não seguir nenhuma arte: suas paixões são naturais, mas não são informais. A irracionalidade da indignação é construída racionalmente e sua obscenidade pressupõe, como dizia Klossowski sobre Sade, as normas que a tornam visível e emolduram. Na poesia católica chamada ''Gregório'', o obsceno é alegoria do pecado mortal, a infração hierárquica, que corrompe a unidade do ''bem comum''. A anatomia horrorosa de vícios, com que compõe tipos vulgares, não é subversiva ou transgressora da ordem. Também na vituperação dos ''melhores'', o desbocado do ''Boca do Inferno'' encontra a realidade não na empiria, mas nas convenções hierárquicas da recepção contemporânea, pautadas pela concordância quanto à imagem caricatural que elabora, enquanto mantém em circulação os estereótipos de pessoas, grupos e situações.

A sátira não é iluminista. Concebe o tempo qualitativamente, como análogo do divino. Quando dramatiza os discursos do ''corpo místico'', perspectiva-os pelo dogma da ''luz natural da Graça inata''. Seu estilo misto formaliza a percepção do destinatário como participação da visão física e espiritual na Luz refletida nas agudezas obscenas. Não tem autonomia estética. A visão é ordenada retoricamente por uma proporção óptica, que compõe o ''ponto fixo'' do juízo que avalia os efeitos. Quase sempre, são quiasmas _''amizades de um Visconde, favores de um Conde vis''; ''Senhora Dona Bahia, nobre e opulenta cidade,/ madrasta dos Naturais,/ e dos Estrangeiros madre''_, uma alegoria, cuja agudeza engenhosa lembra uma anamorfose. O ''pli'' deleuziano é, no caso, não a ilimitação do ornamental pós-moderno, mas a representação cenográfica da participação divina, que captura todas as suas espécies de efeitos na Unidade efetuada como pressuposto. Entre eles, o juízo agudo do satírico que produz a anamorfose.

As gracinhas de ''Gregório'' não conhecem o nosso psicologismo positivista. Muito menos, a negatividade da crítica iluminista, que acabou de debandar pós-utópica na revoada tucana. Seu etnocentrismo é de outra ordem: funde conceitos de estilo alto e baixo no misto deformado e satura-os com a unidade metafísico-política do absolutismo porque critica abusos repondo o bom uso. É ''theatrum sacrum'', nome que os jesuítas do tempo davam à representação em geral. Na interlocução das representações, o satírico é o ''discreto'' agudo e racional que aparenta as virtudes heróicas do perfeito cavaleiro cristão, o engenho e a prudência. Representação, sua identidade é ficção, estilo de aplicar estilos, efetuando e afetando aparências. Nelas, tipos e categorias sociais _''negro", "pardo", "índio", "cristão novo", "judeu", "comerciante", "mulato", "ourives", "puta", "sodomita"_ são a principal matéria satírica, porque identificados a vulgares viciosos. Vulgares porque doutrinados como naturalmente baixos, sem discrição; vulgares porque não sabem o seu lugar; vulgares porque pecam contra a natureza; vulgares porque se apropriam da convenção do "discreto" para com ela obter distinção e impor a classificação negativa a concorrentes. Segundo tópicas do mundo às avessas, a sátira reitera a natureza imutável do poder gravado nos corpos: ''Desejo que todos amem,/ seja pobre ou seja rico,/ e se contentem com a sorte/ que têm, ou que estão possuindo''.

João Adolfo Hansen é professor de literatura brasileira na USP, autor, entre outros, de ''A Sátira e o Engenho - Gregório de Matos e a Bahia do Século 17'' (Companhia das Letras/Secretaria de Estado da Cultura).



(in Folha de São Paulo, 20.10.96,caderno Mais!)

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