DOIS
CENTENÁRIOS GRAPIÚNAS -
Sosígenes
Costa e Nelson Schaun na poesia política
Duas
personalidades que se marcaram no perfil do mundo cultural
sul-baiano, Sosígenes Costa e Nelson Schaun, têm centenário de
nascimento este ano. Seus trabalhos e paixões impõem-se à
rememoração. Sosígenes Costa, que teve a poesia por destino,
imaginou uma mítica história de sua terra e sua gente, mas
datou-a “do tempo do onça, em que o rio não tinha cacau” e
misturou nesse enredo os deuses do Olimpo e os que ele criou na
sua mitologia indígena, aboliu o néctar e a ambrosia do banquete
dos gregos e os substituiu pelo suco da polpa do cacau: E o cacau
foi chamado o alimento do céu.
A
origem divina dessa lavoura se mostra, com clareza, quando
nasceram Sosígenes e Nelson, e por sobre a imensidão da floresta
que ia da foz do rio Cachoeira à barra do Jequitinhonha, terá
havido a cimeira dos deuses. Não somente os locais, mas todos
eles num congresso de ventos. Maravilhados com a beleza do mar e
da mata virgem, deitaram sobre ela uma bênção consensual. A bênção
divina foi rapidamente levada à prática e dois novos elementos
se juntaram ali: um odor denso, moreno, cobriu toda a região,
encheu todos os peitos do mesmo anseio, todas as cabeças do mesmo
e único sonho.
Nelson
Schaun e Sosígenes Costa, dois legítimos grapiúnas, nasceram no
primeiro ano do último século do milênio. O cacaueiro, que
nenhum deles plantou, até já teria deixado de produzir, mas seus
trabalhos e paixões são ainda palpáveis, mesmo que, para
alguns, possam parecer de duvidosa utilidade. Neste relato, que
agora se faz pedestre, retomo da memória suas figuras num mesmo
dia-a-dia sem aventura, diferentes uma da outra mas que se
aproximam e se assemelham no lastro comum que animou seu
pensamento.
Nelson
nasceu em Ilhéus, Sosígenes chegou de Belmonte aos 16 anos.
Nunca saíram dali, a não ser por raros e breves dias; Ilhéus
era o núcleo urbano central do mundo cacaueiro, dali a lavoura
subira os rios para o interior. Num movimento inverso, a ela
chegavam as cargas de amêndoas secas, nos vagões de brinquedo da
ferrovia dos ingleses, transferidas em alvarengas aos cargueiros
estrangeiros que ancoravam diante da avenida da praia, pois o
porto somente recebia embarcações de pequeno calado. Ilhéus era
o centro nervoso do processo de produção, cofre dos primeiros
bancos, comprava e pagava à vista, com seus agentes por todo o
interior, o cacau miúdo dos posseiros e burareiros e as safras
numerosas dos grandes fazendeiros.
Era
ela com seu mar e suas colinas, e era nova em folha, ao tempo de
Nelson e Sosígenes; de discutível antigüidade tinha apenas a
igrejinha de São Jorge; dispensava fortes coloniais que lhe
recordassem antigos canaviais, donatários ou senhores de engenho.
Renascera capitalista, por seus caminhos corria dinheiro vivo,
nada lhe perturbava a riqueza, tanta e tão acessível. No imaginário
popular, Deus fora rebaixado a simples corretor da esperança que
levaria o alugado à eminência da estátua dourada do Coronel,
figura emblemática da bem-aventurança. Nelson Schaun e sua
cidade eram amantes e contentes. Ele a tratava com a intimidade
alegre e sem restrições do namorado nascido, criado, vivido e
disposto a morrer ali onde bate seu coração e seu sangue
reconhece cada esquina e seu rosto é reconhecido em todos os
momentos por todas as pessoas.
De
acordo com sua vocação de figura pública, ele se fez professor.
Sua escola estava em toda parte, estava no mestre sempre disposto
à lição. Na sala de sua morada com Vanja (nome raro, suave
sussurro), primeira casa da rua do Sapo, a das moças sem maridos,
mas com filhos, aos quais ele ensinou gratuitamente a “ler e
escrever corretamente a língua portuguesa” (...). No bar do fim
de tarde, era onde se tornava aluno da intimidade, apenas
murmurada, com um sorriso maroto, dos segredos que todos
saboreavam: o Maraú, do comandante italiano, havia chegado e
apitara longamente para avisar a Cremilda, no alto de São Sebastião,
que seria seu parceiro-coronel para a noite de amor; ou o
afundamento do iate no gargalo da barra, de onde escapara a
professorinha de Itapira, beata e virgem, passando graxa de sapato
em todo o corpo para esgueirar-se pela vigia estreita - e a
garotada se assanhara com a visão.
Sosígenes
Costa nasceu na ponta sul da região, foz do Jequitinhonha e
trouxe para Ilhéus todo o seu cabedal: o conhecimento dos sinais
do sistema morse e uma bela caligrafia, bens úteis e requeridos
dos telegrafistas. Aprendeu o Boudot, que imprimia em fitas
estreitas de papel as mensagens telegráficas. Estes eram os laços
mais estreitos que Sosígenes Costa mantinha com a comunidade,
pois a ele cumpria ler, corrigir, cortar e colar nos formulários
cumprimentos, ordens, pedidos, declarações sucintas, nascimentos
e óbitos, e quanto mais lhe revelasse, na brevidade dessas
comunicações, a vida da cidade. Ele preservava,
rigorosamente, sem concessões, seu direito à privacidade, sua
necessidade de comunicação tinha canais próprios, dispensava o
contato físico e a conversação, câmbio de sentimentos e
pensamentos. Raramente era visto em locais públicos. A caminho da
agência do telégrafo, transitava por ruas pouco freqüentadas e,
assim, quando retornava ao seu quarto-e-sala, improvisado num edifício
comercial, sua oficina de trabalho noturno, onde fazia e refazia,
numa escala de tempo muito particular, seu verso maravilhoso. Ilhéus
era, também, a sua cidade, e ele seu produto, ali aprendeu, com
rara percepção crítica, os motivos de sua poesia tão especial,
sem parentesco a não ser, pela excelência da qualidade, com os
poucos grandes poetas universais da língua. Ali aprendeu os
ritmos populares das festas de largo, e reinventou a linguagem dos
alugados. Sobre o longo poema da origem mítica da lavoura,
esclarece: “Começa com versos livres, soltos como menino no
pasto, pula num samba, emenda por um coco, cai de novo no samba e
termina falando como a gente fala”.
Às
tardes, na Associação Comercial, secretariava e reportava em
atas formais, com sua letra cuidada e clara, as semanais reuniões
da Diretoria. Nos outros dias, ele supervisionava o cuidado dos
jardins da casa imponente, que ornamentava com flores raras, e
tratava pessoalmente de algumas dezenas de gaiolas de passarinhos
canoros, que os meninos da redondeza pegavam e lhe traziam, em
troca de algumas moedas. A casa e a praça enchiam-se de trinados
de canários, cardeais e pintassilgos. Um pássaro preto, que
imitava o canto dos demais e repetia a primeira fase do Hino
Nacional, andava atrás dele, esvoaçava pelas salas do andar
superior e às vezes pousava na mesa grande das reuniões. À
noite, quem passasse pela praça e os jardins diante da
Prefeitura, ouvia, vindo do salão de festas da Associação
Comercial, o som das músicas que o poeta tirava no piano de
meia-cauda, entremeando peças clássicas e populares.
O
mal dos deuses é terem fé nas criaturas que os criaram. Na região
cacaueira, o sonho único da riqueza geral foi rapidamente
burlado: o lavrador estabelecia a sua posse no meio da mata,
plantava sua rocinha, vivia com a família da caça e da pesca
abundantes. Certo dia, aparecia o fazendeiro, que havia comprado
do governo, ao preço de um centavo o hectare, a terra devoluta.
Pagava ao posseiro a benfeitoria feita ao chão, contratava-o para
fazer uma roça muito maior e, quando a plantação começava a
produzir, assumia a sua propriedade, pagando ao lavrador um tostão
por árvore. A “operação” repetia-se muitas vezes, o
lavrador alugava seu braço e sua intimidade com a lavra, vivia e
morria miserável, sem dinheiro e sem terra, proibido de comer
cacau, perdido de seu sonho.
Nelson
Schaun e Sosígenes Costa, grapiúnas urbanos, sem machado ou
foice para derrubar pau e ciscar o solo, um deles professor e
extrovertido, o outro poeta e introvertido, pareciam não cruzar
seus caminhos no espaço exíguo da cidade pequena. Uma vez, ao
menos, estiveram juntos. Schaun reuniu seus poucos companheiros e,
sem os cuidados que a situação de clandestinidade impunha ao seu
sonho, estruturou o primeiro comitê do movimento comunista em
toda a imensa região cacaueira. Durante algum tempo aquela mínima
unidade orgânica foi sozinha na cidade de Ilhéus, sozinha no
mundo inteiro. Vista desde hoje, sete décadas passadas, tão longínqua,
é um pequeno e singelo momento da mais alta grandeza humana. O
sonho era devolvido à população grapiúna, sonho antigo e
desgastado, mas renovado em termos modernos, um século antes.
Nelson Schaun gostaria de haver encerrado o ato simples com o
verso oratório de um poeta de sua predileção (mas ainda por
escrever): Um fantasma assombra a Europa, o mundo*/ Nós o
chamamos Camarada.
Sosígenes
Costa, infenso a reuniões de quaisquer tipos, soube do ocorrido e
fez um pequeno poema, como se fosse ele o professor (leia o poema
na pág. 8). Depois, muito depois, aqueles deuses simpáticos e
benfazejos, que doaram aos grapiúnas a bênção do cacau,
aborrecidos com tanto caxixe, fizeram uma breve reunião de
controle da situação e resolveram mandar a praga da vassoura de
bruxa dar fim à história.
* Abertura do texto do Manifesto Comunista (1848) de Engels e
Marx.
James Amado é escritor e grapiúna; pertence à Academia de
Letras da Bahia.(Texto: Excertos).
[A
Tarde, Cultural, 29.09.2001] |