Jorge Coli


Meditação em imagens

Em 1983, quando colaborava regularmente com o jornal ''Le Monde'', recebi a incumbência de uma matéria sobre a atualidade da edição brasileira e sobre os escritores de maior expressão no momento. Eu morava França já há muito tempo e não estava bem a par das novidades nesse domínio. O projeto era relativamente importante: deveriam ser artigos diversos, que acabaram tomando duas páginas inteiras daquele jornal. Fui então enviado ao Brasil por um mês e tratei de me inteirar do assunto junto a universitários, editores e jornalistas. Do ponto de vista das novidades literárias, o panorama parecia triste: alguns nomes consagrados, mas em fim de produção; uma vanguarda velhíssima e desdentada, com trejeitos de mocinha mordaz; uma tradição engajada, de inspiração perdida e de gosto requentado. Nada causava entusiasmo, e as indicações de livros, obtidas aqui e ali, decepcionavam repetidamente. Até que Roswitha Kempf, que na época possuía uma pequena editora no Bexiga, passou-me um volume admiravelmente concebido e publicado por Massao Ohno. Era ''Da Morte: Odes Mínimas'', de Hilda Hilst.

Foi uma descoberta surpreendente e emocionada. Tratava-se da mais alta poesia. Busquei outros livros do mesmo autor: todos revelavam essa qualidade intensa dos grandes escritores.

Espantei-me com o fato de que uma obra tão importante estivesse numa orla de meia-penumbra, sem o reconhecimento que lhe era devido. Por isso, ao voltar para a França, concluí meu artigo sublinhando a elevada qualidade desses textos e evocando, se me lembro bem, ''a discreta Hilda Hilst'', que morava numa chácara perto de Campinas.

Conheci-a muito depois: alguns amigos acharam graça nessa idéia de recato que eu tivera, pois Hilda Hilst, como constatei mais tarde, é desbocada e capaz de criar os mais prodigiosos constrangimentos nos salões bem-pensantes que ela abomina. Mais ainda, descobri que sua reserva não vinha, como eu supunha, de uma escolha: consciente de si própria e do valor de sua obra, Hilda Hilst, ao contrário, ressentia vivamente encontrar-se afastada para uma fímbria.

Daquela época para cá, ela encetou uma operação destinada a ampliar o seu público, que revelou-se eficaz. Investiu na escrita de alguns livros eróticos, divertidos, destinados ao escândalo. Eles, no entanto, não a fizeram abdicar-se de si. Integram um modo de ser poético que reitera, em configurações diversas, a mesma assustadora profundidade.

Mais recente, seu ''Cantares do Sem Nome e de Partidas'' retoma um caminho meditativo. São dez poemas curtos que se encadeiam, formando núcleos que adquirem uma quase autonomia, mas cujo sentido maior se dá na relação que mantêm entre si. Creio que seu efeito mais imediato é o da comoção: ele absorve o leitor desde os primeiros versos num fluxo de pulsões de onde não se sai incólume. Hilda Hilst não faz parte da família de escritores que se detém nas palavras, que as burilam como ourives, que as ajustam como peças de relojoeiros, ao modo de

Racine ou Flaubert, Machado de Assis ou Bilac. Ela investe suas frases de uma dinâmica movente, ritmadas por uma força a um tempo natural e poderosa, fruto de uma escrita que brota fecundada pela necessidade imediata de escrever: eram assim Stendhal, Dostoievski, Hugo ou Proust.

Sua poesia _mas sua prosa também_ atinge o cerne dos nossos destinos. Ela sempre suscita aquilo que somos, para além das palavras, para além das éticas e dos valores. Hilda Hilst é feiticeira, antes, é pitonisa: seus versos misteriosos nascem de uma embriaguez divina que nos faz entrever o essencial de que nos esquecemos. Coisas que transformamos em ausentes e que pertencem, de modo justo, ao sem nome, como diz o título deste seu livro.

O melhor modo de lê-lo é ir até o fim e voltar, e voltar ainda. É preciso nos embebermos dele pela repetição. É um texto encantatório e mágico, resistente às análises que decorticam ou às teorias que generalizam. As palavras possuem ali alguma coisa de palpável e de espesso. Aos poucos nos persuadimos dessa metafísica que se inicia no amálgama que às vezes chamamos de impuro e de material, feito de nosso orgânico ser:

''Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.

Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.

E pensas maravilha quando pensas anca

Quando pensas virilha pensas gozo''.

Hilda canta nossas entranhas, nossos órgãos, nossa pele, nosso esqueleto. É como se cada um deles possuísse uma alma na matéria de que são feitos, mesmo os mais ínfimos, mesmo os mais obscenos. Ela canta também as funções vitais que nos fazem vivos e ao mesmo tempo perecíveis.

No entanto, a percepção do corpo nunca se limita a si própria. Por isso o erotismo de Hilda, por mais engraçado que às vezes se mostre, possui uma natureza propriamente ontológica. Dele partem os sinais e os sentidos. Dele transfigura-se aquilo que nomeamos, desajeitada e incompletamente por falha congênita dos conceitos, amor, sofrimento, morte, crenças e também angústia. Dele partem os mistérios ásperos que nos envolvem continuamente e dos quais fingimos sempre, de modo tão patético, ignorar a existência. Mistérios aos quais tentamos dar um nome, para nos tranquilizar, mas que a sacerdotisa implacável impede: ''Pertencente é não ter rosto. É ser amante um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã.

Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender''.

A matéria metamorfoseia-se no sentido mais forte de destino, na percepção de ser. Ela se interroga sobre o tempo, sobre o que passa, o que se prolonga, o que volta. Ela nos leva a sentir a morte como a ausência, e apreender, perplexos, a morte em nós, percebida rapidamente por uma fenda estreita:

''O Nunca Mais é só meia-verdade:

Como se visses a ave entre a folhagem

E ao mesmo tempo não.

(...)''

''Nem é corvo ou poema o Nunca Mais''.

Seria fácil rotular os versos de Hilda Hilst de ''místicos''. Eles não nos levam, entretanto, a divindade alguma _trata-se antes de uma busca de cegos. Trazem os limites de nossa frágil condição, feita de matéria que se quer sentido, e a beleza comovedora de que se constituem engendram uma sabedoria situada além do saber: ''Sabenças? Esquecias. Livros?

Perdi-os''.

Hilda Hilst exige de nós a meditação e o tempo, o recolhimento e o retorno, coisas raras nestas épocas em que os artistas se encontram mergulhados em confusões culturais, concessões demagógicas e frivolidades jornalísticas. Suas obras, pelo que são, constituem-se como refúgio e consolo. Estes ''Cantares'' revelam a possibilidade da criação verdadeira e densa, em tempos de miséria cultural. São cantos órficos, que recobram Eurídice perdida _''Que este amor não me cegue nem me siga''_, que celebram os poderes do poeta diante da morte _''Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas.../ Canta o começo e o fim''_, limitados porém, diante da áspide mais forte, ''escura e clara, negra e transparente''. Mito de Orfeu que é retomado em clave mais grave: não só amor e morte, mas o feito de possuir, sem que o olhar se volte para contemplar o objeto amado à distância. Objeto ao mesmo tempo presente e ausente: vê-lo é, ao mesmo tempo, apropriar-se e destruir. Falta sequer, dentro de nós, o Estígio que tentamos sempre atravessar:

''Saber-se pertencente é ter mais nada

É ter tudo também.

É como ter o rio, aquele que deságua

Nas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns.

Aquela que não te pertence não tem corpo''.

O poeta tenta a travessia para a morte e com ele seguimos o caminho do amor perdido, do amor afastado, do amor contido e mudo. Revelados pela poesia, a morte e o amor, feitos de pó porque feitos de corpo, eternizam-se nos ''repentes de perpetuar a Duração''. Hilda Hilst vai buscar nas essências a matéria de suas palavras.

Jorge Coli é professor de história da arte na Unicamp (Universidade de Campinas).

(in Folha de São Paulo, 14/06/96)


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